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Anderson Kazuo Nakano¹
Henry Tomio Kreniski Maru²

Viver em áreas de risco de inundações, enchentes, deslizamentos e escorregamentos de encostas viola o direito à vida. Em 2010, segundo trabalho elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), havia 8.270.127 pessoas vivendo em 2.471.349 domicílios localizados em áreas de risco de 872 municípios brasileiros. Certamente, esse número aumentou na última década e deverá continuar crescendo na medida em que os impactos dos eventos climáticos extremos se intensificam com o aumento do aquecimento global.

Assim, ano após ano, a sociedade brasileira recebe notícias sobre ocorrências de inundações e deslizamentos em cidades localizadas em todas as macrorregiões do país. Muitas dessas ocorrências provocam perdas e danos materiais e humanos, como visto nos municípios da região serrana do Rio de Janeiro no verão de 2011, quando os impactos de várias inundações e deslizamentos provocaram a morte de aproximadamente mil pessoas, causando grandes prejuízos econômicos, urbanos e ambientais. Um ano após a ocorrência dessa tragédia, o Congresso Nacional aprovou a Lei Federal 12.608/2012, que instituiu a Política e o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil. Dentre as várias determinações previstas nesta Lei, constam as alterações introduzidas na Lei Federal 10.257/2001, o Estatuto da Cidade, na qual foi incluído o Artigo 42-A, que obriga a incorporação de conteúdos relativos à redução e prevenção de riscos nos planos diretores dos “municípios incluídos no cadastro nacional de municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos” (Lei Federal 12.608/2012, Artigo 26).

Diante dessa obrigação, os planos diretores desses municípios devem prever, dentre outros conteúdos, o “mapeamento contendo as áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos” (Lei Federal 10.257/2001, Artigo 42-A, Inciso II), o “planejamento de ações de intervenção preventiva e realocação de população de áreas de risco de desastre” (Idem, Inciso III), e “medidas de drenagem urbana necessárias à prevenção e à mitigação de impactos de desastres” (Idem, Inciso IV). Além disso, tais planos diretores devem considerar que “a identificação e o mapeamento de áreas de risco levarão em conta as cartas geotécnicas” (Idem, Parágrafo 1º).

Petrópolis (RJ). Foto: Tomás Silva (Agência Brasil).

Na prática, a inclusão do Artigo 42-A no Estatuto da Cidade obrigou os municípios com “áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos” a terem cartas geotécnicas de aptidão à urbanização, bem como mapeamentos de áreas de risco de enchentes ou inundações e de escorregamentos e deslizamentos de encostas. Obrigou, também, que os planos diretores desses municípios contemplem as prevenções desses riscos hidrológicos e geológicos.

Será que, em 2020, os municípios que tiveram registros de inundações e deslizamentos em 2023, segundo o Cemaden, estavam regulares perante as determinações relativas ao plano diretor, ao mapeamento de riscos geológicos e hidrológicos, e à realocação de moradores de áreas de risco que passaram a ser estabelecidas pelo Estatuto da Cidade, a partir das alterações introduzidas pela Lei Federal 12.608/2012? Será que os municípios que tiveram ocorrências de inundações e deslizamentos em 2023 estavam, em 2020, com seus instrumentos de planejamento urbano e de redução e prevenção de riscos adequados perante tais determinações?

Para responder essas perguntas, estudamos os dados de Registros de Eventos de Inundação e Deslizamento do Cemaden (REINDESC) de 2023, bem como da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC) de 2020 do IBGE. Vimos que, em 2023, o REINDESC registrou eventos de inundação em 397 municípios e de deslizamentos em 262 municípios. Houve municípios que tiveram eventos múltiplos, os quais foram classificados segundo a gravidade dos seus impactos materiais e sobre vidas humanas. Esses municípios foram distribuídos conforme seus portes populacionais, definidos a partir do Censo Demográfico 2022, em sete faixas populacionais: Até 5.000 habitantes; de 5.001 a 10.000; de 10.001 a 20.000; de 20.001 a 50.000; de 50.001 a 100.000; de 100.001 a 500.000 e mais de 500.000.

Com base na MUNIC de 2020, verificamos quantos dos 397 municípios que tiveram inundações em 2023 tinham planos diretores que contemplavam a prevenção de enchentes e inundações graduais, enxurradas ou inundações bruscas, mapeamentos de áreas de risco de enchentes e inundações e programa habitacional para realocação de moradores de baixa renda vivendo nesses tipos de áreas de risco. Isso também foi feito em relação aos 262 municípios que tiveram deslizamentos em 2023, nos quais verificamos quantos deles tinham planos diretores que contemplavam a prevenção de escorregamentos ou deslizamentos de encostas, mapeamentos de áreas de risco de escorregamentos ou deslizamentos de encostas e programa habitacional para realocação de moradores de baixa renda vivendo nessas áreas de risco.

De um modo geral, os dados examinados mostram que a maior parte dos municípios que tiveram eventos de inundações e deslizamentos em 2023 não contavam, em 2020, com planos diretores dotados de medidas para preveni-los. No entanto, a grande maioria desses municípios tinha, também em 2020, mapeamentos das áreas de riscos hidrológicos e geológicos. Isso mostra que o conhecimento sobre essas áreas de risco não foi usado no planejamento urbano local. A informação técnica não foi usada para evitar a ocorrência daqueles eventos. Ademais, poucos municípios que tiveram eventos de inundações e deslizamentos em 2023 contavam com programas para realocação de moradores de áreas de riscos hidrológicos e geológicos.

Na Tabela 1, verifica-se que os maiores percentuais de municípios que tiveram inundações e tinham planos diretores que contemplavam a prevenção de eventos hidrológicos, estavam inseridos nas faixas populacionais acima de 500 mil habitantes (71%); de 100 a 500 mil (64%); de 50 a 100 mil (57,1%) e de 20 a 50 mil (62,6%).

A Tabela 2 mostra altos percentuais dentre os municípios que tiveram eventos de inundações e contavam com mapeamentos de áreas de risco de enchentes e inundação. Em todas as faixas populacionais consideradas, esses percentuais foram maiores do que 85%. Porém, conforme mencionado, esses mapeamentos de 2020 não foram devidamente utilizados para evitar aqueles eventos em 2023.

A Tabela 3 deixa claro que a preocupação com a realocação de moradores em áreas de risco de enchentes e inundação é maior nos municípios com populações acima de 50 mil habitantes. 63,1% dos municípios com população acima de 500 mil tinham programas habitacionais para esse tipo de realocação, enquanto nos municípios com população entre 100 e 500 mil esse percentual era 53,7%, e entre os municípios com 50 a 100 mil habitantes era 50%. Obviamente, não são todos os moradores de áreas de risco de enchentes e inundação que precisam ser realocados, pois esses riscos podem ser eliminados sem que haja essa realocação.

A Tabela 4 mostra o baixo percentual de municípios que tiveram desastres geológicos e tinham planos diretores que contemplavam a prevenção de escorregamentos e deslizamentos, principalmente naqueles com populações menores do que 50 mil habitantes. Nota-se que os percentuais de municípios nessas faixas populacionais foram menores do que 50%. Em comparação com os dados da Tabela 1, observa-se que os percentuais de municípios que tiveram desastres geológicos e tinham planos diretores que contemplavam a prevenção de escorregamentos e deslizamentos (38,1%), era bem menor do que o percentual de municípios que tiveram inundações e tinham planos diretores que contemplavam a prevenção de eventos hidrológicos (52,9%).

Assim como a Tabela 2 demonstrou altos percentuais de municípios que tiveram inundações e contavam com mapeamentos de áreas de riscos hidrológicos, a Tabela 5 também demonstra altos percentuais de municípios que tiveram deslizamentos e tinham mapeamentos de áreas de riscos geológicos. Na comparação entre essas duas Tabelas, nota-se que a segunda traz percentuais menores nas faixas populacionais até 5 mil e de 50 a 100 mil habitantes.

Por fim, os dados da Tabela 6, referentes aos percentuais de municípios que tiveram deslizamentos em 2023 e contavam, em 2020, com programas habitacionais para realocação de moradores de baixa renda em áreas de riscos geológicos, seguem os mesmos padrões verificados na Tabela 3. Porém, na primeira Tabela, os percentuais são ligeiramente menores do que na segunda, com exceção do percentual de municípios inseridos na faixa populacional até 5 mil habitantes.

A leitura dos dados das Tabelas anteriores nos leva a concluir que as inundações e deslizamentos ocorreram em municípios que tinham e não tinham: planos diretores que contemplavam a prevenção de inundações e deslizamentos, mapeamentos de áreas de riscos hidrológicos e geológicos e programas habitacionais para realocação de moradores de baixa renda dessas áreas de risco. Ou seja, esses dados mostram tanto municípios que estavam, quanto municípios que não estavam adequados perante as determinações da Lei Federal 12.608/2012. Tal situação mostra que essa Lei precisa ser melhor operacionalizada para gerar resultados mais efetivos e, assim, evitar ocorrências de recorrentes tragédias anunciadas nas cidades brasileiras. Para isso, é necessário construir uma verdadeira governança de risco no país.


¹ Graduado, mestre e pós-doutor em arquitetura e urbanismo e doutor em demografia; professor do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo onde coordena o Observatório de Lutas Urbanas; e colaborador do Núcleo São Paulo do Observatório das Metrópoles.

² Graduando em geografia do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo onde é pesquisador do Observatório de Lutas Urbanas e colaborador do Núcleo São Paulo do Observatório das Metrópoles.