Tarson Núñez*
Os resultados das eleições municipais de outubro já foram objeto das mais variadas avaliações nas últimas semanas. Estas avaliações não são meramente exercícios jornalísticos ou acadêmicos, porque o balanço dos resultados também incide sobre o processo político. Este impacto se dá tanto do ponto de vista da correlação de forças na sociedade como do impacto dos resultados sobre cada um dos atores políticos envolvidos na disputa.
No primeiro caso, a avaliação de quem ganhou e quem perdeu fortalece e/ou enfraquece projetos políticos. Os vencedores são apontados como exemplos do caminho a ser seguido. No segundo caso, esta avaliação dos resultados baliza também o debate interno acerca das estratégias de cada um dos partidos políticos. Portanto é evidente a importância de que este balanço seja feito com base em métodos rigorosos e evidências empíricas.
Mas o fato é que a avaliação dos resultados das eleições municipais de outubro até agora tem sido feita de uma forma pouco sistemática e muito superficial. Tanto nos meios de comunicação, entre os “analistas especializados”, como dentro e em torno dos partidos políticos, a discussão sobre o processo eleitoral muitas vezes se baseia menos nos dados empíricos e mais no viés político de cada um dos analistas. Por isso a ideia nesta nota é a de apresentar alguns dados e uma leitura mais crítica e complexa dos resultados que saíram das urnas em outubro deste ano.
Olhando para além da superfície
Quando se olha as avaliações nos grandes meios de comunicação há um elemento em comum, a ideia de que houve uma vitória do “centro”, que as eleições marcaram um rechaço ao radicalismo, tanto de direita como de esquerda. A isto se soma uma ideia de que a esquerda perdeu espaço porque o eleitorado se demonstrou mais conservador. Como decorrência desta análise, comum a quase todos os analistas da mídia corporativa, três mensagens subjacentes são apresentadas.
A primeira é de que o governo de Lula precisa levar mais em conta as demandas dos seus aliados de centro, que teriam saído fortalecidos das eleições. A segunda é a de que a extrema direita não foi bem-sucedida, uma vez que cresceu muito menos do que se propunha. E a terceira é a de que a mensagem desta eleição é de que a esquerda perdeu, e que, portanto, precisa moderar o seu discurso e suas propostas, pois o eleitorado teria se tornado mais conservador.
O ponto de partida para que se possa avaliar a consistência desta avaliação é olhar o número de vitórias de cada um dos partidos na eleição municipal. Mas isto não é o suficiente, pois os resultados precisam ser analisados de forma estática. É preciso, de saída, analisar a evolução dos resultados tendo em conta a situação anterior, comparando os números obtidos com a quantidade de prefeituras que cada um dos partidos tinha eleito na disputa anterior, as eleições de 2020. Com isso se pode identificar a trajetória de cada uma das forças políticas. O quadro abaixo mostra os resultados de 2024 e a sua evolução em relação às eleições anteriores.
Um olhar mais cuidadoso para os números, portanto, permite fazer leituras muito distintas acerca dos resultados de outubro de 2024. De saída se pode constatar que a tal vitória do centro é uma miragem. A ideia de uma vitória do centro se sustenta no fato de que o PSD, o MDB e o PP elegeram, de longe, o maior número de prefeituras. Isto é fato inegável. Mas os resultados no seu conjunto mostram um quadro muito mais complexo. É importante olhar a evolução de cada força política em relação ao quadro anterior. Porque ao mesmo tempo que forças de centro cresceram, outros partidos deste mesmo espectro político tiveram muitas perdas. Isto mostra que o que aconteceu de fato foi um realinhamento das forças de centro. O PSD elegeu 235 prefeituras a mais do que em 2020, o MDB 80 a mais e o PP 67 a mais. Ao mesmo tempo o PRD (ex PTB) perdeu 184 prefeituras no mesmo período e o Podemos perdeu 339. Portanto não houve um aumento do eleitorado de centro, que continua com um espaço político semelhante ao que tinha nas eleições anteriores.
