Metrópoles desgovernadas | Ermínia Maricato
As metrópoles brasileiras, apesar de sua importância econômica, política, social, demográfica, cultural, territorial e ambiental, vivem uma situação de significativa falta de governo. Neste artigo, a professora Erminia Maricato mostra que a questão metropolitana não sensibiliza nenhuma força política ou instituição que lhe atribua lugar de destaque na agenda nacional. O recuo verificado nas políticas sociais durante os anos 1980 e 1990, notadamente em transporte, habitação e saneamento, além do desmonte dos organismos metropolitanos, conduziu nossas metrópoles a um destino de banalização das tragédias urbanas.
Este artigo aborda também as mudanças estruturais – no processo de urbanização/ metropolização – devidas à reestruturação produtiva do capitalismo global, e, na escala nacional, trata da mudança no marco institucional – jurídico/político – que passou de concentrador e centralizador, durante o regime militar, para descentralizador e esvaziado, após a Constituição de 1988.
Testemunha da história recente da Reforma Urbana no Brasil, professora da FAU/USP por mais de 35 anos, além de secretária de Habitação do município de São Paulo (1989-1992) e membro da equipe que formulou a proposta de criação do Ministério das Cidades, a perspectiva da professora Erminia Maricato tem relação direta com as investigações que o INCT Observatório das Metrópoles vem desenvolvendo em relação à temática da governança metropolitana. O que se observa, ainda hoje, é o paradoxo entre a centralidade do lugar ocupado pela metrópole na dinâmica urbana do País, de um lado, e na ausência de um sistema de governança dos aglomerados urbanos metropolitanos que atenda aos requerimentos de eficiência e eficácia na gestão dos problemas comuns e das políticas públicas, de outro. Dessa forma, os temas metropolitanos e, em particular, a construção de um arcabouço institucional de governança da metrópole têm sido excluídos da agenda pública.
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O gigantismo que marca as metrópoles dos países capitalistas não desenvolvidos inspirou teorias que, ao tentarem explicar as especificidades desse processo, lançaram mão de conceitos como “inchamento”, “macrocefalia”, “desequilíbrio”, utilizando, como é mais comum na produção acadêmica, a comparação com a situação apresentada pela rede de cidades dos países capitalistas centrais. Nos anos 1970, uma coletânea de textos organizada por Manuel Castells – que levava o título de Imperialismo y urbanización en America Latina – reunia autores latino-americanos, além do organizador, espanhol, para pensar as características desse processo de urbanização. Esse esforço seguia o caminho aberto pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), que buscava pensar as condições do subdesenvolvimento no subcontinente e as formas de superá-las.1Uma das questões centrais do livro se refere à diferença entre a importância do setor industrial e do setor “serviços” nas metrópoles dos dois conjuntos de países, centrais e latino-americanos. Segundo alguns dos intérpretes, nas metrópoles da América Latina, o setor “serviço” absorvia (ou nele se depositava) uma força de trabalho muito maior, sendo, por isso, caracterizado de inchado e relacionado às atividades marginais ou atrasadas, desvinculadas do núcleo hegemônico que, nesse período, passava a ser liderado por capitais internacionais produtores de bens de consumo durável (cf. Arantes, 2009).
Contrapondo-se a uma visão dualista e esquemática desse processo de urbanização concentrado, um bem-sucedido esforço intelectual, do qual participaram inúmeros pesquisadores brasileiros, logrou avançar na explicação que contemplasse a totalidade do processo social, econômico, político e cultural, como uma unidade contraditória, que seria produto de um processo “desigual e combinado”, ou do “desenvolvimento moderno do atraso” ou ainda da “modernização conservadora”. Baseados nos principais intérpretes da sociedade brasileira – Caio Prado, Sergio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro, Celso Furtado, Francisco de Oliveira, Roberto Schwarz, Florestan Fernandes, entre outros -, urbanistas, geógrafos, sociólogos, advogados, engenheiros, engajados na transformação do ambiente construído, incorporaram o território a essa abordagem, analisando a produção da cidade e, em especial, a funcionalidade da cidade informal, ilegal ou periférica para o processo de acumulação de capital nos países não hegemônicos. A questão da renda imobiliária, que é central nos processos gerais de urbanização capitalista, ganha aspectos particulares e uma centralidade absoluta no universo periférico (Maricato, 2011). O patrimonialismo, a privatização da esfera pública, o clientelismo e a política do favor, além da herança escravocrata, do desprestígio do trabalho e da incorporação de avanços sem o abandono das formas atrasadas, ainda estão na base da metrópole brasileira que passa por transformações significativas – a partir das mudanças que levaram o país a se tornar um player de importância internacional -, mas sem modificar suas características de desigualdade profunda, como veremos adiante.
