Tânia Maria Ramos de Godoi Diniz¹
Helton Saragor de Souza²
A história do Brasil nos mostra que a disputa pela terra para a exploração começou com a chegada dos portugueses ao território em 1500, disputa que permanece até os dias atuais, nas formas de uso e ocupação do espaço, seja urbano ou agrário. Na Região Metropolitana da Baixada Santista, essa disputa está expressa nas configurações de um espaço urbano projetado para ser um escoadouro de mercadorias, características do capitalismo do país, e nas relações tensas estabelecidas pelas cidades com o Porto de Santos que representa quase 30% da balança comercial nacional.
A região reúne vocações muito diferentes e desiguais, como o complexo portuário e industrial, o Porto de Santos, que abrange as cidades de Santos, São Vicente, Guarujá e Vicente de Carvalho. Considerado o maior porto da América do Sul, cresce e se moderniza vizinho a áreas turísticas e construções modernas, e a favelas, palafitas e habitações precárias, incrustradas nos mangues e em áreas de preservação permanente.
Quem chega à ilha de Santos observa um cenário que remete às características da cidade portuária. No seu lado esquerdo, o Porto de Santos, imponente, com seus containers e guindastes e, do outro lado, a cidade da autoconstrução com moradias precárias e insalubres, configurando a imensa desigualdade socioespacial de como vivem e moram as pessoas na Baixada Santista, resultado de ausência de alternativas de moradia aos segmentos mais pobres. Já desde a entrada, as mudanças arquitetônicas no espaço urbano mostram os projetos urbanísticos desenvolvidos para adaptar a cidade à crescente demanda de carretas com suas cargas direcionadas ao Porto de Santos e seus terminais privados. São obras de engenharia que representam as respostas da gestão pública às necessidades de uma cidade configurada pela e para a circulação de mercadorias.
Atravessando a cidade, na outra ponta, a vista da praia da Baixada Santista oferece uma visão curiosa. Ao se olhar para o mar, avistam-se navios cargueiros se deslocarem pelo porto, e ao se olhar para o continente, tem-se a visão bloqueada por um “paredão” de edifícios novos e antigos, muitos desses tortos, frutos de um intenso processo de urbanização desregulada e especulação imobiliária da faixa próxima à praia.
O Porto de Santos, historicamente, constituiu-se como o principal meio da exportação do café nos séculos XIX e XX, bem como o lócus do trabalho escravizado e de imigrantes para compor a força de trabalho do início da industrialização com o capital acumulado de cafeicultores. Esse território, meio principal de exportação de mercadorias, motivou o saneamento e a urbanização da cidade (hoje parte diminuta) contra a propagação de vetores, consequentemente, de doenças, para não atrapalhar a circulação de mercadorias, pois navios estrangeiros se negavam a atracar na cidade “pestilenta” do passado.
O Porto de Santos é o escoadouro de mercadorias da estrutura socioeconômica de atividades primárias do país, seja açúcar, tabaco, café, soja, minerais, o que o coloca em um lugar central da economia nacional, ocupando uma área de 7,7 milhões de m², ficando 3,7 milhões de m² na margem direita (Santos) e 4,0 milhões de m² na margem esquerda (Guarujá), cuja capacidade de carga atinge cerca de 144 milhões de toneladas ao ano, e para o qual se projeta uma expansão de 88,5% do fluxo de cargas com uma ampliação prevista de movimentação de carga de 1,3Mt/ano.
Diz-se que o Porto de Santos cresceu e se modernizou de costas para a Região Metropolitana da Baixada Santista. Sua extensão demarca um complexo portuário que avança sobre as cidades.
As novas formas de acumulação do capital impuseram a urgência da modernização e inovação tecnológica, considerando a necessidade de investimentos na área portuária, da qual derivou a aprovação da Lei Federal nº 8630/1993 que, se significou aumento de produtividade, não se traduziu em empregos bem remunerados.
Algumas consequências advêm desse crescimento que promoveu mudanças no espaço urbano, segregação social e reformas orientadas para o mercado. A expansão da área portuária permitiu a privatização de terminais, modificando a relação capital e trabalho; as condições de trabalho também se modificaram com a conteinerização que provocou retração da mão de obra; o crescimento das atividades portuárias como um simples elo na cadeia logística de transporte globalizado levou a dinâmicas diferentes entre o porto e as cidades. São tensões marcadas pela forma como o porto estabelece um fechamento físico para as cidades, seja pelos portões e controles de acesso, seja pelos contratos e ritmos de trabalho.
Tem início, desde então, a exploração dos terminais por empresas privadas dividindo o território portuário, e processos de automação que resultaram em precarização do trabalho e desemprego, além dos impactos ambientais.
Diversas regiões de cidades têm um tom acinzentado provocado pela fuligem da proximidade do porto ou pela passagem das gigantescas carretas, situações que fizeram com que agentes públicos se preocupassem em maquiar o trajeto para passageiros de cruzeiros que foram “popularizados” nos anos de incentivo do consumo, mas que obrigava os consumidores a transitar na área cinza para entrar no shopping em alto mar.
Conforme a posição das empresas transnacionais portuárias e propagandas que são feitas nesta direção, o Porto de Santos está melhorando sua eficiência e os manejos de carga e descarga em relação aos portos modernizados dos países capitalistas centrais, buscando rentabilidade e produtividade, com intensa autonomização e enxugamento de empregos e funções, colocando-se “pronto para a desestatização”. Mas, não tem sido suficiente para a geração de valor e, um dos aspectos para a melhora dessa eficiência é a ampliação da zona retroportuária, ou seja, parcelas significativas das cidades tornam-se um pátio de operações.