O quadro abaixo nos permite visualizar de forma mais nítida estes resultados. Nele agrupamos os partidos em quatro grandes blocos: a) a extrema direita: (PL, Republicanos e Novo); b) o “centrão”: PP, PSD, União, PRD, Podemos e todos os outros pequenos partidos deste campo político; c) o centro tradicional: MDB, PSDB e Cidadania; e d) a esquerda: PDT, PSB, PT, PSOL, PV, Rede e PCdoB. Este é um agrupamento meio arbitrário, mas eficiente para efeitos da compreensão da dinâmica política, pois se pode perceber a evolução dos partidos de uma eleição para a outra. Para isto este tipo de agrupamento em blocos pode ser bastante esclarecedor, como se pode ver abaixo.
O “vitorioso” centro de fato reduziu o seu peso em termos de prefeitos eleitos. O resultado final do deslocamento de votos internos ao bloco do “centrão”, onde alguns partidos ganharam muito e outros perderam muito, resultou, de fato, em uma perda agregada de 222 prefeituras em relação à 2020, o que representa um recuo de 8%. E o resultado do bloco do centro mais tradicional foi ainda pior: o MDB ganhou 80 a mais, mas o PSDB perdeu 245 prefeituras entre 2020 e 2024. O Cidadania perdeu 33. No seu conjunto as forças do centro tradicional, portanto, perderam espaço nestas eleições. E esta perda foi muito significativa, um recuo de 18%. Esta trajetória dos votos do “centrão” e do centro tradicional mostra que a ideia de que o eleitorado mandou nestas eleições uma mensagem de moderação é bastante equivocada.
Isto porque os melhores resultados deste processo eleitoral, do ponto de vista do crescimento do número de prefeitos eleitos, foram os da extrema direita. Ainda que no conjunto este bloco fique em terceiro lugar, atrás do “centrão” e do centro tradicional, os partidos da extrema direita apresentaram um crescimento de 73% em relação às eleições anteriores. O nanico partido Novo passou de uma prefeitura em 2020 para 19 em 2024. O Republicanos passou de 211 para 440 prefeituras, um crescimento de mais de 100%. E o PL, que teve resultados muito longe das suas expectativas iniciais, ainda assim passou de 345 para 517 prefeituras. Um resultado, sem dúvida, muito significativo. O PL foi, individualmente, o partido que obteve o maior número de votos, 15,5 milhões de votos, 13,9% do total. O quadro abaixo, com a votação de cada um dos partidos ajuda a compreender o peso de cada uma das forças políticas.
Este quadro com o número de votos também nos ajuda a entender de forma melhor a complexidade do quadro político que emerge das eleições de 2024. E através dele se pode ver de uma forma distinta os resultados. O PL é apenas o 5º em termos do número de prefeituras eleitas, mas é o partido que teve mais votos para prefeito. Isto acontece também com o PT, que fica em 9º lugar em termos de prefeituras eleitas, mas é o 6º em termos de votação. Olhando estes números em termos dos blocos de partidos, a extrema direita elegeu 17% das prefeituras, mas teve 22% do total de votos e a esquerda elegeu apenas 13% dos prefeitos, mas fez 20% dos votos (um em cada cinco dos eleitores votou na esquerda). Já os partidos do “Centrão”, os supostos vencedores, elegeram quase metade das prefeituras (49%) mas obteve apenas 39% dos votos.
O único aspecto mais próximo da realidade na análise predominante na mídia corporativa é o que diz respeito resultado tímido das forças da esquerda. Este recuo aconteceu de fato mas, como vimos acima, não deve ser superestimado. E está associado, como veremos adiante, com a alta abstenção eleitoral. O bloco de partidos mais progressistas perdeu 62 prefeituras entre 2020 e 2024, um recuo de 8%. Ainda assim, este recuo se deu fundamentalmente em função das perdas do PDT, que encolheu de 314 para 151 prefeituras, ou seja, mais da metade das prefeituras que tinha conquistado em 2020. A isto se somam os resultados do PCdoB, que caiu de 46 para 19 prefeituras.
Mas o PT passou de 183 prefeituras em 2020 para 252 em 2024, um crescimento de 37,7%. E o PSB passou de 253 para 312 no mesmo período, aumentando em 23,3% o número de prefeitos eleitos. Ou seja, o recuo à esquerda se deu por conta das perdas daquele partido deste bloco que é mais próximo do centro. Além disso, no caso do PT, é importante considerar que, por conta da estratégia de suporte ao governo federal em muitos casos o partido abriu mão de ter candidaturas, apoiando outros partidos da coalizão governista. Deste movimento resulta que o PT, além das 252 prefeituras, elegeu também 290 vices em coligações com outros partidos.
