Ruth Maria da Costa Ataide¹
Alexsandro Ferreira Cardoso da Silva²
Maria Dulce P. Bentes Sobrinha³
Os ventos de agosto, comuns na cidade nesta época do ano, trouxeram algo mais do que uma brisa oceânica. Imersos na maior crise sanitária da nossa história, a minuta do novo Plano Diretor de Natal (PDN), após Conferência Final, foi disponibilizada pelo executivo aos segmentos sociais participantes da etapa da leitura da cidade, ainda em formato preliminar, para apreciação e indicações de “possíveis incongruências e ajustes formais”.
Ao recebermos a versão compilada pela coordenação técnica do processo (em 10 de agosto de 2021), vimos que a Conferência Final – realizada de modo virtual no auge da pandemia, produziu um conjunto de 261 artigos, cuja primeira leitura revelou um texto de difícil compreensão, com graves problemas de coerência interna, artigos em contradição, riscos potenciais ao meio ambiente, ineficácias e retrocessos no plano social.
Simulando o cumprimento do regimento do processo de revisão, reiniciada em 2019, os facilitadores dos Grupos de trabalho, e apenas eles, por meio de reunião virtual, foram instados pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo (SEMURB), da Prefeitura Municipal do Natal, em “apontar inconsistências ou conflitos (…) que comprometam a coerência geral da minuta”. Com uma ressalva: esses apontamentos deveriam estar prontos e voltar à SEMURB em tempo exíguo – até o dia 23 de agosto de 2021 – menos de duas semanas depois do seu envio.
Pois bem, é com o sentido de alertar aos setores técnicos, a sociedade civil, os movimentos sociais e até mesmo o próprio Poder Público municipal que comentamos os riscos que esta proposta representa para a sustentabilidade social, urbanística e ambiental da cidade do Natal. Como tal análise é longa e complexa, abordaremos o tema em mais de um momento. Comecemos pela estrutura desta Minuta associada ao seu processo de elaboração (revisão da Lei Complementar 082/2007); momentos conflitivos, marcados pela preventiva ação do Ministério Público em algumas várias ocasiões, a partir dos reclames da sociedade civil e, particularmente, do Fórum Direito à Cidade, projeto de extensão da UFRN também integrante do Observatório das Metrópoles Núcleo Natal. A chamada etapa de leitura da cidade, prevista no regimento do processo, foi alvo de constantes contestações da cidadania, desde que o processo foi retomado em 2019 até a sua finalização em junho de 2021 com a conferência que aprovou a minuta final. A realização dessa etapa de participação, em meio a pandemia, foi objeto de três interrupções.
Ressalte-se que grande parte das contestações foram relacionadas aos equívocos do processo participativo, cuja forma impositiva não observou os fundamentos básicos da gestão democrática da cidade. Verificou-se pouca ou quase nenhuma transparência, além de estratégias de comunicação e divulgação débeis, com cronograma inadequado à disponibilidade de tempo dos interessados, particularmente dos representantes dos segmentos populares. Não menos conflituoso foi o debate sobre a metodologia do processo, associada as estratégias adotadas para impor alterações no conteúdo do Plano favorecendo os interesses de segmentos sociais específicos, notadamente os interesses do mercado imobiliário, do comércio e do turismo. Muitas dessas alterações, agora confirmadas na minuta final, sinalizam graves retrocessos às medidas protetivas aplicadas ao tecido social e a proteção ambiental, que foram incorporados ao regramento urbanístico do município de Natal ao longo das últimas quatro décadas.
Sobre a Minuta final do PDN aqui analisada, seu formato e estrutura apresentam-se como partes de uma redação inadequada ou incongruente; desde a perspectiva formal alguns artigos estão fora do contexto do Capítulo, dificultando a leitura e a coerência entre eles, outros parágrafos e incisos estão fora do lugar, isto é, necessitando de ajustes entre o Caput e o corpo do texto. Desse modo, faz-se necessária uma rigorosa revisão jurídica que permita a redefinição de um texto minimamente coerente a ser enviado à Câmara Municipal de Natal, sob pena de nulidade mais à frente pela sua inconsistência.
Por exemplo, criou-se a Área Especial Militar (AEM), sem conceituar ou definir a sua especialidade urbanística, ambiental ou social, a ponto de suas prescrições não precisarem seguir àquelas definidas para as Zonas de Proteção Ambiental, onde estão inseridas, enquanto estas conviverem com o uso militar. Entretanto, outras áreas militares na cidade, em plena operação, não foram delimitadas como AEMs. Confuso? Sim, mas não o único caso de falta de coerência. A Outorga Onerosa do Direito de Construir está calculada tendo por base, na sua fórmula, o Custo Unitário Básico da Construção Civil e não o valor dos terrenos; este fato, existente no PDN em vigor, não foi alterado o que prejudica a captação de recursos para o Fundo de Urbanização enfraquecendo a capacidade do próprio Poder Público municipal em investir em obras e moradia popular.
Somam-se conteúdos impactantes e arriscados na Minuta do novo PDN como os artigos 11 a 16, que tratam da nova forma de atribuição do Coeficiente de Potencial Construtivo – motivo de intensos debates entre 2019 e 2021. A Lei 082/2007, que dispõe sobre o Plano Diretor em vigor objeto da revisão, estabelece um macrozoneamento que tem a Zona de Adensamento Básico (com coeficiente igual a 1,2) e a Zona Adensável (coeficientes entre 1,3 e 3,5) em alguns bairros, notadamente aqueles dotados de alguma infraestrutura. A nova proposta da SEMURB (apoiada largamente pelos proprietários de terrenos, setores comerciais, intermediação imobiliária e construção civil) foi a transformação de todos os bairros em adensáveis, com potenciais adicionais variando de 1,1 a 5,0. A argumentação para tamanha transformação foi a previsão de instalação da rede de saneamento básico em toda cidade, fato este que ainda não ocorreu devido a atrasos na construção de Estações de Tratamento de Esgotos, além da lenta ligação domiciliar à rede existente. Os problemas dessa iniciativa começam quando há vários artigos e incisos que permitem ultrapassar esse índice máximo, deixando na prática uma insegurança quanto ao real impacto desse adensamento sobre os bairros. Há também outros artigos e/ou incisos que permitem não computar alguns espaços das edificações como área construída, abrindo excepcionalidades. Outros parágrafos que incentivam a utilização de soluções de projeto e, como troca, concedem mais área construída não computável. Enfim, como não sabemos (com exatidão) qual é a densidade demográfica, ou seja, o número de pessoas que irão habitar esses espaços (a minuta mantém a preferência pelo controle da ocupação do solo pela área de construção e não a densidade populacional), cria-se uma insegurança à SEMURB e à sociedade como, de fato, vamos realizar a gestão de todo esse potencial criado que, em alguns casos, pode alcançar um índice muito maior do que aquele instituído estipulado na Lei.
Como o sistema de esgotamento sanitário de Natal ainda não está concluído, e não há previsão de que em curto prazo entre em operação para todos os domicílios, essa intensidade de construções em curto período pode, em alguns lugares, causar pressão adicional à rede – como aconteceu no bairro de Ponta Negra, em 2000, quando se ampliou o potencial construtivo sem a garantia da capacidade do sistema. Outra alteração arriscada e que se reverte preocupante é que em alguns artigos, a Minuta passa a responsabilidade para a Concessionária de Águas e Esgotos autorizar ou não um Coeficiente de Aproveitamento, a depender da transposição de potencial entre Bacias de Esgotamento Sanitário, retirando da SEMURB sua autonomia para licenciamentos baseados no PDN. Cria, assim, várias brechas para que possam interpretar qual é – de fato – o CA a ser utilizado, pondo ao analista da Prefeitura possíveis situações de dúvidas, seja por estar no limite de uma bacia ou de um eixo viário ou de um bairro, ou na aplicação em algumas soluções – como, por exemplo, corredores internos da unidade imobiliária não contam como área construída.
Ainda quanto ao conteúdo, tanto as ZPAs quanto AEIS estão sendo afetadas com a supressão ou transformação dos mecanismos de proteção socioambientais. A transformação da ZPA 6 (Morro do Careca e dunas associadas) em Zona Militar e as mudanças nos parâmetros urbanísticos das AEIS, evidenciam fragilidades jurídicas no tratamento da função social da propriedade que rege ao Plano Diretor fazer cumprir. Recortes, supressões de frações de AEIS nos Eixos Estruturantes ou por plebiscito de moradores das áreas, aumento de potencial construtivo e das possibilidades de remembramento de lotes, além do limite para o reconhecimento de AEIS após a aprovação do Plano Diretor, são algumas das propostas da Minuta que apontam a insegurança quanto ao futuro das Áreas Especiais e a distância da gestão municipal de Natal quanto ao atendimento aos compromissos nacionais e internacionais para a efetivação dos direitos urbanos e ambientais.
