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Thêmis Aragão¹
Ana Lucia Britto²

Recentemente parte considerável da população brasileira têm sentido as transformações climáticas. As cidades têm vivenciado períodos de chuva atípicos que vem acontecendo com mais frequência e intensidade. Em 2020, Belo Horizonte obteve uma precipitação de 935,2 mm no primeiro mês do ano, o equivalente a mais da metade da precipitação esperada para o ano (1602,6 mm) e a tripla esperada para o período (329,1mm). Em São Paulo, até o dia 17 de janeiro do mesmo ano, já tinha chovido 90% da média de chuva esperada para o mês de janeiro (260,8mm de 288mm esperados). Em dezembro de 2021, o Brasil acompanhou a tragédia que se abateu nos estados da Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo. Na Estação Meteorológica do INMET em Ilhéus (BA), o total de chuva entre os dias 01 e 27 de dezembro registrou 410,4 mm, o que representa 265,4 mm acima da média para todo o mês de dezembro que é de 145,3 mm. Apenas no dia 25 de dezembro, o total de chuva nessa estação foi de 139,0 mm. Para o mesmo período, a Estação de Pedra Azul (MG) totalizou 612,5 mm, quando a média para o mês era de 187,2 mm. Em ambos os casos o registro mensal foi o maior de toda a série histórica que remonta a 1961. No último dia 15, o INMET registrou a precipitação de 259,8 milímetros em 24 horas no município de Petrópolis (RJ) onde grande parte desse volume se concentrou em 04 horas de chuva forte. Esta foi a maior precipitação que o órgão registrou desde o início dos registros em 1932. Entre o dia 15 e 20 deste mês foram computadas 146 mortes, mais de mil pessoas desabrigadas e 180 pessoas ainda se encontravam desaparecidas.

Os danos gerados e a as vidas suprimidas nos desastres provocado por fenômenos naturais têm sido cotidianamente tratados como “fatalidades” onde atribui-se às forças da natureza a responsabilidade sobre as perdas. Contudo, esta não representa a principal justificativa. Significativa parcela da destruição deve ser atribuída aos governos e os modelos de desenvolvimento adotados.

Em uma escala global, o padrão de consumo tem contribuído para o desequilíbrio ambiental. As emissões de dióxido de carbono que afetam a camada de ozônio influenciam no aquecimento global e num maior volume de evaporação nos oceanos. Nos continentes, o desmatamento das florestas altera um dos principais componentes de equalização do aquecimento, modificando inclusive o volume de água absorvida no solo e retornada à atmosfera pela evapotranspiração da vegetação. O desflorestamento realizado para dar lugar a cultura de grãos, consumidos em grande parte pela pecuária, afeta não somente o ciclo da água, mas acelera a erosão dos solos e o transporte de sedimentos em direção aos cursos d’água.

No Brasil, os dados do PRODES³ mostram que, em 2019, 2020 e 2021, a área desmatada na Amazônia Legal foi de 10.129Km², 10.851Km² e 13.235Km² respectivamente. Em 03 anos o Brasil permitiu a supressão de floresta em uma área equivalente à Bélgica. Considerando que as chuvas que caem no sudeste brasileiro procedem em grande medida da evapotranspiração da floresta amazônica, não podemos negar que o que aconteceu em Petrópolis em termos de intensidade de precipitação não esteja relacionado a uma política ambiental negligente e que não considera os impactos multiescalares da (o)missão das ações governamentais.

Bombeiros, moradores e voluntários trabalham no local do deslizamento no Morro da Oficina, após a chuva que castigou Petrópolis, na região serrana fluminense. Foto: Tânia Rego (Agência Brasil).

Quando analisamos a gestão do território urbano na dimensão municipal ou da região metropolitana, outras reflexões também devem ser realizadas. Seriam das parcelas menos favorecidas da população a responsabilidade pela ocupação dos morros e margens de rios? Seria “a falta de visão de futuro” que leva famílias a se acomodarem em áreas de risco? Analisando o contexto de forma mais atenta podemos concluir que a ocupação de áreas de risco é resultante da falta de perspectiva no presente em decorrência de uma inaptidão política do passado.

É sabido que o problema habitacional é central quando lidamos com o risco ambiental nas cidades. Neste sentido, o direito à moradia não pode ser entendido como a simples promoção de programas de provisão de habitação social, mas também por políticas de gestão territorial e de desenvolvimento que inibam a especulação imobiliária, reserve terra acessível em áreas com infraestrutura urbana e acesso ao mercado de trabalho, além de promover a diminuição das desigualdades sociais. Mas faltam instrumentos para que os governos promovam políticas que busquem o cumprimento destes objetivos?

