O pesquisador do Núcleo Porto Alegre, André Coutinho Augustin, publicou no portal Sul21 uma resposta ao prefeito da capital gaúcha, Sebastião Melo, que tem defendido a criação de um “SUS do transporte”.
Segundo Augustin, o que Melo está defendendo por trás desse nome é o repasse de recursos públicos para as empresas de ônibus sem nenhum controle. Uma medida importante nesse sentido foi o fim do Conselho Municipal de Transporte Urbano que, entre outras coisas, definia a tarifa do ônibus. Ele foi substituído por um novo conselho formado basicamente por representantes da prefeitura e dos empresários e que não terá caráter deliberativo.
O modelo de Melo contrasta com a proposta de Sistema Único de Mobilidade defendido pela Coalizão Mobilidade Triplo Zero e cujo manifesto foi assinado pelo Observatório das Metrópoles, que realmente segue os princípios do SUS, como a participação e controle social deliberativos, a gratuidade, a universalidade e a equidade.
Qual é o ‘SUS do transporte’ de Sebastião Melo? (por André Coutinho Augustin*)
Usar o nome do SUS para políticas de mobilidade urbana não é novidade. No entanto, por trás desse nome existem projetos muito diferentes.
O prefeito Sebastião Melo tem defendido a criação de um “SUS do transporte”, apelido que ele deu ao PL 4.392/2021. A proposta, em discussão no Congresso Nacional, prevê um repasse de R$ 5 bilhões por ano para as empresas de ônibus para financiar a isenção dos idosos. Segundo o prefeito, isso permitiria reduzir a tarifa para R$ 4 em Porto Alegre.
Usar o nome do SUS para políticas de mobilidade urbana não é novidade. No entanto, por trás desse nome existem projetos muito diferentes. Há poucos meses, dezenas de entidades lançaram um manifesto pela criação de um Sistema Único de Mobilidade. Essa proposta se inspirou em princípios importantes do SUS, como a participação e controle social deliberativos, a gratuidade, a universalidade e a equidade.
Já o projeto de mobilidade urbana que está sendo implementado em Porto Alegre não parece seguir os mesmos princípios. Um exemplo foi a extinção do Conselho Municipal de Transporte Urbano, aprovada em abril. O novo conselho criado para substituí-lo não terá mais caráter deliberativo, não avaliará os reajustes tarifários e a prefeitura passará a indicar metade dos seus membros. Dos representantes da sociedade civil, a grande maioria será oriunda de entidades empresariais.
Isso consolida a redução da transparência e do controle social sobre o transporte coletivo em Porto Alegre, algo que já vinha piorando nos últimos anos. Os dois cálculos tarifários realizados pela EPTC desde que Melo assumiu nunca foram divulgados. A caixa-preta do transporte se agrava pela falta de controle da bilhetagem eletrônica. Embora a legislação exija que a gestão do sistema de bilhetagem seja da prefeitura, ele está sob controle da ATP. Ou seja, nem o poder público nem a população sabem informações básicas, como o número de créditos vendidos para usuários do cartão TRI. Uma auditoria realizada em 2020 mostrou, entre outras coisas, que o dinheiro da bilhetagem estava sendo usado para pagar gastos como lavagem de ternos e almoços de diretores da ATP.
A nível nacional, é importante lembrar que em 2020 o Congresso aprovou um subsídio federal para o transporte coletivo, para minimizar os efeitos da pandemia. Estavam previstas algumas contrapartidas, como o aumento na transparência, auditorias independentes e níveis mínimos de qualidade. O então presidente Jair Bolsonaro, de quem Melo era um grande apoiador, vetou a proposta. As iniciativas de subsídio surgidas depois, tanto do governo federal quando do municipal, não previam mais tais medidas.
Aumentar o repasse de dinheiro público para empresas privadas sem nenhuma transparência de como esse dinheiro será usado, como propõe Melo, nada tem a ver com o SUS. Pelo menos não com o SUS previsto na Constituição de 88, baseado na participação e no controle social. O problema é que hoje a prefeitura tenta tirar até o SUS desses princípios. Em 2022 foi feita uma mudança inconstitucional tirando o caráter deliberativo do Conselho Municipal de Saúde, o que acabou sendo derrubado pela justiça.
Outro retrocesso promovido pela prefeitura na saúde porto-alegrense é a privatização. Atualmente, praticamente todas Unidades Básicas de Saúde da cidade são terceirizadas. Por outro lado, também estamos vendo o processo de privatização da Carris, que era considerada a melhor empresa de transporte coletivo do Brasil antes de ser administrada pelos partidos políticos que hoje estão na prefeitura.
Ou seja, quando Melo fala em criar um “SUS do transporte”, o que ele pretende não é levar os princípios bem-sucedidos do SUS para o transporte público. Pelo contrário, quer aplicar tanto na saúde quanto na mobilidade urbana o mesmo projeto de precarização, privatização, desdemocratização e falta de transparência.
(*) Economista e pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles