Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz*
Refletir sobre o futuro das cidades é um grande desafio, que tem acompanhado disciplinas como o urbanismo e o planejamento urbano desde suas origens. No entanto, a verdade é que refletir sobre o futuro em geral é sempre desafiante, especialmente quando essa reflexão é feita em períodos de expressivas mudanças históricas. Isso porque, em fases como essas, há muita incerteza e, com frequência, manifesta-se, em diferentes âmbitos, um padrão de crise e reestruturação da vida em sociedade.
Na economia, por exemplo, é comum sustentar que as grandes crises do capitalismo marcam a passagem de um velho a um novo regime de acumulação, para utilizar a linguagem dos regulacionistas. Assim, após a crise sistêmica dos anos 1970, um regime de acumulação financeirizado substituiu o regime fordista. Desde então, com a predominância do capital fictício, os processos de acumulação se tornaram muito instáveis, e as crises, mais frequentes.
No campo das relações internacionais, por sua vez, existe um amplo debate sobre como os episódios mais críticos da geopolítica, particularmente as grandes guerras, contribuem para estabelecer a divisão entre antigas e novas ordens mundiais. Hoje, diante da ascensão da China e no contexto do que parece ser uma Guerra Fria 2.0, reloca-se a polêmica sobre a estabilidade do sistema mundial, que vinha sendo hegemonizado pelos Estados Unidos. Com efeito, não se sabe muito bem para onde vai o equilíbrio de forças entre as potências mundiais.
No domínio dos estudos culturais, também se costuma fazer alusão a algo como uma crise ou, no mínimo, um mal-estar que opera como divisor de águas entre paradigmas de representação da realidade. Cabendo destacar que tudo isso não ocorre de maneira isolada, bastando mencionar, a título de ilustração, o clássico Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural, de 1989, escrito por David Harvey, cuja hipótese fundamental era a seguinte: “Há algum tipo de relação necessária entre a ascensão de formas culturais pós-modernas, a emergência de modos mais flexíveis de acumulação do capital e um novo ciclo de compressão do ‘tempo-espaço’ na organização do capitalismo”.
Atualmente, quando nos aproximamos do fechamento do primeiro quartel do século XXI, vivemos algo parecido. Este século tem se caracterizado, até agora, por um complexo padrão de crise e reestruturação. Há, no Brasil e no mundo, diversas crises em curso. Vladimir Safatle, em seu Alfabeto das colisões, fala, por exemplo, de uma série de crises conexas que atravessam o país. E vários outros autores e autoras defendem argumentos semelhantes, sugerindo que estamos diante de múltiplas crises (econômicas, sociais, políticas, socioecológicas etc.), as quais abrem caminho para mudanças disruptivas ou são impulsionadas por elas.
No mundo dos negócios, considera-se que inovações disruptivas são as que expressam o poder de algumas empresas de promover mudanças radicais na produção e no consumo de bens e serviços. O século XXI está repleto de inovações desse tipo, a começar por aquelas identificadas com o advento do capitalismo de plataforma, um conceito cada vez mais utilizado, desde que Nick Srnicek publicou, em 2016, seu Platform capitalism. No entanto, não é preciso conhecer a fundo a obra de Srnicek para concluir que as plataformas digitais de serviços, as empresas-aplicativo e a expansão do e-commerce transformaram significativamente as experiências típicas da sociedade de consumo. Para o que contribuiu a pandemia de Covid-19, outro episódio crítico do século XXI, que funcionou como um catalisador do ajustamento geral das subjetividades aos imperativos das economias digitais/plataformizadas que já estavam em desenvolvimento. Também não é demais lembrar os impactos, igualmente críticos, do surgimento dessas novas economias no mundo do trabalho, cada vez mais instável e precário.