A introdução dos Eixos Estruturantes, fundamentados na ideia de que algumas avenidas possam receber mais estímulo à ocupação, também não se justifica. Estes não foram caracterizados, sendo tratados de modo homogêneo, com uma mesma dimensão sem identificar a real capacidade de deslocamento ou da qualidade da infraestrutura. Isso pode ser problemático na condução da política de mobilidade, pois não foi levado em conta a capacidade de suporte de cada avenida para, assim, definir seu nível de saturação (pode-se estimular mais tráfego em áreas já congestionadas, por exemplo). Faz-se necessário construir cenários que permitam a sociedade compreender os reais impactos dessa solução.
Outras áreas especiais – como a Área de Interesse Turístico e Paisagístico – foram alteradas em seu maior fundamento; a função de proteção da paisagem da Praia da Redinha ficou prejudicada em si, quando se permite prédios de até 10 andares em toda a AEITP sem definir gradações ou especificações maiores, sem um relatório de impacto ambiental previamente apresentado para tal decisão (curiosamente, o mesmo artigo exige de particulares este relatório de impacto à paisagem, mas não condiciona a aprovação do projeto a este relatório, sendo mero informativo). Possível prejuízo à paisagem ocorre também em Ponta Negra, com a exclusão da Area Non Aedificandi, que, desde 1979 e por meio de uma restrição à ocupação, atua como proteção da ambiência cênico-paisagística que tem como ponto focal o Morro do Careca, uma das principais atrações turísticas e marco urbanístico de maior relevância da cidade. Agora, esta restrição não existe mais, colocando um ponto de interrogação de, até quando, a paisagem ainda estará acessível em médio e longo prazo.
Por fim, como terceiro ponto de alerta e preocupação, está a capacidade da sociedade participar desse debate. Embora a Minuta contenha dezenas de artigos com citações aos conselhos e ao Conselho da Cidade há alguns exemplos contraditórios. Por exemplo, quando permite ao Executivo Municipal enviar Decreto para alterar os coeficientes de aproveitamento, ou seja, usando um Decreto e não projeto de Lei para modificar uma Lei Complementar – retirando assim da Câmara Municipal uma atribuição fundamental nessa matéria. Ou atribuindo um prazo para que o Conselho da Cidade se manifeste sobre esta ou aquela matéria, interferindo na autonomia regimental do principal Conselho que representa a diversidade da sociedade civil. Ou ainda, quando prevê a alteração dos limites de AEIS também por Decretos, ou então quando – depois de definir 20 artigos sobre AEIS – introduz um parágrafo indicando que uma quadra ou fração de uma dada AEIS pode “decidir”, por plebiscito, não mais se submeter esse instrumento. Isso pode parecer “mais democrático” mas não é, por alguns motivos: primeiro que a AEIS foi criada como forma de reconhecer uma situação de precariedade urbanística de determinados territórios que precisa ser superada por meio de obras e investimentos públicos – deixar de existir (na Lei) não resolve o problema real, apenas o torna invisível às Políticas Públicas, não atribuindo obrigação, do Estado, em priorizar investimentos a estas áreas; segundo, a depender da condução de cada processo, pode ocorrer direcionamentos para interesses individuais (este terreno, esta quadra, este lote, etc.), perdendo a ideia de Área e de comunidade e, por fim, só a Câmara Municipal cria plebiscitos que devem ser guiados por temas de alcance de todo município e não apenas deste ou daquela terreno ou lote. A discussão das AEIS pressupõe o reconhecimento das especificidades e problemas de cada território delimitado, de modo a minimizar riscos sociais e ambientais presentes. Este foi o primeiro lembrete. Há muito mais para apontar, sugerir, apelar a uma revisão cuidadosa por parte da sociedade civil, da Procuradoria Geral do Município, dos setores técnicos, do Ministério Público, enfim, de todos e todas que desejam uma Natal com mais qualidade de vida, mais segurança e maior desenvolvimento socioambiental. Voltaremos em breve.
____________________________________________________________________
¹ Professora do Departamento de Arquitetura (UFRN) e pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Natal.
² Professor do Departamento de Políticas Públicas (UFRN) e pesquisador do Observatório das Metrópoles Núcleo Natal.
³ Professora do Departamento de Arquitetura (UFRN) e pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Natal.