A tarefa de elaborar uma teoria da urbanização na periferia do capitalismo está longe de apresentar resultado satisfatório, e a prova disso são os indefectíveis e onipresentes modelos de projetos urbanísticos e arquitetônicos buscados no exterior por qualquer governante de plantão ou pela mídia local, fortemente submetidos ao mimetismo cultural. Mas é preciso reconhecer que a academia fez avanços contra a corrente e que a formação do pensamento crítico sobre a cidade periférica acumulou uma certa produção intelectual vinculada a um engajamento na busca por alternativas de políticas públicas.
A aceleração e a concentração da urbanização em algumas grandes aglomerações, que não se restringiram à América Latina, eram um fenômeno mundial que se aprofundaria nas décadas seguintes. Dentre as 49 maiores cidades do mundo em 1890, 42 estavam no chamado Primeiro Mundo, enquanto sete estavam no Terceiro Mundo. Dentre as 50 maiores cidades do mundo no ano 2000, 11 estavam no Primeiro Mundo e as demais, no mundo não desenvolvido ou emergente. Essa tendência se acentua, especialmente com a urbanização tardia de países da Ásia e da África, notadamente China e Índia. Em 2025 estima-se que a Ásia poderá ter de 10 a 11 cidades com mais de 20 milhões de habitantes (Davis, 2006).
Ainda que a pobreza medida por indicadores nacionais diminua com a urbanização, de um modo geral, o número absoluto de moradores de favelas cresce mais do que o crescimento da população urbana (Un-Habitat, 2010). A concentração de pobres em gigantescas favelas – que contam com domicílios congestionados e insalubres, sem água potável, sem esgotos, sem coleta de lixo -, com baixa taxa de emprego, com elevados índices de violência, apresenta um aspecto qualitativo que a difere da dispersa pobreza rural. São verdadeiras bombas socioecológicas. Em 2005 havia pelo menos 13 favelas com mais de um milhão de habitantes em cidades do mundo não desenvolvido (ibidem).
O contraponto à urbanização da pobreza – periferização ou favelização – está na chamada urbanização dispersa (urban sprawl), responsável pela formação dos característicos subúrbios americanos, que podem ser vistos também nas cidades dos países da periferia do capitalismo, dividindo o entorno das cidades regiões com a ocupação irregular de baixa renda. O impacto da globalização nas cidades de todo o mundo – em decorrência da “nova pobreza” e, por que não, da nova riqueza – foi responsável por algumas mudanças no caráter da segregação com a ocorrência das gated communities, guetos, cidadelas, condomínios fechados (Marcuse, 1997; Matos, 2004; Ribeiro, 2004; Cáceres & Sabatini, 2004; Cobos & López, 2007; Reis Filho & Tanaka, 2007).
Com a reestruturação produtiva do capitalismo, que tem início nos anos 1970, há mudanças nos processos de produção do ambiente construído (Harvey, 1992; Benko & Lipietz, 1992; Diniz, 1993; Cano, 1995; Brandão, 2007; Moura, 2010). Metropolização expandida, fragmentação, dispersão, cidades regiões, corredores urbanos, urbanização do arquipélago, espaços “pós-urbanos” são conceitos que tentam definir a ampliação da ocupação urbana no território (Un-Habitat, 2010; Ribeiro, 2004; Veltz, 1996). Alguns estudos buscam evidenciar um novo papel para as metrópoles no mundo globalizado, dominado pela financeirização e pelas novas tecnologias de informação e comunicação: cidades globais, metápoles, cidades informacionais (Sassen, 1998; Ascher, 1995; Castells, 1999). Há mudanças nas relações intraurbanas, especialmente nas articulações do mercado imobiliário com a esfera financeira, fenômeno mais característico dos países centrais, que serviu para detonar a crise mundial de 2008 (Harvey, 2005).
