Pelos próximos cinco anos, o Observatório das Metrópoles seguirá como um Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT). O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) divulgou, na última semana, o resultado preliminar da chamada de novos INCTs. Das 651 propostas enviadas por grupos de pesquisa de todo o Brasil, submetidas em edital no final de 2024, o Observatório figura entre os 121 projetos aprovados. “Este resultado não é apenas um reconhecimento da excelência acadêmica da nossa rede, mas, sobretudo, a comprovação do poder da colaboração, da participação ativa e da coordenação coletiva que sempre nortearam o Observatório das Metrópoles”, ressaltou o coordenador nacional da rede, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro.
O novo ciclo de pesquisa do Observatório recebeu como título “Transformações da ordem urbana e desafios para o desenvolvimento urbano igualitário, justo, inclusivo, democrático e ambientalmente sustentável” e visa contribuir para colocar os objetivos do desenvolvimento urbano das metrópoles no centro do debate sobre os desafios, caminhos e estratégias do desenvolvimento nacional, a partir do reconhecimento da importância da dinâmica metropolitana como elemento crucial para pensar o presente e o futuro do país. A proposta foi considerada “excelente” na avaliação dos pareceristas.
“O projeto é um exemplo de como a pesquisa acadêmica pode se conectar de forma eficaz com a prática social e política, oferecendo contribuições significativas para o planejamento urbano, a governança metropolitana e a justiça social. Trata-se de um projeto relevante, tanto para a academia quanto para a formulação de políticas públicas, consolidando o Observatório das Metrópoles como um centro de excelência na pesquisa sobre dinâmicas urbanas no Brasil”, registra um dos pareceres.
Conforme o CNPq, o aporte total da chamada será de R$ 1,5 bilhão – valor que representa o triplo do investimento realizado nos INCT através da chamada 2022 e é a maior chamada já realizada pelo CNPq em volume de recursos. “Esse é um dos programas mais fundamentais de toda a ciência brasileira para fortalecer e aprimorar o nível da pesquisa no país. A chamada foi bastante robusta, um recorde histórico para chamadas em INCT, com uma demanda muito bem qualificada. Isso é muito importante para o fortalecimento da ciência no país”, comentou o presidente do órgão, Ricardo Galvão.
Construção coletiva da proposta contou com amplo engajamento da rede
Em julho de 2024, coordenadores dos 18 Núcleos Regionais do INCT Observatório das Metrópoles se reuniram em um seminário estratégico para elaboração da proposta para o edital do CNPq. O objetivo foi delinear um acordo sobre a concepção e desenho da futura proposta, avaliando o que foi feito no ciclo anterior em uma dinâmica coletiva. À época, o coordenador nacional do Observatório, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, comentou que a ideia era propor uma série de atividades, desenvolver conhecimentos sistemáticos e comparativos sobre a problemática metropolitana brasileira, com a formação de recursos humanos, além de ter um protagonismo no debate público sobre a questão metropolitana e transferência de resultados à sociedade.
“Naquele momento, definimos as bases de um projeto que não seria apenas mais uma proposta técnica, mas um manifesto político-acadêmico em defesa da democracia e da justiça urbana. Cada contribuição, cada discussão, cada ajuste feito desde então transformou nossas ideias em um documento robusto e inovador. A aprovação é fruto do engajamento incansável de todas e todos, da capacidade de traduzir debates complexos em estratégias claras e da dedicação em construir uma proposta que reflete nossos valores coletivos”, pontuou Ribeiro.
É a terceira vez que o Observatório integra o programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia do CNPq. A primeira proposta foi desenvolvida entre 2009 e 2016, resultando na coletânea “Metrópoles: transformações na ordem urbana”, além de 150 livros publicados, mais de 700 artigos em periódicos indexados e formação de 300 alunos de pós-graduação. Já a segunda proposta teve início em 2017 e será finalizada em abril de 2025, com o título “As metrópoles e o direito à cidade: conhecimento, inovação e ação para o desenvolvimento urbano”.
Para Ribeiro, o novo edital inaugura um novo capítulo de nossa missão. “Agora, temos a oportunidade de ampliar o impacto de nossas pesquisas, fortalecer parcerias e influenciar políticas públicas que transformem a realidade urbana do país”, vislumbrou o coordenador.

Registro do seminário realizado em julho de 2024, no Rio de Janeiro.
Estrutura de gestão e governança do INCT adota modelo colaborativo
O INCT Observatório das Metrópoles adota um modelo de gestão e governança estruturado na concepção de “Pesquisa em Rede” ao invés de apenas “Rede de Pesquisas”. Isso significa que, ao longo de sua trajetória, o instituto vem consolidando métodos que promovem a colaboração ativa entre seus diversos núcleos regionais.
A seguir, confira os principais conceitos mobilizados para a proposta que será implementada pelo INCT Observatório das Metrópoles em seu novo ciclo de pesquisa.
