Condomínio fechado na região Praia do Flamengo, Salvador
Fugindo dos ‘males’ da cidade: os condomínios fechados na grande Salvador
Quais as causas do fenômeno da autosegregação das camadas de maior renda para os condomínios fechados? O que isso representa na conformação das cidades? Ao analisar o fenômeno na RM de Salvador, o pesquisador Rafael Arantes mostra que os “enclaves fortificados”, ao propiciar soluções individualistas e privatistas, reafirmam a crise dos espaços públicos, contribuindo para o fim de um modelo de cidade moderna, que se pautava em espaços abertos e plurais, da diversidade e da heterogeneidade de manifestações.
Rafael de Aguiar Arantes é pesquisador do núcleo Salvador do INCT Observatório das Metrópoles, tendo desenvolvido pesquisas sobre segregação socioespacial em áreas pobres e periféricas da capital baiana, como também autosegregação voluntária das camadas de maior renda. Esse último aspecto virou objeto da dissertação “Fugindo dos males da cidade: os condomínios fechados na Grande Salvador”, defendida no final de 2011, sob a orientação da professora Inaiá Maria Moreira de Carvalho.
Condomínios fechados ou “enclaves fortificados”
De acordo com o trabalho, o fenômeno dos condomínios fechados é um fenômeno recente, e a literatura mostra que eles são um dos resultados das transformações por que passou a economia nas décadas de 80 e 90 do século XX – especialmente com a reestruturação produtiva, o neoliberalismo e a globalização. “Os condomínios fechados têm vários determinantes, mas há dois aspectos importantes: 1) o Estado começa a perder o seu poder de planejador urbano e de agente de políticas públicas; e 2) o mercado imobiliário amplia a sua influência”, argumenta Arantes.
Uma das consequências das transformações ocorridas nas grandes metrópoles mundiais é a proliferação do que Tereza Caldeira chamou de “enclaves fortificados”, “espaços privatizados, fechados e monitorados para residência, consumo, lazer e trabalho”. Ainda que cada cidade tenha seu específico contexto econômico, social, político, cultural e institucional, é possível dizer que nos últimos trinta anos tem havido uma proliferação desses empreendimentos em escala mundial.
Os enclaves fortificados – em especial aqueles voltados para a moradia – têm se constituído como uma “nova forma de habitat urbano moderno”, configurando uma nova questão urbana, que se torna um desafio à ordem espacial, organizacional e institucional que moldou as cidades modernas. “Para Teresa Caldeira, os enclaves fortificados valorizam o que é privado e restritivo, em detrimento do que é público e aberto. São isolados e demarcados por muros e grades (arquitetura do medo), são controlados por guardas armados, ou seja, impõem regras de inclusão e exclusão. Além disso, valorizam a vivência entre iguais e pessoas seletas; a homogeneização da convivência. Muitos autores clássicos mostraram que a cidade moderna carregava como característica a convivência entre diferentes grupos. Mas os condomínios fechados vão contra esse movimento”, afirma Arantes.
“No Brasil, o trabalho de Tereza Caldeira ‘Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo’ foi pioneiro no estudo do referido fenômeno e já se constitui como um clássico sobre o novo padrão de segregação sócio-espacial. A autora ressalta que os enclaves fortificados são um novo produto imobiliário, com cinco características que conformam um novo conceito de moradia: segurança, isolamento, homogeneidade social, incorporação de equipamentos privativos de lazer e incorporação de serviços”.
Perspectiva metodológica
Rafael Arantes conta que a ideia original era fazer o mapeamento dos condomínios horizontais em Salvador. No entanto, quando foi a campo visitar os órgãos governamentais para a coleta dos dados descobriu que boa parte dos condomínios fechados da capital baiana é irregular. “Esses condomínios fechados são licenciados pela Prefeitura, mas como loteamento. O fechamento na condição privativa é realizado à revelia do poder público”, conta.
Embora o achado tenha sido muito relevante para o trabalho, Arantes conta que decidiu não avançar a pesquisa na direção das irregularidades, já que do ponto de vista jurídico não existe um ponto de vista único sobre a questão.
“Resolvemos mudar a estratégia metodológica e partir para uma pesquisa empírica realizada em 16 condomínios fechados da RMS, que envolveu visitas, observações diretas, entrevistas com informantes qualificados e com uma amostra de moradores desses condomínios. O propósito? Analisar as transformações e processos associados à proliferação de condomínios fechados, assim como seus significados e efeitos atuais sobre a segregação, o uso dos espaços públicos e os padrões de sociabilidade urbana”.
Condomínios horizontais em Salvador: percurso histórico
Na RM de Salvador os condomínios fechados surgiram com a transformação de antigos conjuntos habitacionais e loteamentos privados das décadas de 1970 e 1980, que se direcionavam para as camadas médias, que buscavam ter acesso à casa própria e ter mais qualidade de vida, propiciada pela distância do centro urbano e pelo contato maior com a natureza. Esses empreendimentos não nasceram fechados, e vão ganhando essa condição ao longo da década de 1980.
A partir da década de 1990, contudo, novos empreendimentos surgiram já como condomínios fechados e incorporados pelo mercado, que valoriza através de peças publicitárias a moradia em locais protegidos, seguros e monitorados. Nesse novo contexto, alteram-se o perfil dos moradores (agora também setores das camadas mais altas) e as razões de valorização desses espaços. Associados a elementos relativos à qualidade de vida (tranquilidade, estrutura privativa de lazer, e principalmente morar numa casa) cresce a importância do componente da segurança, que se não é uma condição suficiente, é vista como uma condição absolutamente necessária para a escolha desse tipo de residência.
A cultura privatista e o esvaziamento da cidade
“O trabalho mostrou que os condomínios fechados na RM de Salvador estão numa lógica capitalista de apropriação da cidade. A literatura tem apontado esse fenômeno como um dos responsáveis pelo esvaziamento da esfera pública tradicional. Se de um lado a cidade moderna é o espaço da diversidade e da heterogeneidade, com ruas abertas, praças, estádios abertos, galerias, espaços de expressão livre; os enclaves fortificados contribuem para uma esfera pública pauta na suspensão, numa tensão e no medo de se misturar – como dizia Bauman”, explica Rafael Arantes e completa:
“O fenômeno dos condomínios fechados representa a solução privada de uma série de questões públicas (segurança, equipamentos urbanos etc). De algum modo, os moradores da RM de Salvador procuram nos condôminos aquilo que não veem mais na cidade; e, por isso, deixam de viver na cidade. Os enclaves fortificados representam a fuga dos males da cidade, resultado da oferta dos mercados imobiliários. É a recusa da própria cidade, das possibilidades de construções coletivas da democracia”.