Essas teorias que, seguindo tradição histórica de subordinação cultural, influem na produção acadêmica sobre as cidades na periferia do capitalismo não resistem à observação empírica e exigem maior precaução em sua aplicação. A urbanização da humanidade, prevista por Henri Lefèbvre em seu livro A revolução urbana, lançado em 1970, não admite mais ver o urbano como um “lugar relativamente limitado e distinto”, pois, diante das circunstâncias, trata-se de uma “condição planetária generalizada”, que está a exigir uma revisão teórica (apud Brenner, 2010, p.26). No entanto, embora haja evidências de mudanças nas cidades e metrópoles da periferia do capitalismo, também não se pode dizer que elas são estruturais ou profundas, ainda que o capitalismo global e brasileiro apresente mudanças significativas (Ferreira, 2007; Moura, 2010; Holanda, 2010). Novas estratégias de localização e logística, atividades industriais inovadoras, ampliação dos serviços relacionados à comunicação, finanças e educação, arranjos urbanos regionais ligados à produção e exportação de commodities são algumas das características que favorecem as “regiões ganhadoras” no conceito de Benko & Lipietz (1992). As mudanças – que Diniz (2001) chamou de “desconcentração concentrada” – não evitaram o aprofundamento da concentração e o crescimento das desigualdades e disparidades regionais.
As transformações capitalistas, que se combinaram às décadas orientadas pelo pensamento neoliberal (no Brasil, em 1980, 1990 e 2000) tiveram forte impacto sobre as cidades. A desregulamentação – do que já não era muito regulamentado, como o mercado imobiliário -, o desemprego, a competitividade, a guerra fiscal, o abandono de políticas sociais, como o transporte coletivo, as privatizações de serviços públicos, o planejamento estratégico, o marketing urbano, entre outros, se combinaram a uma tradição histórica de falta de controle sobre o uso do solo e de segregação territorial e urbana. A desigualdade continua a reinar soberana embasada num padrão ambíguo de aplicação das leis relativas à propriedade fundiária – em que pese o novo arcabouço legal federal – e de investimentos, ambos profundamente regressivos nos seus aspectos sociais e orientados por interesses do capital de incorporação, no caso dos edifícios, e do capital de construção pesada, no caso da infraestrutura urbana, cuja prioridade absoluta é a matriz rodoviarista e mais exatamente o automóvel.
A violência nas metrópoles se consolida no período aludido de forma inédita, evidenciada pelo aumento da taxa de homicídios, que mostra tendência a reversão – ainda que cercada de controvérsia – apenas no final da primeira década do século XXI. Tragédias causadas por enchentes e desmoronamentos se banalizam e tornam-se mais frequentes a cada ano (Saldiva et al., 2010). A ocupação irregular de beira de córregos, encostas instáveis desmatadas, mangues, dunas, áreas de proteção de mananciais testemunha o abandono de uma grande parcela da população ao seu próprio engenho e recursos precários.
O Brasil tinha, em 2010, cerca de 14 metrópoles com mais de um milhão de habitantes, e São Paulo tinha mais de 19 milhões e Rio de Janeiro, mais de 11 milhões. E ainda, 80% dos brasileiros, moradores de favelas, estão nas metrópoles, segundo o IBGE (2000). A coleta e a destinação de resíduos sólidos mostram-se pífias se levarmos em conta o cenário de poluição das águas e dos terrenos. O serviço de coleta de esgoto deixa muito a desejar no país – atende 52,2% dos municípios e 33,5% dos domicílios, segundo o IBGE (2000) – e algumas das epidemias já erradicadas voltaram a se consolidar (Saldiva et al., 2010). O padrão de investimentos em obras metropolitanas mostra a falta de integração entre as ações de cada município que compõem as metrópoles, e alguns governos estaduais apresentam apenas planos metropolitanos setoriais e, mesmo assim, raramente são implementados. Não é raro a orientação urbanística de um município prejudicar os demais. Macrodrenagem, coleta e distribuição de água tratada, transporte de cargas e passageiros, coleta e tratamento de esgoto, habitação, uso e ocupação do solo são temas que exigem um tratamento integrado na metrópole. Apesar desse quadro, a questão metropolitana está numa espécie de “limbo” no Brasil. Não há integração administrativa e, o que é pior, parece que ninguém se interessa pelo assunto.
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