Em 2001 o Estatuto das Cidades trouxe importantes inovações na regulamentação de instrumentos urbanísticos para a promoção do direito à cidade. Embora quase todos os municípios do país com mais de 20 mil habitantes tenham realizado a revisão dos seus Planos Diretores, o problema permanece após 20 anos de vigência deste marco legal. Porém, vale lembrar o teor destes planos, os quais, geralmente, remetem a solução dos problemas a leis específicas ou complementares que quase nunca são aprovadas ou sancionadas. Poucos são os municípios que aplicam o IPTU progressivo ou delimitam as Zonas Especiais de Interesse Social no corpo do Plano Diretor aprovado na Câmara Municipal. A desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública acaba se tornando uma lenda urbana.

Por outro lado, há uma compreensão generalizada de que o Plano Diretor deve apontar princípios e objetivos para a cidade ao invés de já definir onde e como o governo deve atuar no território. Dentre os quatro pilares da política urbana, apenas o zoneamento, que é um instrumento limitado da política de uso do solo, é contemplado plenamente. As políticas de saneamento, habitação e mobilidade não são reconhecidas como componentes do Plano Diretor, sendo tratadas como objetos de programas governamentais.

Os Planos Diretores deveriam delimitar todos os assentamentos precários indicando, a partir de critério de risco, quais aqueles prioritários para os programas de urbanização. Estes programas deveriam trazer um componente voltado para melhoria das condições de habitabilidade das edificações. Paralelamente, deveriam delimitar as zonas especiais de interesse social em vazios urbanos adjacentes para abrigar o percentual de famílias reassentadas devido as obras dos projetos de urbanização ou por estarem efetivamente em situação de risco. Os Planos Diretores também deveriam delimitar as áreas infraestruturadas da cidade e estabelecer IPTU Progressivo para todos os imóveis ali inseridos, forçando o aumento da oferta de imóveis e influenciando uma redução dos preços pelo aumento do estoque disponível. Esta seria uma outra estratégia para aumentar o acesso à moradia.

No que diz respeito à mobilidade, o Plano Diretor tem de indicar as vias onde os investimentos em mobilidade devem ser aplicados para a promoção de transporte coletivo e de massa. A precariedade do transporte coletivo e a necessidade de viver próximo do trabalho é uma das razões que explicam a ocupação das encostas próximas às áreas centrais das cidades.

Ainda destacando a importância dos projetos de mobilidade e acessibilidade num contexto de mudanças climáticas, é preciso entender que eles devem necessariamente estar atrelados a novos modelos para os sistemas de drenagem urbana e transporte, onde calçadas devem ser alargadas e associadas a jardins drenantes. Corredores arborizados que promovam sombreamento para a malha cicloviária também geram sistemas de áreas verdes que diminuem o volume de escoamento superficial e a energia cinética das águas em período de chuvas. Vagas de estacionamento em vias públicas deveriam ser suprimidas para gerar área necessária para o transporte público e a circulação de pedestre, dinamizando o espaço público.

É sabido que a estrutura administrativa dos governos possui capacidade técnica para gerar dados, construir análises e apontar problemas e prioridades. É de conhecimento também que de 2007 a 2021 o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) investiu em 503 projetos de infraestrutura o montante de R$ 327 bilhões, o que não impactou na prevenção de desastres como o de Petrópolis neste mês. Porém, apesar a capacidade técnica e da disponibilidade de recursos, vidas continuam a serem ceifadas em tragédias anunciadas. Precisamos elucidar à sociedade que o campo político é central na promoção de políticas de redução dos riscos socioambientais. Agravados pelas mudanças climáticas, eles têm sua origem em um modelo de urbanização que não contempla o direito à cidade para todos e todas. Neste campo político, a participação cidadã, através da abertura de canais de deliberação, e o respeito dos gestores às prioridades apontadas pela comunidade são fundamentais. Os interesses de setores econômicos, que consideram a cidade como espaço de troca não podem suplantar o atendimento às necessidades básicas de moradores que a consideram como espaço de uso e desfruto.

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¹ Arquiteta urbanista, mestre e doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ. Pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Rio de Janeiro e pós-doutoranda no Programa de Pós-graduação em Urbanismo (PROURB/UFRJ).

² Professora do Programa de Pós-graduação em Urbanismo (PROURB/UFRJ) e pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Rio de Janeiro.

³ Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite. Saiba mais em: http://www.obt.inpe.br/OBT/assuntos/programas/amazonia/prodes