A nova edição da Revista e-metropolis traz a tradução inédita no Brasil do texto “Polanyi’s Double Movement: The Belle Époques of British and U.S. Hegemony Compared”, de Beverly Silver e Giovanni Arrighi. O artigo aborda o pensamento de Karl Polanyi e sua contribuição a partir dos chamados Ciclos de Acumulação Capitalista: duplo movimento do final do século XIX e início do século XX – o auge e o colapso da hegemonia britânica – e o duplo movimento do final do século XX e do início do século XXI – o auge da hegemonia dos EUA e sua crise atual. Analisar os ciclos de acumulação serve para jogar luz sobre as etapas do liberalismo mundial, como também entender a constituição da semi-periferia da economia-mundo, ou seja, a maneira como o Brasil realizou a sua acumulação e expansão urbana a fim de inserir-se perifericamente no capitalismo mundial.
O texto “O Duplo Movimento de Polanyi: Comparação da Hegemonia da Belle Époque Britânica e Estadunidense” é o artigo de capa da edição nº 16 da Revista eletrônica e-metropolis. O trabalho de Beverly Silver e Giovanni Arrighi foi traduzido por Tereza Marques de Oliveira Lima e é uma iniciativa do INCT Observatório das Metrópoles com o propósito de difundir o pensamento do teórico Karl Polanyi no Brasil – e suas contribuições para entender o liberalismo mundial e suas correlações no desenvolvimento capitalista brasileiro.
O pensamento de Polanyi tem sido também um dos fundamentos teóricos do projeto “Transformações na Ordem Urbana nas Metrópoles Brasileiras”, que o INCT Observatório das Metrópoles está desenvolvendo com o propósito de oferecer uma análise mais completa sobre a evolução urbana brasileira, servindo assim de subsídio para a elaboração de políticas públicas nas grandes cidades e para o debate sobre o papel metropolitano no desenvolvimento nacional.
Leia o texto “Transformações na Ordem Urbana na Metrópole Liberal-Periférica: hipóteses e estratégica teórico-metodológica”, documento base do projeto de autoria do professor Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro. O texto avança na formulação conceitual da metrópole brasileira constituída pelas condições econômicas, políticas, sociais e geográficas concretas que presidiram o desenvolvimento do capitalismo periférico e associado.
O DUPLO MOVIMENTO DE POLANYI
INTRODUÇÃO
POR BEVERLY SILVER E GIOVANNI ARRIGHI
Não nos surpreende que a obra The Great Transformation (A Grande Transformação) de Karl Polanyi, publicada há mais de meio século, fosse atrair um número crescente de admiradores no contexto da “globalização” do final do século XX e começo do século XXI. A obra está repleta de citações brilhantes sobre o equívoco do “credo liberal” do século XIX que podem ser (e foram) aproveitadas para o bom uso retórico e analítico contra os provedores contemporâneos daquela crença – os promotores do Consenso de Washington (Washington Consensus) e da “globalização neoliberal”.
Escrita nos anos finais da Segunda Guerra Mundial, A Grande Transformação é fundamentalmente otimista sobre o futuro. Polanyi acreditava que os desastres da primeira metade do século XX tinham ensinado à humanidade uma lição que nunca seria esquecida e que a experiência utópica do século XIX nunca poderia ser repetida. Assim, ele escreveu, “Sem dúvida, nossa era será creditada como aquela que viu o fim do mercado autorregulável.” Enquanto a década de 1920 “viu o prestígio do liberalismo econômico, no seu auge,” na década de 1930 os “absolutos da década de 1920 foram questionados,” e na década de 1940 “o liberalismo econômico sofreu uma derrota ainda pior”.
Consistente com as expectativas de Polanyi – embora aquém de suas esperanças plenas – , algumas restrições significativas foram criadas para a mercantilização do trabalho, terra, e dinheiro nas décadas imediatamente após a Segunda Guerra Mundial como resultado do consumo de massa (trabalho-capital) e dos contratos sociais de desenvolvimento (Norte-Sul).2 Nas décadas de 1980 e 1990, no entanto, o liberalismo econômico retornou com uma vingança.
Se as últimas duas décadas desmentiram o otimismo de Polanyi sobre a solidez das lições aprendidas pela humanidade, A Grande Transformação, contudo, permanece uma fonte extraordinária. Nosso interesse nessa obra não é tanto como uma fonte para uma crítica das políticas e ideologias contemporâneas, mas sim como um potencial esboço de um roteiro para o futuro. No decorrer deste artigo encontraremos muito material para ser extraído de A Grande Transformação, o qual irá iluminar o caminho à nossa frente.
Ainda restam duas questões. Primeiro, à medida que Polanyi viu a “Grande Transformação” como um episódio singular, ele não “conta a história” de uma forma que facilite o tipo de análise comparativa histórico-mundial que seria necessária a fim de mapear os caminhos alternativos que se encontram agora potencialmente abertos (ou fechados) para a navegação através da atividade humana.3 Segundo, embora Polanyi reconhecesse a existência (e, às vezes, até mesmo a importância) do poder diferencial entre classes e entre Estados, ele, no entanto, minimizou o papel que essas relações de poder desiguais desempenharam na determinação da trajetória histórica que ele analisava.
