Skip to main content

Frederico de Holanda*

Introdução

Este “trabalho em progresso” levanta ideias para discussão. Abordo questões como a verdade (Ciência) e os valores (Ética), e a beleza (Estética), e, principalmente, as relações entre eles. Os principais marcos teóricos vêm das Ciências Sociais e da Filosofia, incluindo Arquitetura, Geografia, Sociologia e Estética (letras maiúsculas enquanto disciplinas), e exploram conceitos advindos dos trabalhos de Bill Hillier e Julienne Hanson (Arquitetura)[1], Pierre Bourdieu (Sociologia)[2], Milton Santos (Geografia)[3] e Evaldo Coutinho (Estética [Filosofia]).[4]

Há dois “gatilhos” para o trabalho: 1) a confusão reinante entre a descrição da realidade e a sua avaliação; 2) como resultado do primeiro ponto, a crítica frequentemente ingênua da cidade, que a desconsidera como lugar socialmente produzido, configurado mediante padrões reconhecíveis, e apropriado diferentemente pelos sujeitos sociais.

Na base do interesse está a separação entre entender o mundo como é – o âmbito da realidade objetiva, captável pela Ciência – e a escolha do mundo deveria ser – o âmbito dos nossos valores e desejos, em outras palavras, o mundo do projeto, que vislumbra futuros lugares, afeto à Ética. O Diagrama 1 ilustra a ideia: os dois âmbitos estão, respectivamente, nas partes superior e inferior da figura.

O que se segue é uma descrição inevitavelmente sucinta de uma ontologia – e acentuo: uma ontologia, não a ontologia da arquitetura, porque seleciona aspectos da empiria “interessadamente”, isto é, em função de certos objetivos de conhecimento.

Diagrama 1. Ciência e Ética. O mundo como é (âmbito da realidade objetiva) e o mundo como deveria ser (o âmbito do desejo). Fonte: o autor.

Arquitetura: uma ontologia

Uma ontologia é teórico-dependente. A apresentada aqui é inspirada em Bourdieu, mas há uma reordenação e uma complementação de sua taxonomia.

O conceito de capital é central em Bourdieu. Ele o amplia para além da tradicional conotação econômica; capitais são meios, recursos, poderes que mobilizamos, ou encenamos (termo que prefiro) em sociedade, de todos os tipos e para todos os fins, e que constituem o nosso habitus, o conceito central do sociólogo que abarca princípios ou formas de ter, pensar, sentir e agir que posicionam os sujeitos no espaço social – somos o que encenamos.

A inserção do lugar como capital exige reordenação, reclassificação e complementação das macroestruturas sociais e dos respectivos capitais. As modificações e complementações mais importantes são: 1) agora há três, não duas macroestruturas sociais: adiciono a estrutura socioespacial, por ser o foco de nossa atenção; 2) sobre os capitais econômico e político não há novidade; 3) proponho o capital ideológico como a referir “universais”, campo das ideias teóricas ou das regras práticas adotadas transculturalmente – p. ex., verdades científicas de validade geral, mas também regras convencionais que, permitem, p. ex., campeonatos mundiais de jogos – futebol, xadrez, tênis etc.; 4) o capital cultural, aqui, refere “particulares”, manifestações em nichos específicos, no campo da língua, valores, hábitos, artes etc.; 5) o capital social é onipresente em Bourdieu: a rede de contatos, reais ou, hoje, virtuais, que desfrutamos em nosso viver, mas aqui o reposiciono em uma nova macroestrutura – a socioespacial – constituída pelo duplo gente / lugar; 6) finalmente, o lugar, nomeado como o macrocapital arquitetônico, que se desdobra em dois: o espacial e o edilício.

O “silêncio de sarcófago”

Somos muitas coisas… mas “somos” também aquele duplo: 1) os lugares socialmente apropriados e configurados mediante barreiras e permeabilidade, opacidades e transparências, que modulam nossa presença e nosso movimento (p. ex., “sou” minha casa), e 2) os arranjos dos nossos corpos nesses lugares: quem? com quem? quantos? fazendo o quê? onde? quando? durante quanto tempo? Esta é talvez a contribuição seminal de Bill Hillier e Julienne Hanson no livro fundador da Teoria da Sintaxe Espacial: a configuração dos lugares e os padrões de arranjos de nossos corpos no espaço e no tempo são uma das mais fortes maneiras pelas quais as sociedades são constituídas, reconhecidas e reproduzidas.[5]

Quadro 1. Macroestruturas sociais e respectivos capitais. Fonte: o autor.