Em resumo, vivemos um momento crítico, pautado por incertezas e transformações estruturais, que se manifestam em todas as esferas da vida social. Portanto, o modo como habitamos nossas cidades, a maneira como seus problemas se expressam, o debate sobre sua solução; tudo isso, enfim, precisa ser colocado nesses termos. Ou seja, diante das turbulências do século XXI, o que está em jogo no futuro das cidades brasileiras? Quando se trata desse futuro, que temas merecem maior atenção, sobretudo em ano de eleições municipais?
Antes de tentar responder a essas questões, com base no que foi acumulado no âmbito do projeto “Observatório das Metrópoles nas eleições: um outro futuro é possível”, é necessário recordar que estamos diante de outra crise, a gravíssima crise das cidades brasileiras.
A crise urbana brasileira
A crise das cidades, notadamente das metrópoles, está constantemente em debate. As origens do urbanismo e do planejamento urbano, na passagem do século XIX para o XX, remetem não só às projeções que então se faziam sobre o futuro das cidades, mas também às tentativas de mobilizar técnicas e saberes em nome da solução de seus problemas.
“Crise urbana” é, portanto, uma expressão antiga e muito utilizada. Porém, nem sempre é explicitamente definida. Partindo de uma perspectiva que considera sobretudo o caso de países como o Brasil, isto é, países dependentes e periféricos, defendemos que a crise urbana deve ser definida como a incapacidade de reunir nas cidades, especialmente nas grandes cidades, as condições mínimas de reprodução biossocial, em termos de segurança pública, alimentar e ambiental; de mobilidade; de acesso ao emprego, à habitação, à saúde, à educação etc. Quer dizer, à exceção dos espaços ocupados pelas classes mais abastadas, os famosos bairros nobres, as cidades brasileiras são, em geral, estruturalmente incapazes de oferecer os bens e serviços indispensáveis ao que o imaginário popular chamaria de “vida digna”.
Entretanto, a crise estrutural das cidades brasileiras oscila de acordo com as conjunturas. Por exemplo, no período que se sucedeu ao golpe de 2016, mas também ao longo da pandemia de Covid-19, a crise urbana foi bastante agravada no país. No contexto de combinação entre inflexão ultraliberal e emergência sanitária, ela adquiriu níveis e formas de manifestação explosivos, como foi o caso do acentuado incremento dos índices de insegurança alimentar. Hoje, existem sinais de melhoria em alguns indicadores, quando comparados com esse momento mais crítico. Seja como for, é possível dizer que, no século XXI, agravada ou amortecida, a crise urbana brasileira diz respeito, principalmente, aos seguintes aspectos:
- tendência ao colapso dos sistemas de mobilidade;
- altos índices de desemprego, crescente informalidade e/ou baixos níveis de renda dos trabalhadores;
- expansão da violência;
- recorrentes tragédias socioambientais;
- crescente insegurança alimentar;
- permanência da precariedade e do déficit habitacional;
- ausência e/ou deterioração das infraestruturas físicas e sociais elementares;
- incremento da população em situação de rua.
É com base nesses e em outros aspectos fundamentais que se deve formular uma agenda (de pesquisa e ação) que contribua para solucionar os graves problemas das cidades brasileiras do século XXI (alguns dos quais encontram suas origens nos séculos XX, XIX ou mesmo antes). Trata-se de abrir caminho para um futuro alternativo, que não seja o da reiteração, em suas formas explosivas ou atenuadas, da crise urbana brasileira. Vejamos, então, alguns temas que merecem maior atenção.
Temas urgentes e incontornáveis
O projeto “Observatório das Metrópoles nas eleições: um outro futuro é possível” partiu dessa caracterização da crise urbana brasileira. Estamos aproveitando o ano eleitoral de 2024 para incidir na agenda pública e estimular o debate a respeito dos problemas e desafios das cidades do país. Desde janeiro, pesquisadores e pesquisadoras dos dezoito núcleos regionais que compõem o INCT Observatório das Metrópoles publicaram aproximadamente trezentos artigos em vários veículos da mídia corporativa, alternativa e de rede. A ideia é contemplar oito temas fundamentais.
