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Publicado pela Revista Cadernos Metrópole (Qualis/CAPES A1), está disponível o dossiê “Ilegalismos e a produção da cidade”, que reúne contribuições nacionais e internacionais sobre situações concretas de atuações de grupos armados em relação com dinâmicas urbanas.

O dossiê foi organizado por Orlando Alves dos Santos Junior, pesquisador e membro do Comitê Gestor do INCT Observatório das Metrópoles, Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI-UFF), e Lia Rocha, coordenadora do CIDADES – Núcleo de Pesquisa Urbana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Os três integram a “Rede Ilegalismos e a Produção da Cidade”, que envolve grupos de pesquisa de diferentes universidades, ONGs, movimentos sociais, instituições estatais e organizações filantrópicas.

Segundo os organizadores, são grandes os desafios de compreensão empírica e conceitual para definir as diferentes configurações dos grupos armados, especialmente as milícias, e entender os processos correlatos de militarização e milicialização, tendo em vista a diversidade desses fenômenos nas cidades brasileiras.

O extrativismo presente nas suas práticas econômicas rurais e urbanas, o autoritarismo político e social como medida de construção do tecido social, ambos situados em práticas e representações sociais, constituem fenômenos multifacetados que exigem a composição de diferentes pesquisas para serem mais bem compreendidos.que a mobilidade urbana é um pilar central na urbanização atual, refletindo um componente essencial do cotidiano global urbano, afirmam.

Na apresentação do dossiê, os organizadores apresentam algumas notas inconclusas sobre milícias, facções do tráfico e configurações de ilegalismos, com base nos seguintes pontos:

  • Configurações de controle armado territorial são fenômenos históricos e conformaram-se a partir da progressiva organização de grupos criminosos;
  • A oposição milícia/tráfico é estruturante dessas configurações;
  • O elemento central de distinção das configurações de controle armado territorial não é o grau de violência;
  • O elemento central de distinção das configurações de controle armado territorial é o modelo de negócios;
  • A legitimidade dos grupos armados tem forte relação com a sua capacidade de proporcionar a sensação de paz e segurança nos territórios sob o seu controle e no seu entorno;
  • A existência de diferenças nas configurações não significa a inexistência de interseções;
  • As estruturas de organização, articulação e comando também são elementos de distinção, bem como as formas de entrelaçamento com as instituições legais e policiais;
  • O controle armado dos territórios tem grande impacto sobre as dinâmicas associativas e políticas e também envolvem formas de resistência e contestação;
  • As configurações dos grupos territoriais armados estão ligadas a regimes de ilegalismo, jogos de poder e mercadorias políticas;
  • Milícias e grupos do tráfico de drogas têm apresentado diferentes padrões de relação com a religiosidade popular nos territórios sob controle;
  • Em conjunto, tráfico, milícia e polícia configuram dispositivos inseparáveis de biopoder, de gestão da vida e morte, de eliminação dos indesejáveis;

A seguir, apresentamos os 13 artigos selecionados no âmbito do dossiê temático e os seis textos adicionais que completam o número:

O artigo de Camila de Lima Vedovello, intitulado “Chacinas urbanas na cidade e na Região Metropolitana de São Paulo (2009-2020)“, faz um importante esforço de pesquisa para o entendimento das chacinas em São Paulo. Analisando 828 chacinas no estado e 138 na capital, no período de 2009-2020, a autora encontra padrões bem definidos, que ajudam a caracterizar o fenômeno. Em grande parte desses eventos, a autora encontra as forças policiais atuando de forma extralegal. Esse cenário tem muitas linhas de continuidade com a atuação dos chamados esquadrões da morte paulistanos, mas é atualizado pela militarização em curso da segurança pública, na medida em que o impulso para o extermínio de higienização social é também acompanhado de outros, como disputas por mercados ilegais e vinganças institucionais.

Matheus Vieira, em artigo intitulado “Bichos de coturno: a relação entre bicheiros e milicianos da Zona Oeste“, recupera, a partir de registros como processos jurídicos, relatórios e artigos de imprensa, a relação antiga entre bicheiros e milicianos no Rio de Janeiro, destacando como o negócio do jogo do bicho se constituiu na relação de seus capos com a política institucional, tendo, na transação de mercadorias políticas com policiais, seu modus operandi. Com o desenvolvimento das milícias enquanto grupos interessados no controle territorial para exploração de mercados, bicheiros e milicianos passam a se relacionar em outros termos, especialmente a partir da ascensão de alguns milicianos à cúpula da política institucional do estado.

O artigo de Leandro Marinho e André Rodrigues, intitulado “Violência política na Baixada Fluminense: poder político e poder de matar“, analisa a violência contra agentes políticos na Baixada Fluminense, área localizada na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, conformada por 13 municípios. Destacando o nexo histórico entre a configuração da região, a constituição dos poderes políticos locais e o uso de meios violentos, o artigo argumenta que a conversão do poder armado em capital político ocorre por meio de vários dispositivos, entre os quais o controle dos territórios por grupos criminosos armados e o uso da violência, em especial o poder de matar, nas regiões estudadas.