Como discutido em outro lugar com relação às implicações da análise de Polanyi para compreender os contramovimentos dos trabalhadores, o quadro de Polanyi tende a não enfatizar as relações de poder entre as classes.4 A extensão do mercado “autorregulável” é susceptível de provocar a resistência ativa dos responsáveis da mercadoria (commodity) fictícia do trabalho, em parte porque implica necessariamente a derrubada dos pactos sociais estabelecidos sobre o direito à subsistência. No entanto, na análise de Polanyi, um mercado não regulamentado iria eventualmente ser impedido por ações vindas de cima, mesmo se aquelas vindas de baixo não tivessem suficiente poder de barganha para se protegerem. Isso ocorre porque o projeto de um mercado autorregulável é simplesmente “utópico” e insustentável em seus próprios termos – compelido a destruir o “tecido da sociedade” e fazer surgir “agências” que irão proteger a “sociedade” da devastação do moinho satânico, independentemente da existência (ou eficácia) do protesto que vem de baixo. Assim, por exemplo, Polanyi argumenta que foram os “reacionários iluminados” dentre a classe dos proprietários da terra que exerceram a “função vital” de lutar por proteções para a classe operária britânica emergente (ainda sem voz) no início do século XIX.
Polanyi propõe uma teoria da liderança de classe com algumas analogias com a conceituação da hegemonia de Gramsci. Para uma classe/grupo liderar, ela/ele também deve proteger outras classes/grupos. “Nenhuma política restrita de interesse de classe” escreve Polanyi, “pode proteger bem até mesmo esse interesse.” Da mesma forma, Gramsci escreve que, embora o Estado seja visto como o órgão de um determinado grupo… o desenvolvimento e a expansão desse grupo em especial são concebidos, e apresentados, como sendo a força motriz de uma expansão universal, um desenvolvimento de todas as “energias nacionais”.
No entanto, para Gramsci, tal hegemonia ou “liderança intelectual e moral” é um lado do processo através do qual um determinado grupo reina; do outro lado do processo está a “dominação” dos “grupos antagônicos, os quais ela tende a ‘liquidar’ ou subjugar, talvez até pelo uso da força armada.” Polanyi, pelo contrário, tende a funcionar com uma conceituação da sociedade muito mais orgânica (solidária). Na formulação de Polanyi, “o desafio” representado pela extensão da economia de mercado é para a “sociedade como um todo.” E por que as “diferentes seções transversais da população [estão] ameaçadas pelo mercado, as pessoas pertencentes a vários estratos econômicos inconscientemente [unem] forças para enfrentar o perigo.”
Para além da questão dos pesos relativos que devem ser anexados à força e ao consentimento, existe a questão da “normalidade” da situação de hegemonia. Polanyi (como Gramsci, e seguindo Weber) vê a força (dominação) como uma forma de domínio muito instável. “A menos que a alternativa para a configuração social seja um mergulho total na destruição”, escreve Polanyi, “nenhuma classe grosseiramente egoísta pode se manter na liderança.”10 Para Polanyi, essa dinâmica “permite poucas exceções”, e, portanto, podemos concluir que, em circunstâncias normais, o impotente e o marginalizado provavelmente podem ser os beneficiários da “proteção” promovida por agentes/atores mais favoravelmente localizados.
Da leitura de A Grande Transformação podemos, pelo menos, deduzir duas exceções mais ou menos explícitas. A primeira exceção é o caso do “mergulho na total destruição” (ou seja, o colapso total da ordem social) referido na citação do parágrafo anterior. Embora a forma de Polanyi formular a frase sugira que ele vê tais colapsos como sendo raros, “os mergulhos na total destruição” é um fenômeno tão suficientemente difundido no início do século XXI que podemos querer tratá-lo como um fenômeno mais “normal” do que o conceito de Polanyi do duplo movimento parece ensejar.
Outra “exceção” é o caso das colônias não soberanas. Essa exceção é especialmente importante pelo menos por duas razões. Primeiro, é em sua discussão do mundo colonial que Polanyi reconhece explicitamente a importância do poder soberano do Estado como a base para a eficaz autoproteção da sociedade. Segundo o autor,
Mesmo que os Estados organizados da Europa pudessem proteger-se contra o efeito colateral (backwash) do comércio livre internacional, os povos coloniais politicamente não organizados não podiam… A proteção que o homem branco podia facilmente assegurar para si mesmo, através da natureza soberana de suas comunidades, estava fora do alcance do homem de cor enquanto ele não tivesse o pré-requisito, o governo político.
Da mesma forma, a devastação do comércio livre internacional e o padrão-ouro eram muito mais problemáticos para os Estados soberanos economicamente fracos. A fraqueza militar, igualmente, fez com que países ficassem vulneráveis à diplomacia das canhoneiras (gunboat diplomacy), cada vez mais utilizada pelas grandes potências para impor o reembolso dos empréstimos e manter abertas as rotas de comércio necessárias para o funcionamento do mercado global “autorregulável”.