Em resumo, do ponto de vista dos resultados, a suposta vitória dos partidos do centro do espectro político na verdade expressou apenas uma certa inércia política, uma vez que estes partidos apenas mantiveram um espaço que já estava consolidado a muito tempo. E como são partidos que já tinham muitas prefeituras, o sucesso na maior parte dos casos este bloco foi resultado de reeleições. Esta inércia foi certamente beneficiária do enorme montante de recursos que vieram das emendas parlamentares, que garantiu que a imensa maioria dos prefeitos candidatos à reeleição fossem reconduzidos às prefeituras. Já a derrota da esquerda, como vimos, é muito circunscrita aos maus resultados do PDT e do PCdoB.
Mas a evolução mais notável nesta eleição foi o dos partidos da direita. Este bloco em 2024 superou o bloco da esquerda como terceira força política. E este fortalecimento se deu independente do fracasso individual de sua principal liderança, Jair Bolsonaro. O ex-presidente sofreu uma série de derrotas com candidatos que foram pessoalmente apoiados por ele, como Ramagem no Rio de Janeiro, Marcelo Queiroga em João Pessoa ou Bruno Engler em Belo Horizonte. De uma lista de 68 candidatos que contaram com o apoio direto de Bolsonaro 44 deles não foram eleitos. Mas o que isso mostra é que, de fato, a extrema direita é mais plural e diversificada, e não depende apenas da figura do ex-presidente. O resultado das eleições mostra que a direita radical como projeto político vem em trajetória de crescimento, independente de lideranças individuais. E neste caso lideranças como Tarcísio de Freitas, Ronaldo Caiado e mesmo Pablo Marçal emergem como alternativas para a disputa do espólio que será deixado pelo bolsonarismo em decadência.
A recusa da participação eleitoral
Outro elemento objetivo que aponta os limites da tese de que o eleitorado se deslocou para o centro e está mais conservador é o fato de que quando se discute isso se está olhando apenas para aquele contingente de eleitores que de fato votou em algum candidato. Mas para compreender efetivamente o cenário político brasileiro a partir das eleições de outubro não é possível ignorar o fato de que uma parte muito significativa dos cidadãos se recusou a participar das eleições.
As abstenções, os votos nulos e brancos foram a maioria em muitos dos municípios, especialmente nas capitais e nas cidades maiores. No país como um todo 21,7% dos eleitores aptos não compareceram no primeiro turno. Foram quase 34 milhões de pessoas que não se preocuparam em votar. A estes se somam mais 5,3 milhões de votos nulos e mais 3,4 milhões de votos em branco. No total as abstenções, votos brancos e nulos representam 28,8%. Mais de um quarto dos eleitores se recusou a votar em qualquer um dos candidatos disponíveis.
Do ponto de vista da política, estes números apontam para um enorme desgaste da política e dos políticos no Brasil. Pois o rechaço à participação eleitoral também é por si mesmo, um ato político. O desinteresse e a recusa a participar na maioria dos casos estão relacionados a uma descrença no sistema, uma percepção de que o processo eleitoral não altera a vida do cidadão, de que os políticos são todos iguais e de que o voto não vai fazer diferença. Este enorme contingente de eleitores que não votou, votou em branco ou nulo, está de manifestando de forma ativa o seu repúdio ao que entende como um sistema que não os representa. Este tipo de percepção está longe de ser um pensamento moderado, ou centrista. Pelo contrário, expressa uma postura de crítica radical em relação a um processo político que não é mais capaz de sensibilizar os eleitores.
É evidente que o desinteresse pela política e pelas eleições representa também uma certa despolitização, mas esta despolitização se constitui em uma mistura de conformismo (“nada vai mudar, não adianta votar”) com inconformismo (“não vou votar porque sou contra os políticos e tudo que está aí”). Ainda assim, tanto em sua dimensão mais cética e imobilista quanto na sua dimensão de rebeldia e revolta contra o sistema, representam uma visão crítica em relação às eleições, à democracia representativa, ao sistema político.
O cidadão que se abstém é tudo menos um moderado, que considera que as coisas devem continuar como estão. Ele é um desiludido, que não se sente representado pelo sistema.
A sensação geral de desafeição em relação ao processo político é generalizada, e não só no Brasil. E atinge não apenas aqueles cidadãos que se abstém, vota em branco ou nulo.
O desgaste do sistema é majoritário entre os cidadãos. Uma pesquisa realizada no ano passado em todos os países da América Latina mostrou que 69% dos entrevistados se sente insatisfeito ou muito insatisfeito com o funcionamento da democracia no seu país. No Brasil são 66%. Dois terços do eleitorado em nosso pais se declaram insatisfeitos. Em outra pesquisa desta mesma instituição, do ano de 2020, 73% dos cidadãos entrevistados afirmavam que o seu país “é governado por grupos poderosos que agem em seu próprio benefício” enquanto apenas 22% afirmavam que “o país é governado para o bem de todo o povo”. Este é o pano de fundo que embala um enorme contingente de cidadãos em sua decisão de não votar, votar nulo ou em branco.
Uma análise do perfil do contingente de cidadãos que compõem este grupo que se recusou a votar permite compreender também de maneira mais precisa qual é a tendência real do eleitorado no seu conjunto, que inclui os votantes e os não votantes. O perfil do público que se abstém mostra que este contingente tem uma composição muito mais próxima, do ponto de vista territorial, demográfico e sociológico, das características do eleitorado da esquerda.
Abstenção nas grandes cidades
A abstenção foi muito maior nas grandes cidades, onde em geral o voto é mais politizado e o eleitorado mais progressista. Para uma abstenção geral de 21,7% no país, tivemos em Porto Alegre, por exemplo, uma abstenção de 31,5%. Na capital do RS número de abstenções, de votos brancos e nulos foi maior do que a votação do candidato vencedor. Em todas as grandes capitais do país a abstenção foi em torno de um terço dos eleitores e, assim como em Porto Alegre, em muitas delas a soma das abstenções, dos votos brancos e nulos foi maior do que a votação dos prefeitos eleitos.
Estes altos índices se apresentam também na região metropolitana de Porto Alegre onde Cachoeirinha teve 28,8% de abstenção, Novo Hamburgo 28,3% e Guaíba 25,2% e Esteio 29,8%. Da mesma forma os índices foram acima da média nas cidades maiores do interior do estado, como em Caxias (25,1%), Passo Fundo (24,5%) e Bagé (27,2%). Este cenário se repete em escala nacional.
Portanto nas capitais, nas cidades maiores e nas regiões metropolitanas houve uma redução da participação eleitoral. E estes são territórios geralmente associados a uma votação na esquerda. Por outro lado, nas pequenas cidades do interior, geralmente mais conservadoras, os índices de abstenção foram muito menores. Isto é que fez com que, no cômputo geral, a votação da esquerda seja menor do que poderia ser e que o conservadorismo dos eleitores dos municípios pequenos seja superdimensionado.
Este recorte territorial se revela consistente com o recorte demográfico geralmente associado a um voto mais à esquerda. Segundo dados do TSE a abstenção é maior naquelas faixas do eleitorado de menor escolaridade. Em Porto Alegre, entre os eleitores com ensino fundamental a abstenção foi de 44,3%, caindo para 31,9% entre os eleitores com ensino médio e recuando ainda mais, para 26,5% entre os eleitores com ensino superior. Como via de regra o perfil da escolaridade corresponde quase que diretamente ao perfil da renda é possível inferir que os setores populares, de renda mais baixa, são os que se caracterizam pela maior abstenção. E este é o eleitorado que tende a ser associado ao voto na esquerda.
Da mesma forma o perfil etário da abstenção também se associa a um perfil do eleitorado da esquerda. A abstenção é muito maior entre os mais jovens, atingindo 33,8% na faixa dos 18 aos 20 anos e chegando a 41,4% na faixa de 21 a 29 anos. E entre os eleitores mais velhos a abstenção cai drasticamente, chegando a 26,3% na faixa de 45 a 49 anos e 22,8% na faixa dos 50 aos 54 anos. A juventude, que historicamente vota de maneira mais progressista, votou menos nestas eleições de outubro. E os mais velhos, tendencialmente mais conservadores, votaram mais. Da mesma forma, o perfil étnico da abstenção também estabelece um viés favorável ao conservadorismo. A abstenção foi de 25,1% entre os eleitores pardos e 29,9% entre os eleitores negros, ao passo que entre os eleitores brancos a abstenção foi de 17,5%.