No artigo “Coronelismo sem sujeito: ilegalismos coloniais e concentração de poder“, José César de Magalhães Júnior aprofunda a análise sobre a gestão diferencial dos ilegalismos, colocando em debate o cânone foucaultiano e a atualização feita por Graham (2016) para o contexto colonial com a tradição historiográfica crítica brasileira. Para José César, os ilegalismos presentes na experiência colonial foram descritos e analisados em profundidade por autores brasileiros, notadamente Victor Nunes Leal, na obra Coronelismo, enxada e voto, originalmente de 1949 (Leal, 2012). Sua descrição do coronelismo como um “sistema” de governo que organizou a vida política brasileira a partir das zonas cinzentas entre práticas legais e ilegais seria, nas palavras do autor, uma antecipação da análise da “gestão diferencial dos ilegalismos”.

Caos como estratégia e a ‘proteção’ como mercadoria na ‘Cracolândia’ paulistana” é o artigo de autoria de Thiago Godoi Calil e Aluizio Marino. O ponto de partida é a crítica às políticas de enfrentamento do território conhecido como Cracolândia paulista, implementadas desde 1997, a partir de grandes operações policiais, encarceramento e promoção de deslocamentos forçados dos usuários de crack, utilizando meios violentos, incluindo métodos de tortura. O argumento central do artigo é que a dispersão das pessoas e a violência empregada nas operações produzem uma situação de caos que promove condições favoráveis aos projetos de renovação urbana da área central de São Paulo, gera o apoio popular às operações e transforma a segurança em mercadoria política.

Laurindo Dias Minhoto, Pedro de Almeida Pires Camargos e Eduardo Altheman C. Santos, no artigo “Militarização, milicianização e gestão do crime na cidade neoliberal“, situam a cidade como palco principal dos processos de emergência das novas formas de controle, securitização, guerra e racionalidade econômica globais. As relações entre “novos desenhos urbanos, gestão populacional diferencial, punição e capitalismo em sua forma neoliberal” ganham materialidade na análise dos autores da Intervenção Federal na Segurança Pública do Rio de Janeiro em 2018.

Foto: Agência Brasil.

No artigo de Ivan Zanatta Kawahara, intitulado “Os grupos armados e a organização do trabalho no mercado imobiliário“, o foco é o mercado imobiliário em favelas, no qual é caracterizada a ação dos grupos armados assim como o seu modo de organização nesse mercado. No contexto de incapacidade de o poder público de universalizar o acesso à habitação de interesse social, o autor argumenta que tanto o tráfico quanto a milícia operam com estruturas mais ou menos empresariais no mercado imobiliário, mobilizando trabalho e gerando lucros.

Em “Estado, ilegalidade e a produção do espaço de Culiacán, Sinaloa, México“, Diana Zomera Partida e Antonio Fuentes Díaz analisam intensas transformações urbanas na cidade de Culiacán, estado de Sinaloa, no México. Os autores descrevem de forma muito pormenorizada o grande afluxo das proximidades camponesas para as periferias urbanas da cidade, que fez a mancha urbana aumentar quatro vezes de extensão, no contexto de atuação do famoso Cartel de Sinaloa no cultivo de papoula, maconha e da produção do ópio. Tais transformações articulam ilegalidades e racionalidade neoliberal, intensificando as desigualdades sociais e, ao mesmo tempo, difundindo práticas de ostentação criminal.

O artigo de Isadora de Andrade Guerreiro, “Produção imobiliária em periferias de São Paulo: ilegalismos sob lógica rentista“, organiza muito claramente como as relações entre a mudança da estrutura produtiva, do mercado de trabalho, do acesso ao crédito e das políticas de habitação conduziram a uma atuação cada vez mais central do PCC nas formas de associativismo e da produção imobiliária em São Paulo. A autora demonstra como os modelos rentistas de produção habitacional se associam de forma muito concreta e coerente com atores centrais que se encontram, de maneiras variadas, próximos ao PCC.

Na sequência, o artigo “‘Jogo de espelhos’: comunidades morais entre ‘polícias’, ‘milícias’, ‘pi-lícias’” cariocas, escrito por Eduardo de Oliveira Rodrigues, tem como foco agentes civis que desejam ingressar na polícia e que muitas vezes trabalham eventualmente de forma ilegal para policiais no mercado de segurança privada, denominados informalmente pi-lícias. A partir da sua inserção em curso preparatório para candidatos à carreira policial militar no Rio de Janeiro, o autor argumenta que a construção de “comunidades morais”, envolvendo “pi-lícias”, policiais militares e milicianos, funcionaria como um dispositivo importante no agenciamento de certos mercados ilegais da segurança privada na cidade e também em certas práticas de investigação policial ilegal.

Larissa Gdynia Lacerda e Vera da Silva Telles investigam, no artigo “Fronteiras urbanas, mercados em disputa: jogos de poder na produção de espaços“, como a produção dos mercados urbanos de terra e moradia em São Paulo, atualmente, é também operada pelos “homens do PCC”, cujos negócios se expandem na mesma proporção e intensidade da frente de expansão urbana representada pelas ocupações e por assentamentos populares. Os ilegalismos emergem, nesse cenário, como forma pela qual esses agentes navegam no mercado imobiliário, através de práticas de proteção e extorsão, coerção e convencimento, conflitos e acomodações, em disputas e alianças com outros agentes econômicos em diferentes escalas de atuação.

