por Thiago Canettieri* e Júlia França**
O avanço das legislações urbanísticas no Brasil não foi acompanhado pela melhoria da qualidade dos cadastros unificados existentes nas prefeituras das maiores cidades do país. A ausência de informações sobre vazios urbanos continua a dificultar o planejamento estratégico e a aplicação de instrumentos que poderiam transformar imóveis subutilizados em soluções para o déficit habitacional. A lacuna no monitoramento desses espaços evidencia uma falha estrutural nas políticas públicas, revelando o desafio de aliar eficiência administrativa à promoção da função social da propriedade.
Os vazios urbanos, definidos como áreas infraestruturadas mas inativas, são frequentemente mantidos ociosos devido à especulação imobiliária e à ausência de fiscalização eficaz. No entanto, a inexistência de uma base de dados centralizada por parte das administrações municipais transforma a identificação desses imóveis em um processo custoso e demorado. Pesquisadores, planejadores e movimentos sociais, na tentativa de superar essa barreira, recorrem a fontes secundárias, como dados de concessionárias de energia e água, levantamentos acadêmicos e observações diretas em campo.
Em cidades como Belo Horizonte, por exemplo, a dificuldade para mapear imóveis ociosos no hipercentro é emblemática. Enquanto o déficit habitacional da cidade alcança números alarmantes, milhares de imóveis permanecem vazios ou subutilizados. Dados do IBGE e de concessionárias locais, como a Cemig e a Copasa, revelam que a capital mineira possui mais de 200 mil instalações elétricas inativas e 52 mil imóveis sem consumo de água registrado. Ainda assim, as informações permanecem desconexas, dificultando a aplicação de instrumentos como o Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsória (PEUC), previsto no Plano Diretor.
Esse cenário não é isolado. Segundo levantamento do WRI Brasil, entre 1993 e 2020, as cidades brasileiras cresceram em volume de construções em ritmo superior ao crescimento populacional. Ainda assim, a crise habitacional se agravou. A pesquisa evidencia uma contradição estrutural: o aumento da verticalização e da produção de edificações não significou maior acesso à moradia. Isso porque grande parte dessas novas unidades está voltada à especulação imobiliária, e não à demanda habitacional real. Dados da Fundação João Pinheiro apontam que o Brasil registrava, em 2022, um déficit habitacional superior a 6 milhões de domicílios — número que exclui, inclusive, a população em situação de rua, o que sugere uma carência ainda maior.
A ausência de informações integradas não é apenas um problema técnico, mas também um entrave político e econômico. A falta de um cadastro consolidado alimenta o ciclo de especulação imobiliária, favorecendo a retenção estratégica de imóveis por proprietários que aguardam valorização do mercado. Enquanto isso, populações de baixa renda são empurradas para as periferias, agravando desigualdades socioespaciais e aumentando os custos para o Estado em infraestrutura e transporte.
A questão dos vazios urbanos em Belo Horizonte representa um dos principais desafios do planejamento urbano contemporâneo. Enquanto milhares de imóveis permanecem ociosos no centro da cidade, o déficit habitacional continua a crescer, empurrando famílias para áreas periféricas com pouca infraestrutura. Essa contradição reflete a especulação imobiliária e a falta de políticas eficazes para a reintegração desses espaços ao tecido urbano. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Fundação João Pinheiro revelam que a Região Metropolitana de Belo Horizonte conta com mais de 109 mil imóveis desocupados. Ao mesmo tempo, o déficit habitacional atinge cerca de 95 mil domicílios. Essa contradição evidencia a necessidade urgente de políticas públicas que promovam o uso socialmente responsável desses imóveis, evitando sua retenção especulativa e incentivando o aproveitamento para habitação popular.

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero.
A especulação imobiliária, apontada por diversos estudos, contribui para a valorização artificial do solo urbano, afastando populações de baixa renda para regiões periféricas e exacerbando a segregação socioespacial. Além disso, a ausência de um cadastro imobiliário municipal atualizado dificulta a identificação e a regularização dessas áreas ociosas, tornando a gestão urbana ainda mais complexa. No entanto, algumas metodologias inovadoras vêm sendo desenvolvidas para mapear esses vazios urbanos. Um estudo recente realizado por Ada Penna McMurtrie, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), propõe a identificação de imóveis desocupados a partir do consumo zero de recursos, como energia elétrica e água, permitindo a delimitação mais precisa das áreas subutilizadas. Ferramentas de geoprocessamento também têm sido utilizadas para monitoramento e planejamento urbano, possibilitando uma abordagem mais estratégica e sustentável.
Diante desse cenário, torna-se fundamental que o poder público adote medidas mais rigorosas para coibir a especulação imobiliária e garantir que os imóveis vazios cumpram sua função social. Entre as possíveis soluções, destacam-se a atualização dos cadastros municipais, a implementação de impostos progressivos sobre imóveis ociosos e a destinação desses espaços para programas habitacionais de interesse social.
O Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/2001) oferece uma série de instrumentos que possibilitam ao poder público incidir diretamente sobre imóveis subutilizados e garantir o cumprimento da função social da propriedade, como o Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsória (PEUC), o IPTU Progressivo no Tempo e a desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública.
Além disso, iniciativas bem-sucedidas em outras cidades podem servir de referência para Belo Horizonte. Em São Paulo, por exemplo, programas como o Plano Municipal de Habitação têm utilizado dados geoespaciais para identificar e destinar imóveis ociosos à moradia social. Já no Rio de Janeiro, o IPTU Progressivo tem sido aplicado como forma de desestimular a retenção especulativa de terrenos e edificações subutilizadas.
A ocupação racional dos vazios urbanos não só contribuiria para reduzir o déficit habitacional, mas também fomentaria um desenvolvimento urbano mais inclusivo e sustentável. É preciso repensar o modelo de cidade que se deseja construir, priorizando o direito à moradia e à cidade para todos os cidadãos.
Outro aspecto fundamental é o papel da sociedade civil e dos movimentos sociais na luta pelo direito à moradia. Organizações comunitárias e coletivos urbanos têm pressionado gestores públicos a adotarem políticas mais eficazes, além de promoverem ocupações organizadas em imóveis abandonados. Essas ações não apenas evidenciam o problema, mas também demonstram alternativas viáveis para garantir moradia digna à população de baixa renda.
Por fim, o debate sobre vazios urbanos deve ser ampliado para incluir a participação ativa da população na definição das políticas urbanas. A transparência na gestão dos cadastros imobiliários e a criação de plataformas de monitoramento acessíveis ao público podem fortalecer o controle social sobre o uso do solo urbano. Somente com uma abordagem integrada, envolvendo governo, sociedade civil e setor privado, será possível transformar os vazios urbanos de Belo Horizonte em oportunidades reais para a inclusão social e o desenvolvimento sustentável da cidade.
Texto publicado originalmente no portal Marco Zero, no dia 17 de abril de 2025.
* Professor do departamento de urbanismo da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor em Geografia pela UFMG, também é coordenador regional do Núcleo Belo Horizonte do INCT Observatório das Metrópoles.
** Estudante de graduação da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais (EA/UFMG).