Em segundo lugar, essa exceção implicitamente nos leva à questão da escala geográfica na qual a autoproteção da sociedade ocorre (e também nos leva implicitamente de volta à questão do equilíbrio relativo da força e do consentimento). Para Polanyi, enquanto os agentes do movimento em direção à economia de mercado iam do local e nacional para o global (haute finance), os agentes do contramovimento (“grupos, seções, classes”) eram em grande parte locais e nacionais (apesar de suas ações – e.g., protecionismo, conquista colonial, revolta anti-imperialista – terem muitas vezes implicações transnacionais). Além disso, esses agentes do contramovimento destinavam-se a proteger os interesses locais ou nacionais (interesses, em uma definição mais ampla). Para Polanyi, a “sociedade” que está se protegendo no século XIX e na primeira metade do século XX é, em grande parte, uma sociedade nacional.
Mesmo assim, se nos encontramos hoje no meio da “descoberta da sociedade [mundial]”, onde é que iremos localizar os agentes eficazes do contramovimento para a autoproteção da sociedade mundial? Que “grupos, seções e classes” estão disponíveis hoje para executar a “função vital” de proteger as pessoas comuns do mundo? Escrevendo sobre a história social britânica do século XIX, Polanyi alegou que as classes de negociação não tiveram nenhum órgão para perceber os perigos envolvidos na exploração da força física do trabalhador, na destruição da vida familiar, na devastação dos bairros, no desnudamento das florestas, na poluição dos rios, na deterioração dos padrões dos artífices, no rompimento dos costumes populares (folkways) e na degradação geral da existência, incluindo a habitação e as artes, bem como nas inúmeras formas da vida privada e da vida pública que não afetam os lucros.
A proteção da natureza coube à aristocracia dona das terras e aos camponeses, embora a tempo, “os trabalhadores, em maior ou menor grau, tornaram-se os representantes dos interesses humanos comuns dos que tinham sido desalojados.”
Mesmo assim, os interesses “dos seres humanos” comuns protegidos pelos “povos trabalhadores” britânicos eram, em grande parte, os interesses dos seres humanos britânicos. Nenhum órgão entre a aristocracia dona das terras e os “povos trabalhadores” da Grã-Bretanha existia para sentir os perigos para os seres humanos e para a natureza que estavam envolvidos na expansão da economia de mercado para o mundo colonial e semicolonial. Com efeito, em muitos aspectos, como Polanyi sabia perfeitamente, a autoproteção das sociedades industriais era o outro lado da moeda da ruptura das vidas e dos meios de subsistência que ocorria em outros lugares.
Foi apenas a força das revoltas anti-imperialistas – interagindo com as crescentes rivalidades interimperialistas e guerras entre os principais poderes – que eventualmente despertou os principais “grupos, setores e classes” da sociedade mundial para os perigos implicados pela expansão da economia de mercado para o Terceiro Mundo. Esse “sentimento” de perigo foi mantido vivo na década de 1950 e 1960 pelas lutas anti-imperialistas contínuas no Sul e pela ativa rivalidade da Guerra Fria entre o Oriente e o Ocidente. É neste contexto que os Estados Unidos usaram seu poder global para promover algum tipo de contrato social desenvolvimentista e de trabalho-capital em sua esfera mundial na década de 1950 e 1960 e, portanto, se qualificou não apenas como uma potência dominante mundial, mas também como poder mundial hegemônico.
Contudo, nas décadas de 1980 e 1990, os agentes do poder mundial dos EUA tinham perdido a capacidade de “sentir” o perigo para os outros. A hegemonia estadunidense deu lugar à dominação estadunidense, que, como enfatizou Polanyi, é uma forma muito instável de domínio, susceptível de conduzir a outro “mergulho na total destruição” de escala mundial. Em outros lugares, conceitualizamos o tipo de “mergulho na total destruição” de escala mundial que estamos prestes a dar (se já não tivermos dado) como períodos de “caos sistêmico”. E conceitualizamos o período de “catástrofe” global analisado por Polanyi como um período análogo (embora não idêntico).
Isso nos leva de volta a uma das questões centrais apontadas no início. Ou seja, a fim de desenvolver uma forma mais detalhada do roteiro para o futuro (bem como os caminhos alternativos ainda abertos para escolha através do organismo humano), precisamos de uma análise histórico-mundial explícita e comparativa do duplo movimento do final do século XIX e início do século XX (a belle époque e o colapso da hegemonia britânica) com o duplo movimento do final do século XX e do início do século XXI (belle époque da hegemonia dos EUA e sua crise atual). Nas próximas duas seções, realizamos essa comparação com um foco muito específico sobre o poder, estrutura e interesses do Estado hegemônico.
Acesse o artigo completo “O Duplo Movimento de Polanyi” na Revista e-metropolis.