Foto: Fernando Frazão (Agência Brasil).

Luiz Fábio S. Paiva, Suiany Silva de Moraes e Valéria Pinheiro analisam os impactos das facções nas formas de habitar e circular situadas no cotidiano de moradores de Fortaleza, Ceará, no artigo “Os efeitos sociais do crime na dinâmica de Fortaleza, Ceará, Brasil“. Tendo em vista a confluência entre a expansão da lógica faccional, suas disputas territoriais e os programas habitacionais de baixa qualidade para as moradias, sem promoção do convívio entre os moradores, as tensões nesses conjuntos habitacionais se tornaram uma constante, impedindo uma sociabilidade voltada às necessidades dos moradores e ampliando os espaços de controle social pelas facções, aqui incluindo o fato de as suas disputas produzirem fronteiras que impediam a livre circulação das pessoas.

Já “O cerco pelo terror em territórios em disputa na zona oeste/RJ“, de Monique Batista Carvalho e Jonathan Willian Bazoni da Motta, analisa o repertório de táticas de governo territorial de diferentes atores do “mundo do crime”, ao participarem da disputa por territórios na região da Praça Seca, Rio de Janeiro. Nas localidades “em disputa” pelos grupos armados, a vida é compreendida em termos de uma “guerra”: representação que ecoa a imagem compartilhada pelas mídias hegemônicas, que altera rotinas, suspende a possibilidade de controle e planejamento cotidianos e impacta negativamente na sensação de segurança. Tal experiência radical é nomeada, pelos autores, de “cerco pelo terror”, no sentido de uma experiência subjetiva marcada pela violência e pela ameaça constante.

Foto: Tânia Rêgo (Agência Brasil).

Além dos artigos reunidos no dossiê temático, este número dos Cadernos Metrópole traz mais seis artigos:

Raquel Oliveira Jordan é autora do artigo intitulado “Competências em disputa: regulamentação de construções no I Congresso de Habitação, 1931“. Esse artigo se debruça sobre o debate em torno das leis referentes a construções em São Paulo a partir do I Congresso de Habitação, de 1931. A autora sustenta que, apesar do foco na habitação, o Congresso também tematizou a regulamentação sobre construções, com abordagens muitas vezes contraditórias.

Em seguida, no artigo intitulado “A Região Metropolitana de Ribeirão Preto: alocação de recursos orçamentários em ODS“, Erasmo José Gomes propõe um método para avaliar a destinação de recursos financeiros voltados para o alcance dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODSs) – em especial o Objetivo 11: – cidades e comunidades inclusivas, seguras, resilientes e sustentáveis.

O artigo de Renato Balbim, “Gramáticas do desenvolvimento. Da economia informal aos assentamentos informais“, propõe refletir sobre o termo informal, recuperando a trajetória dos debates em torno da sua definição. A genealogia do conceito permite, ao autor, constatar o momento em que o termo passa a ser usado de forma generalizada e imprecisa, associando-se a conteúdos desclassificatórios e estigmatizadores.

Dando sequência, o artigo “Preço da terra e hierarquia urbana em uma cidade média: estudo de Uberlândia-MG“, escrito por Gabriel do Carmo Lacerda, debruça-se sobre os preços da terra urbana e a espacialização dos investimentos estatais, para discutir a estrutura hierárquica urbana da cidade de Uberlândia, em Minas Gerais.

Clarice Misoczky de Oliveira e Igor Nicolini, no artigo “Revisão de Planos Diretores no neoliberalismo avançado: o caso de Porto Alegre/RS“, refletem acerca dos efeitos da difusão do pensamento neoliberal sobre o processo de revisão dos planos diretores, tomando como foco a experiência de Porto Alegre/RS. Os autores argumentam que a difusão do ideário neoliberal se expressa, entre outras coisas, no enfoque produtivista da cidade, na gestão autoritária, na disseminação do planejamento por projetos e na fragmentação do plano diretor.

Por fim, o artigo “Espacialidade e controle dos corpos: Boa Vista e a mobilidade humana venezuelana“, escrito por João Carlos Jarochinski Silva, Gabriella Villaça e Vanessa Palácio Boson. Nesse artigo, os autores se propõem a refletir sobre as transformações socioespaciais na cidade de Boa Vista (Roraima) após a chegada de um contingente significativo de migrantes venezuelanos, a partir de 2015.

 

Revista Cadernos Metrópole surgiu em 1999 como um dos principais produtos do INCT Observatório das Metrópoles e tem como principal objetivo difundir os resultados da análise comparativa entre as metrópoles brasileiras. Na última avaliação Qualis Periódicos (2017-2020) da CAPES, recebeu classificação A1. A revista é produzida em parceria com a EDUC (Editora da PUC-SP). Conheça a história do nosso periódico nesse post da Scielo (clique aqui).