O capital espacial é desdobrável em duas instâncias: 1) a sistêmica, a “global”, inteira da cidade, através da qual nos movemos no dia a dia, entre casa e trabalho ou serviços – é um espaço de fluxos mais que de fixos, para usar termos de Milton Santos;[6] 2) porções de espaço claramente perceptíveis como lugares na pequena escala – um trecho de rua, uma praça, um parque – cujos atributos usufruímos; adapto aqui o conceito de “fixos” de Santos, e chamo este desdobramento do capital espacial de fixos abertos.

O capital edilício refere os volumes, os cheios, os sólidos; não sendo a essência da arquitetura – pois esta á o espaço definido por eles, como propõe Evaldo Coutinho – explicam-se pela necessidade prática de definir os vazios ou os vãos onde estamos e através dos quais nos movemos.

A complementação e o rearranjo dos capitais bourdieuanos preenchem um “silêncio de sarcófago” (para usar a jocosa expressão de Nelson Rodrigues) surpreendente na obra de Bourdieu: na reclassificação e, principalmente, na introdução dos dois novos capitais, enriquecemos a maneira pela qual nossa identidade social é constituída: considerar o “duplo” lugar / gente, organizado segundo padrões reais/materiais reconhecíveis no espaço e no tempo, é crucial à completude do nosso (auto)conhecimento como seres sociais.

Apartaide à brasileira

Ou seria à brasiliense?… Pois nossa empiria é sobre a Capital Federal; no entanto, as reflexões são, em boa medida, generalizáveis para o país.

Apresento um pot-pourri de achados, aqui resumidos, que podem ser consultados em pormenor nas referências.

A Figura 1 ilustra a estrutura espacial de Brasília, constituída pelo Plano Piloto mais as “cidades satélites” ao seu redor – que não são cidades (como reza a linguagem oficial), mas bairros, devido a suas realidades socioespaciais.

Figura 1. Estrutura espacial de Brasília. Fonte: Juliana Coelho.

Um primeiro atributo salta à vista: a cidade rarefeita e descontínua, a segunda cidade mais dispersa do mundo, perdendo o lugar de honra somente para Mumbai, Índia.[7] Mas a dispersão não penaliza a todos igualmente, e aqui uma primeira distinção: o capital espacial da faixa mais pobre caracteriza-se por viagens médias de casa ao centro, onde estão 47% dos empregos totais da cidade, de 25,8 km; para a faixa mais rica, a distância é de 4,9 km. Se isso já é eloquente, mais ainda é a comparação com cidades brasileiras de tamanho similar, como Fortaleza: respectivamente, nas mesmas variáveis, 7,4 km e 4,4 km. Aqui, “mais” é “menos”: o capital espacial dos ricos é superior porque as distâncias a percorrer são menores – e contam com o conforto e o isolamento de suas máquinas importadas, não de um dos transportes públicos mais congestionados, ineficientes, sucateados e caros do país…

O tecido urbano do Plano Piloto é por muitos considerados como uma “utopia interrompida”.[8] Sessenta anos depois de inaugurada “oficialmente” (pois gente e lugar existem aqui milenarmente), o Plano deslumbra seus habitantes, mas… quem são? O Gráfico 1 ilustra o perfil de renda. A natureza dos espaços abertos das “superquadras” (o capital espacial dos fixos abertos), assim como seus tipos edilícios (o capital edilício) faculta o acesso predominante pelas camadas mais altas de poder aquisitivo.

Gráfico 1. Faixas de renda, Asa Sul, 2010. Fonte: IBGE, 2011.

E, no entanto, aqui e agora, há uma surpreendente “utopia”, exemplo que poderia e deveria ser emulado. É, ironicamente, um remanescente de um acampamento de obras que deveria ter sido riscado do mapa uma vez “concluída” a construção da cidade (nenhuma cidade jamais é “concluída”…). A Vila Planalto, a 1.500 m da Praça dos Três Poderes, é um bairro que abriga, desde sempre, de funcionários do alto escalão governamental a operários, passando por todos os níveis sociais intermediários. O bairro é um perfeito microcosmo da cidade: comparem seu perfil de renda àquele da Brasília municipal (Gráfico 2). A recusa por implantar bairros mistos em edificações, que, como a Vila demonstra, facultam o acesso ao lugar por sujeitos sociais diversos, leva a mais um atributo de segregação social: bairros homogêneos, para ricos, ou para pobres, ou para a classe média.