O tema segregação urbana e desigualdades remete ao clássico problema das relações entre os padrões de segregação urbana e os mecanismos de produção/reprodução das desigualdades sociais: desigualdades de bem- estar urbano, de oportunidades (educacionais e de trabalho), de renda, raciais, de gênero etc.
O tema governança metropolitana demonstra como a falta de tratamento da “questão metropolitana” tem aprofundado a oposição entre o núcleo e a periferia das metrópoles brasileiras, ao mesmo tempo que bloqueia o desenvolvimento da rede urbana do interior do país. Cabe ressaltar que a união de municípios, com o propósito de encontrar soluções para dificuldades comuns, é uma das estratégias mais eficientes no campo do planejamento e da gestão urbanos, o que está em conexão com o tema gestão democrática e participação cidadã, com o qual chamamos a atenção para a necessidade de democratizar radicalmente os mecanismos e as vias institucionais de participação na elaboração e execução de políticas urbanas.
O tema ilegalismos e serviços urbanos pode causar estranhamento. No entanto, ainda que as políticas de segurança sejam de responsabilidade estadual, elas não devem ser negligenciadas nos debates municipais, uma vez que há muitas interfaces entre segurança pública, política urbana e justiça socioespacial. Estamos aqui claramente diante de um tema que poderíamos chamar de “emergente”.
Por seu turno, o tema moradia e política habitacional também pode ser considerado clássico. Não obstante, ainda que o direito à moradia seja amplamente reconhecido no direito internacional e tenha sido incluído na Constituição brasileira, falta muito para que ele seja efetivamente tratado com prioridade.
O tema mobilidade e política de transporte levanta questões que são, a um só tempo, clássicas e emergentes. E é por isso que temos nos orientado por propostas que sugerem um modelo alternativo de mobilidade, como a Coalizão Triplo Zero, que advoga uma mobilidade urbana com tarifa zero, zero emissões de carbono e zero mortes no trânsito. Uma das principais conexões aqui é com o tema transição ecológica, que sublinha a urgência de adaptação das cidades brasileiras aos impactos das mudanças climáticas, tanto quanto a necessidade de refletir (e agir) no campo das relações entre vulnerabilidade social e risco ambiental. Nesse caso, existem conexões ainda com o tema saneamento e meio ambiente, uma vez que, ao lado do clássico problema do atraso no acesso universal aos serviços de abastecimento de água, de coleta e tratamento de esgotos, surgem complexas questões a respeito do inadequado manejo das águas fluviais e pluviais no ambiente urbano. Manejo incapaz de fazer frente às ameaças de aumento das chuvas decorrentes da emergência climática, o que tem ficado cada vez mais evidente diante de sucessivas tragédias.
Esses são, para nós, os principais temas que desafiam as cidades brasileiras. Sustentamos que é em torno deles que se deve promover um amplo debate acerca do futuro de nossas cidades, tendo em vista as múltiplas crises, incertezas e mudanças estruturais do século XXI.
No entanto, é preciso ir além das atitudes típicas das “ciências parcelares”, isto é, aquelas que, segundo Henri Lefebvre, produzem um “campo cego” ao segmentar demais a análise da realidade urbana. Em suma, defendemos que, seja na esfera da pesquisa científica, seja na arena do debate público em torno do “que fazer”, é preciso ficar claro que crises e problemas “conexos” exigem soluções “conexas” e “complexas”. Enfim, no que tange à crise urbana, isso exige necessariamente instaurar e/ou fortalecer mecanismos de governança metropolitana, assim como resgatar o ideário da reforma urbana e do direito à cidade.
*Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro é professor titular do IPPUR-UFRJ e coordenador nacional do INCT Observatório das Metrópoles; e Nelson Diniz é professor do Departamento de Geografia do Colégio Pedro II e pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles.
**Texto publicado originalmente no jornal Le Monde Diplomatique Brasil.