Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro*
As informações sobre as prisões dos irmãos Brazão e do Delegado Rivaldo Barbosa revelam algo mais profundo envolvido no assassinato de Marielle Franco e do seu motorista, Anderson Gomes. Um ex-vereador e agora Deputado Federal se associa a um ex-Deputado Estadual agora Conselheiro do Tribunal Estadual de Contas e a um Delegado da Polícia Civil indicado na véspera do assassinato para o cargo de Chefe da Polícia Civil do Rio pelo General Braga Beto, à época interventor na segurança pública do estado, para encomendar a morte da vereadora ao chamado Escritório do Crime. Podemos falar na ação do “submundo da política”?
O padrão espoliativo do poder político no Estado do Rio de Janeiro tem uma relação histórica com a legalidade, a criminalidade e os negócios imobiliários. Esses negócios têm sido um terreno fértil para a corrupção e a apropriação privada de recursos públicos. Políticos corruptos e grupos criminosos organizados têm se envolvido em esquemas de lavagem de dinheiro, sonegação fiscal e especulação imobiliária, sistematicamente em coalizão de autoridades públicas.
Um exemplo emblemático é o caso da Operação Lava Jato, que revelou um esquema de corrupção envolvendo empresários, políticos de alto escalão, empreiteiras de obras públicas, concessionárias de serviços públicos e o mercado imobiliário. Os empresários pagavam propinas a políticos em troca de contratos públicos superfaturados. Parte desses recursos era então lavado por meio de investimentos imobiliários.
Outro exemplo é o caso das milícias, grupos paramilitares formados por policiais e ex-policiais que controlam territórios e exploram a população por meio de extorsão e cobrança de taxas. As milícias também estão envolvidas em negócios imobiliários ilegais, como invasão de terras, grilagem e construção habitacional.
Vale registrar que o Relatório Final do Inquérito Policial do assassinato de Marielle e Anderson cita e utiliza como fundamento para os seus argumentos as pesquisas realizadas pelo INCT Observatório das Metrópoles e pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF), especificamente o relatório “A Expansão das Milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados”. O estudo tem como base a hipótese de que o direcionamento do uso da força pelo Estado e a regulação municipal do mercado imobiliário favoreceram o crescimento das milícias.
As relações entre a violência, criminalidade e negócios ilícitos e ilegais tendo como objeto várias dimensões da produção do espaço urbano da região metropolitana funda e sustenta o padrão espoliativo de poder político no Rio de Janeiro. O professor José Cláudio Souza Alves, pesquisador que mergulhou nesta realidade e autor do importante livro “Dos Barões ao Extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense”, sintetizou estas conexões da seguinte forma:
“A violência, …. [é uma] estrutura articulada de práticas, relacionada diretamente à organização de grupos, visando a maximização de ganhos econômicos, políticos, sociais e culturais mediante a imposição de sua vontade sobre os demais, recorrendo, em última instância, à agressão e à própria eliminação de quem se contrapõe aos seus interesses. Por mais que a imputação do ato violento, juridicamente, seja individual, sua operacionalidade se insere numa rede de ações, em escala coletiva, de amplitude e diversidade que atravessa os indivíduos e se ancora no social.”[1]
Já o professor Michel Misse, também importante pesquisador sobre o tema da violência, desde a sua tese[2], defendida em 1996, vem propondo o conceito de acumulação social da violência como um mecanismo de causação circular entre desigualdades sociais, dominação criminal das maiorias empobrecidas, negócios ileais de bens econômicos e políticos alimentados pela por práticas criminosas:
“O modelo agrega três elementos que se retroalimentam na escala do tempo e pela expansão espacial. É preciso que haja i) acumulação social de desvantagens, ii) sujeição criminal e iii) expansão de estratégias aquisitivas em redes baseadas na informalidade e em mercados ilegais, entre as quais é decisiva a oferta de mercadorias políticas. Mercadorias políticas são bens de natureza política (envolvendo a privatização de segmentos da pretensão de soberania do Estado sobre o monopólio da violência) por diferentes agentes que os negociam por bens econômicos ou outros bens políticos”.[3]
São abordagens que nos permitem entender o assassinato de Marielle como um dos resultados do exercício de um tipo de poder espoliativo histórico e estruturalmente presente no Estado do Rio de Janeiro, que conformou a acumulação urbana baseada na violência e no crime que sustentam um variado conjunto de negócios ilícitos e ilegais. Portanto, a morte da vereadora não resulta da ação do “submundo da política” como algumas narrativas difundem. Combater esta máquina é essencial para restaurar a legalidade, fortalecer as instituições públicas e promover o desenvolvimento sustentável do Rio de Janeiro. Isso requer uma ação conjunta do Estado, da sociedade civil e do setor privado para romper o ciclo de corrupção, criminalidade e impunidade.
*Coordenador Nacional do INCT Observatório das Metrópoles.
[1] Alvez, José Claudio. Baixada Fluminense: reconfiguração da violência e impactos sobre a educação. Disponível em: https://sepecaxias.org.br/wp-content/uploads/2016/01/265-594-1-PB.pdf
[2] Misse, Michel. Malandros, marginais e vagabundos. A acumulação social da violência no Rio de Janeiro
[3] Misse, Michel. (Comentários Sobre) O Enigma da Acumulação Social da Violência no Brasil. Disponível em: https://eprints.lse.ac.uk/101221/2/_Coment_rios_Sobre_O_Enigma_da_Acumula_o.pdf