A pandemia escancarou outros aspectos do apartaide, como estudos igualmente reportam para outras cidades brasileiras. Aqui, o vírus também desembarcou entre os ricos: a região do Lago Sul, cuja renda per capita mensal média é de R$ 8.117,00; mas logo migrou para a periferia: entre 30.4.2020 e 31.7.2020 (três meses), o Lago Sul passa do primeiro lugar em contaminação per capita ao último, os bairros mais distantes assumindo as posições de liderança. Eis uma distinção entre o capital edilício do Lago Sul e do bairro mais pobre da cidade, a Estrutural: 61 m2 de área construída de espaço doméstico por habitante no primeiro, 15 m2/habitante no segundo – as piores condições de isolamento entre os pobres favoreceram a rápida disseminação do vírus entre eles.

E há um recorte de raça. A correlação (r de Pearson) entre a área construída por habitante, e o percentual de negros e pardos é de altíssimos – 0,85: mais negros, menor a área construída; e o contrário: entre brancos, a correlação se inverte, claro. Se considerarmos a relação com distância ao centro dos habitantes, os resultados são similares: menores distâncias, mais brancos: r = – 0,48. Na área mais rica – Lago Sul – os brancos são 80% (negros e pardos = 18%); no bairro Fercal, o terceiro mais pobre, a 27 km de distância do centro, os brancos são 23% (negros e pardos = 76%). O centro é branco, a periferia é negra.

Perguntas à guisa de conclusão

Lucio Costa se manifestou em várias ocasiões sobre críticas ao seu projeto.[9] A seguir, a partir de algumas delas, faço algumas perguntas:

  1. “O problema é de fundo histórico, econômico e social – portanto de governo e de ideologia política”

Mas:

projetar um bairro ou uma cidade não é, em boa medida, definir a sociedade que vai habitá-la?

  1. “As diferenças de padrão de uma quadra a outra decorrerão apenas de uma maior ou menor densidade, do maior ou menor espaço atribuído a cada indivíduo e a cada família, da escolha dos materiais e do grau de requinte do acabamento”

Mas:

tipos edilícios não precisam variar muito mais que isso?

  1. “Teria sido pior que tolice – um crime – planejar a cidade na medida da realidade subdesenvolvida atual”

Mas:

o “crime” não terá sido afastar a “realidade subdesenvolvida atual” para periferias distantes, criando o maior apartaide entre as cidades brasileiras?

  1. “E como, capitalismo ou socialismo, a tendência universal – apesar da contestação desbragada e romântica – é todo mundo virar, pelo menos classe média, o chamado Plano Piloto pode ser considerado uma antecipação”

Mas:

o que fazer enquanto a “tendência universal” não se realiza?


*Arquiteto (UFPE, 1966) e PhD em Arquitetura (Universidade de Londres, 1997). Professor Titular aposentado. Pesquisador Colaborador Sênior e Professor Emérito da Universidade de Brasília. Pesquisador do Observatório das Metrópoles Núcleo Brasília.

[1] HILLIER, Bill; HANSON, Julienne. The social logic of space. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.

[2] BOURDIEU, Pierre. A distinção. Crítica social do julgamento. São Paulo: EDUSP; Porto Alegre: Zouk, 2008 (1984).

[3] SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 3ª. Edição. São Paulo: Hucitec, 1999 (1996).

[4] COUTINHO, Evaldo. O espaço da arquitetura. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1970.

[5] Está nos parágrafos de abertura de HILLIER e HANSON, 1984, op.cit.

[6] SANTOS, 1999, op. cit.

[7] RIBEIRO, Rômulo José da C.; HOLANDA, Frederico de. Proposta para Análise do Índice de Dispersão Urbana. Cadernos Metrópole, n. 15 (Grupo de Pesquisa PRONEX), São Paulo: PUC-SP, 1º semestre de 2006, p. 49-70. (ISSN 1517-2422)

[8] COSTA, Lucio. Lucio Costa: registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995.

[9] COSTA, 1995, op.cit., p. p. 319, 293, 320.