A cidade como palco da reinvenção nacional: por um desenvolvimento urbano inclusivo e a superação do capitalismo rentista-neoextrativista, portanto predatório
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
A defesa de um modelo de desenvolvimento urbano inclusivo, igualitário, democrático e ambientalmente sustentável não é apenas uma agenda técnica para melhorar cidades brasileiras. É uma oportunidade histórica de questionar o próprio paradigma de desenvolvimento nacional, marcado por desigualdades estruturais, exclusão política e espoliação ambiental. Tal proposta ecoa a tese central de Naomi Klein em This Changes Everything (2014): crises profundas — sejam climáticas ou urbanas — são janelas para repensar sistemas econômicos e construir sociedades radicalmente mais justas. No Brasil, onde 86% da população vive em cidades (IBGE, 2022) e o déficit habitacional chega a 5,8 milhões de moradias (FGV, 2023), repensar o urbano é repensar o país.
O capitalismo brasileiro e suas contradições urbanas
O capitalismo brasileiro, desde suas origens coloniais, consolidou-se como um modelo anti-social, anti-democrático e anti-nacional:
- Anti-social: a segregação espacial nas metrópoles, como favelas sem saneamento básico ao lado de condomínios de luxo, reflete a 19ª maior desigualdade de renda do mundo (Banco Mundial, 2023).
- Anti-democrático: a gestão urbana é frequentemente capturada por interesses privados, como o lobby imobiliário que dita planos diretores em detrimento do bem comum.
- Anti-nacional: a exploração predatória de recursos naturais, como a mineração que destrói biomas e expulsa comunidades tradicionais, serve a mercados globais, não às necessidades locais.
Esse modelo reproduz o que Klein denuncia como a incompatibilidade entre capitalismo e sustentabilidade. No Brasil, ele se materializa em cidades que consomem 70% da energia nacional e emitem 40% dos gases do efeito estufa (Observatório do Clima, 2023), enquanto milhões são privados de direitos básicos.
A crise urbana como oportunidade: lições de This Changes Everything
Klein argumenta que a crise climática expõe falhas sistêmicas do capitalismo, mas também abre espaço para “saltos civilizatórios”. Da mesma forma, a crise urbana brasileira — com enchentes mortais, colapso na mobilidade e violência estrutural — revela a urgência de um projeto alternativo. Um desenvolvimento urbano inclusivo pode ser o catalisador para:
- Superar a lógica extrativista: cidades sustentáveis exigem romper com o extrativismo urbano, que trata o solo como mercadoria. A regularização fundiária de favelas e a taxação de imóveis ociosos, como propõem movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), redistribuiriam recursos e garantiriam moradia digna, alinhando-se à visão de Klein de uma economia baseada em justiça, não em acumulação.
- Democratizar o espaço e o poder: orçamentos participativos, conselhos gestores de políticas públicas e o fortalecimento de iniciativas como as “cidades educadoras” (ex.: experiência de Boa Vista-RR) são exemplos de como a gestão urbana pode ser um laboratório de democracia direta, contrariando a captura corporativa do Estado.
- Integrar justiça social e ambiental: projetos como ecobairros (ex.: Vila Flores, em Porto Alegre) e a expansão de energias renováveis em comunidades periféricas mostram que sustentabilidade não é privilégio de elites. Klein enfatiza que a transição energética deve ser justa, gerando empregos verdes e incluindo quem sempre foi excluído.
- Valorizar saberes locais e tecnologias sociais: a agricultura urbana em favelas do Rio de Janeiro e as soluções de drenagem natural em Recife, inspiradas em saberes tradicionais, desafiam a dependência de megaprojetos inacessíveis. Essa “ecologia de saberes”, como diria Boaventura Santos, ressoa com a defesa de Klein por alternativas radicais e descentralizadas.
A cidade como projeto de nação: para além do capitalismo dependente
Assim como Klein vê a crise climática como um convite a “mudar tudo”, a reconstrução das cidades brasileiras pode inaugurar um novo pacto social. Isso exige:
- Planejamento integrado: vincular mobilidade, habitação e meio ambiente em políticas intersetoriais, como o Estatuto da Cidade (2001) prevê, mas nunca efetivou.
- Economia solidária: fomentar cooperativas de reciclagem, bancos comunitários e feiras locais, reduzindo a dependência de cadeias globais exploratórias.
- Controle público dos comuns urbanos: reestatizar serviços como água e transporte, seguindo exemplos como o de Paris, que retomou o controle público da água em 2010.
Conclusão: a utopia concreta das cidades justas
Naomi Klein lembra que “não há escolha entre ação climática e bem-estar social: são a mesma luta”. No Brasil, a luta por cidades inclusivas é a luta por um novo projeto nacional — que enfrente o passado colonial, a dependência externa e a cultura do apartheid socioespacial. As periferias, hoje epicentros de criatividade e resistência, já apontam caminhos: de ocupações que reivindicam moradia a mutirões de reflorestamento. A tarefa é transformar essas sementes em política. Como dizia o geógrafo Milton Santos, “a cidade é a casa do povo. Construí-la com justiça é, afinal, a revolução mais urgente”.