*Por Raquel Rolnik. Professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade. Texto originalmente publicado no UOL.
Dia 1 de fevereiro de 2021. Para a cidade de São Paulo, a data ficou marcada como um dia de retrocesso. Foi o dia em que a gratuidade de tarifa no sistema de ônibus, metrô, CPTM e EMTU para pessoas idosas de 60 até 64 anos foi retirada, em meio (ainda) a uma crise sanitária, econômica e social gravíssima, justamente em um momento em que é fundamental que as políticas públicas invistam em medidas de proteção social. Para muitos desses idosos, a medida conjunta da prefeitura e do governo estadual significa a perda, na prática, do direito à mobilidade — e portanto do direito à cidade.
O fim do passe livre para uma parte das pessoas idosas foi materializado por meio do Decreto nº65.414/2020, promulgado em dezembro do ano passado pelo governador João Doria, e pela Lei nº17.542/2020, de autoria do Poder Executivo municipal da capital. A retirada do direito foi feita às escondidas, sem debate público: no âmbito estadual por um decreto, no âmbito municipal por um “jabuti”, como explicaremos adiante.
Desde então, diversas manifestações populares nas ruas e na internet, além de pelo menos cinco ações na Justiça, têm exigido que a medida seja revertida.
Em nota técnica enviada ao Ministério Público e Defensoria Pública, o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) aponta falhas legais na medida por parte dos Executivos Estadual e Municipal. No caso municipal, por abuso do poder de emenda, já que o corte da gratuidade veio por meio de um inciso em substitutivo do PL 89/2020, que versa sobre subprefeituras da cidade de São Paulo, não sobre transporte público. No caso estadual, o Decreto altera regras estabelecidas por Lei Ordinária a partir de extenso debate na Assembleia Legislativa.
Para além de um alinhamento com a Reforma da Previdência, que aumentou o piso de idade para se aposentar, a principal justificativa do poder público para retirar esse colchão, essa proteção social, foi o equilíbrio financeiro dos contratos. Pelo menos 186 mil pessoas com idades entre 60 e 64 anos serão afetadas, o que representará, segundo a prefeitura, uma “economia” de R$ 338 milhões aos cofres públicos.
Durante a pandemia, as empresas concessionárias sofreram prejuízos com a queda de arrecadação das tarifas, em função da diminuição da circulação de pessoas em meio a quarentenas e tentativas de isolamento social. Ao obrigar uma parte dos idosos a compor receita, pagando R$ 4,40 por viagem, os governos estadual e municipal esperam desafogar concessionárias e diminuir prejuízos. Será que vai funcionar?
Na nota técnica, o Idec questiona esta hipótese, já que os idosos “serão desestimulados a usar o transporte coletivo e terão seu acesso limitado por uma grave barreira econômica”, de modo que parte deles deixará de utilizar o serviço, sem compor a nova massa de pagantes. Para o Instituto, a medida carece de uma justificativa “mais concreta e correta, considerando os custos reais do sistema”.
A medida é perversa porque a população de menor renda é justamente a principal usuária de transporte público na cidade de São Paulo: neste grupo, 73% das viagens são feitas por transporte coletivo, segundo dados da Pesquisa de Origem e Destino do Metrô de 2017. E o preço da tarifa é um fator impeditivo para se deslocarem pela cidade, como foi mostrado por pesquisa de 2019 da Rede Nossa São Paulo: sete em cada dez paulistanos deixam de fazer, sempre ou às vezes, atividades como consultas médicas e exames, ou visitas a amigos e parentes, por não poderem pagar o valor da passagem.
O cálculo apresentado também não está baseado em estudos consistentes de impacto, segundo o Idec, já que a estimativa de uso apresentada pelo governo, baseada apenas na bilhetagem, não considera os passageiros que apresentam RG para embarcar, o que é permitido por legislações federais, estaduais e municipais — pelo menos 697 mil pessoas de 60 a 65 anos viviam na capital de São Paulo em 2019, de acordo com o IBGE, quase quatro vezes o número de impactados apontado pela Prefeitura.
E o que poderia ter sido feito pelos governos para preservar um equilíbrio financeiro nos contratos sem comprometer o direito à cidade de pessoas idosas?
Em dezembro do ano passado, tramitou no Congresso uma proposta de criação de fundo para o transporte que poderia ser usado por municípios e estados para compensar as perdas financeiras dos sistemas de transporte. Era uma medida absolutamente importante, e apesar de aprovada pelas duas casas, acabou integralmente vetada pelo presidente Jair Bolsonaro. Seriam destinados 4 bilhões de reais da União para auxiliar o setor de transporte coletivo durante a pandemia de Covid-19. E, neste momento decisivo, tanto a prefeitura quanto o governo do estado de São Paulo pouco se mobilizaram para viabilizar o fundo e salvar seu transporte público.
Para além das contas, que sempre é uma questão de prioridade (qual é o impacto econômico dos aumentos salariais do prefeito e secretários?). É preciso dizer que esse tipo de medida de austeridade, que corta direitos em nome do equilíbrio fiscal e trata proteções sociais como “custos”, já começa o debate de forma equivocada. É função do Estado a garantia de direitos e qualidade de vida, especialmente em momentos de crise. E, para isso, é preciso uma gestão de recursos públicos que priorize a garantia de direitos e qualidade de vida.
Não existe transporte público sem injeção massiva de recursos públicos. Ele não pode se nutrir apenas de tarifas individuais. Não é a gratuidade vilã do equilíbrio financeiro dos contratos, e sim a opção feita pelos gestores de manter um modelo de remuneração das empresas concessionárias por passageiro (incentivando a superlotação dos carros).
Além das diversas mobilizações populares, lideradas pelo movimento Passe Livre São Paulo, o legislativo também está se articulando para derrubar a medida. O PT e o Psol protocolaram ontem o PL 48/2021 pelo retorno da gratuidade do transporte público a idosos com menos de 65 anos em São Paulo.