Estes dados permitem constatar que a abstenção foi consideravelmente mais alta junto a um contingente de cidadãos que é muito mais próximo do perfil do voto da esquerda do que o do conservadorismo. Portanto as afirmações de que o eleitorado se tornou mais conservador só podem ser consideradas verdadeiras na medida em que omitem o fato de que uma parte importante da cidadania não participou do processo eleitoral. E mais ainda, que o eleitorado que se distanciou da participação é um contingente que historicamente tendia a votar nos candidatos mais à esquerda.
Os dados apresentados acima permitem afirmar que as versões mais correntes acerca do significado dos resultados eleitorais de outubro de 2024 são muito mais ideológicas, resultante de um viés político de seus autores, do que fundamentadas em números. A vitória das forças de centro se revela mais uma ilusão estatística do que um fato. Quem já tinha muitas prefeituras continuou tendo, especialmente com orçamentos turbinados por emendas parlamentares. Mas como vimos acima, estas forças de centro tiveram um desempenho com pouco crescimento, ou mesmo perdas. Mesmo quando cresceram, as forças de centro apresentam uma trajetória que, no longo prazo, revela uma perda de espaço. O MDB, por exemplo, que cresceu de 784 prefeituras em 2020 para 864 em 2024, tinha conquistado 1036 na eleição anterior em 2016.
Extrema direita vem crescendo
Quem realmente vem crescendo neste período é a extrema direita, que vem elevando de forma consistente a sua votação a cada eleição que passa. Se o PL elegeu muito menos prefeituras do que tinha projetado, isto não pode obscurecer o fato de que este partido foi o mais votado entre todos os demais. E que as outras forças da direita radical também estão entre as que mais cresceram, tanto em termos de votação como de prefeitos eleitos. A tendência do eleitorado, portanto, não é a da moderação, mas a de buscar alternativas que se propõem justamente ao contrário, a “mudar tudo isto que está aí”. Esta tendência se mostra também no campo da esquerda, onde o moderado PDT foi quem mais perdeu, enquanto o PT teve crescimento.
Já os dados da abstenção, dos votos brancos e nulos mostram que o que aconteceu de fato é que uma parte do eleitorado potencial da esquerda vem se afastando dos processos eleitorais. Portanto o crescimento de um eventual conservadorismo resulta menos de uma mudança ideológica ou política e mais de uma mudança na composição do eleitorado que de fato votou. Um significativo contingente de eleitores que em geral forma a base do eleitorado da esquerda está tendendo a se afastar da política. Portanto há mais insatisfação, desilusão e rebeldia do que moderação e conservadorismo na sociedade brasileira e no eleitorado.
Esta situação indica que qualquer movimento, do governo Lula ou das forças da esquerda, em direção ao centro e à moderação, pode ter como resultado um aprofundamento do distanciamento do partido em relação às suas bases sociais. O apelo à moderação tende a levar a um resultado inverso ao que se propõe. Uma maior aproximação ao status quo, um discurso mais moderado e mais alinhado ao que seria este pensamento supostamente majoritário, tenderá apenas a aprofundar a desilusão e à percepção de que “os partidos são todos iguais”. O eleitorado não se tornou conservador, o que aconteceu é que uma parte significativa do eleitorado rebelde e inconformista está se apartando do processo eleitoral.
Portanto estas eleições estão muito longe de apontar para um contexto de estabilização, onde os setores mais moderados se tornam preponderantes e deslocam o eixo da política para o centro. Pelo contrário, o que os resultados mostram é um quadro de erosão da estabilidade do sistema político, com um contingente crescente de eleitores se distanciando da participação eleitoral ou optando por fortalecer aquelas alternativas que se declaram favoráveis a transformações mais profundas da realidade em que se vive hoje no país.
* Doutor em Ciência Política pela UFRGS, pesquisador do Observatório das Metrópoles.
Artigo publicado originalmente no Brasil de Fato RS, em 27 de novembro de 2024.