As exigências ultramarinas e os fluxos de mercadorias mundializadas pelo capital exigem a ampliação da zona retroportuárias e o porto exige da cidade uma reconfiguração espacial, a ampliação de uma área exclusiva para empresas de apoio às atividades, com reflexos na degradação e expulsão de moradores, independentemente das vidas, pessoas e comércios nas regiões afetadas. São várias as dificuldades apresentadas, exigindo essas mudanças, tais como falta de espaço na área do porto, pátios e armazenagem inadequados, grande espera dos navios, altas tarifas, entre outras, que demarcam a falta de integração entre a gestão portuária e a gestão urbana na relação com os municípios da RMBS.
São aspectos da modernidade na cidade partida, de uma pobreza representada na maior área de palafitas do Brasil, que não altera a sua história porque a modernidade do porto tem a sua própria trajetória, respondendo às normas internacionais. Como publicado em 2019 (Folha de São Paulo, 21 de abril de 2019) a meta é adquirir novas áreas para expansão do porto, em um pacote de concessões, que inclui terminais, ruas e avenidas às suas margens.
A estratégia de ampliação do complexo portuário tem ignorado interesses das populações locais, aprofundando os impactos ambientais, principalmente com a possibilidade de instalações portuárias, arrendamentos e concessões em áreas fora do porto organizado.
Esse movimento comporta necessariamente uma lógica desigual e combinada, ou seja, áreas de supervalorização se combinam com áreas pauperizadas para populações que só escutam falar do porto e transitam por entre pátios de contêineres, e sequer têm acesso aos empregos quarteirizados. São investimentos com vistas a responder a transformação do país em exportador de grãos oriundos do centro-oeste, o que trouxe também a necessidade da expansão. Expansão que evidencia a necessidade de remover e desapropriar.
Na área metropolitana da Baixada Santista vivem aproximadamente 1.897.551 pessoas, conforme estimativa do IBGE (2021). O PIB da região foi de aproximadamente R$ 79 bilhões em 2021 (SEADE). Esses dados, todavia, encobrem uma realidade perversa. A região apresenta um crescimento de moradias em áreas irregulares e, segundo informações mais atuais, 467 mil pessoas vivem precariamente (A Tribuna, 27/02/22). Trata-se de um cotidiano urbano que desvela as profundas desigualdades que explicitam a pobreza pela baixa renda, pela ausência de serviços urbanos e sociais e sistemas de infraestrutura. Santos, por exemplo, cuja população é menor do que o número de pessoas que vivem precariamente, conforme apontado acima, tem o sexto melhor IDH-M (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) do Brasil, composto por três indicadores: longevidade, educação e renda.
Em artigos recentes, pesquisadores do Núcleo Baixada Santista do Observatório das Metrópoles já apontavam conflitos de interesses entre a expansão do porto, comprometido com o capital agroexportador e a realidade habitacional de famílias moradoras em espaços precários e de expansão da área portuária.
Manifestações dessas desigualdades estão nos deslizamentos das encostas, provocadas por intensas chuvas, tal como ocorreu em Guarujá em 2019, cujas tragédias vividas pelas famílias não podem ser delegadas às ações da natureza; nos incêndios que ocorreram nas palafitas da Vila Gilda em 2020, deixando famílias cercadas entre o fogo e a água insalubre do canal; nos alagamentos recorrentes da Vila Alemoa, território que não fez parte dos projetos arquitetônicos da entrada de Santos; da iminência da remoção da Vila dos Criadores para atender necessidades de expansão do porto e que encontrou possibilidades na justiça, com a criação de uma comissão mista, da qual também participam os moradores, para discutir as soluções; da luta cotidiana da Vila Conceiçãozinha, localizada em terras da União e, apesar da titulação administrativa desde 2007, as famílias vivem a tensão cotidiana de futura desocupação para expansão de atividades retroportuárias.
São exemplos de interconexões de diferentes tipos de desigualdades que refletem o modelo de urbanização das cidades da Região Metropolitana da Baixada Santista que, por vias legais ou de forma autoritária e violenta, discriminatória e higienista, vêm impedindo o acesso aos direitos sociais garantidos pelo Constituição Federal de 1988, no seu artigo 6º, o direito à moradia, ao transporte, à segurança, ao lazer, ao saneamento, à educação e à saúde.
E as gestões municipais, pressionadas pelos interesses do capitalismo financeiro-rentista especulativo, não têm apresentado respostas possíveis. Ao contrário, a resistência a esta expansão portuária que se insere na dinâmica da desapropriação e subordina os padrões civilizatórios à lógica econômica do capital rentista está nos movimentos sociais, inclusive no enfrentamento ao Projeto de Lei de Uso e Ocupação do Solo de Santos, que está em processo de aprovação na Câmara Municipal.
São muitos os desafios que a realidade da região portuária da Baixada Santista nos aponta, com vistas a construção de cidades justas e igualitárias e cuja defesa de uma reforma urbana que defenda o direito à terra e à moradia digna deve ser construída junto com os segmentos sociais que vivem no seu cotidiano a impossibilidade do acesso à proteção social ampla.
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¹ Docente do curso de Serviço Social na Universidade Federal de São Paulo, campus Baixada Santista e compõe a coordenação regional do Núcleo Baixada Santista do Observatório das Metrópoles.
² Docente do Instituto Saúde e Sociedade na Universidade Federal de São Paulo, campus Baixada Santista e pesquisador do Núcleo Baixada Santista do Observatório das Metrópoles.