GT Habitação e Cidade¹
O governo federal publicou, na última quarta-feira, dia 26 de agosto de 2020, a Medida Provisória (MP) 996/2020, que institui o Programa Habitacional Casa Verde e Amarela. A medida nos traz novas informações em relação às divulgações que vinham sendo feitas pelo Ministério de Desenvolvimento Regional (MDR) nos últimos meses, com indicativos de mudanças de curso dos programas em andamento.
A proposta vem sendo apresentada com o discurso oficial de romper com o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) e marcar a atuação da gestão atual, superando as políticas dos governos adversários passados. Tanto em seu lançamento, quanto nas demais apresentações oficiais do programa, o Ministro Rogério Marinho e o Secretário Nacional de Habitação, Alfredo dos Santos, do MDR, expuseram que foram feitas várias consultas e discussões públicas para a construção da proposta; os agentes do setor privado foram consultados, conforme informação repassada pelo Secretário em conferência online junto da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC)², citando de forma difusa uma possível conversa com especialistas no assunto, como as universidades e entidades da sociedade civil em geral.
No entanto, não tivemos notícia – dentre as universidades e entidades parceiras que compõem a rede de pesquisa do Observatório das Metrópoles – de qualquer debate ou consulta que tenha procurado discutir as propostas do novo programa e incorporar o acúmulo de discussões e pesquisas já realizadas sobre o tema. Diversos pesquisadores em todo o Brasil vêm se dedicando a analisar criticamente os resultados dos programas de habitação desenvolvidos anteriormente, discutindo as experiências internacionais, refletindo sobre déficit habitacional, além de monitorar os efeitos gerados pela crise recente sobre as demandas por moradia³. Dialogar com esse acúmulo poderia ter contribuído para evitar a permanência de erros dos programas anteriores e alguns dos pontos críticos que estão elencados abaixo.
As informações disponíveis até o momento não nos permitem avaliar completamente o impacto das medidas propostas. Porém, é possível fazer algumas considerações que nos parecem relevantes acerca do novo programa, a partir do que foi explicitado pela MP 996/20, dos temas que ficaram omissos no texto, além das últimas declarações públicas do ministro e secretários do MDR.
O texto da MP apresenta algumas diretrizes gerais, em que recupera os instrumentos legais e financeiros de política habitacional, como o SNHIS (Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social), o FNHIS (Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social), o FDS (Fundo de Desenvolvimento Social) e o FAR (Fundo de Arrendamento Residencial), todos criados ou configurados em sua forma atual a partir de 2003, ou seja, no período lulista. Ao definir os outros elementos do programa, no entanto, não há mais referência ao SNHIS, assim como não há mais referência à modalidade Programa Minha Casa Minha Vida – Entidades, que era apoiada por recursos do FDS.
O novo programa mantém, em linhas gerais, o modelo de provisão habitacional construído pelo Programa Minha Casa Minha Vida, com algumas mudanças. Estabelece um novo sistema de categorização das famílias residentes em áreas urbanas por faixa de renda, de modo que as Faixas 1, 1.5, 2 e 3 do PMCMV foram substituídas por grupos no novo programa, quais sejam:
- Grupo 1, famílias com renda mensal até R$2 mil;
- Grupo 2, renda mensal de R$ 2 a R$ 4 mil; e
- Grupo 3, renda mensal de R$ 4 a R$ 7 mil.
Segundo a apresentação oficial divulgada pelo Ministério, as modalidades de atendimento para as famílias do Grupo 1 serão a Produção Financiada, Melhoria Habitacional, Regularização Fundiária e Produção Subsidiada. Enquanto as famílias dos Grupos 2 e 3 terão acesso à Produção Financiada e à Regularização Fundiária. A MP anuncia também uma redução dos juros e a possibilidade de que o Grupo 1 seja atendido por produção financiada, enquanto no PMCMV era apenas por produção subsidiada.
A grande inovação é a proposta de inclusão de um programa de regularização fundiária e de melhorias habitacionais – dando continuidade a políticas que já existiam antes sem ser diretamente vinculadas ao PMCMV – e cujas atividades deverão ser desenvolvidas por empresas ou por profissionais, sem participação do setor público e a partir de ações de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (ATHIS). Em relação aos recursos disponíveis para o ano de 2020, o MDR divulgou⁴ que serão disponibilizados R$ 500 milhões do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS), referentes a uma doação dos cotistas, majoritariamente empresas do setor financeiro, para utilização nas ações de Regularização Fundiária e Melhorias Habitacionais e 25 bilhões de reais do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para contratações de unidades na modalidade Produção Financiada.
Diante disso, destacamos:
1. A descontinuidade da Produção Subsidiada com recursos do OGU para as famílias de baixa renda.
A discrepância de valores acima mencionada já indica que o Grupo 1, que corresponde à população com renda mensal até R$ 2 mil, aquela que compõe o grosso do déficit habitacional e tem maior necessidade de subsídios para acessar a moradia, não será priorizada na nova política habitacional. O texto da MP prevê a Produção Subsidiada para o Grupo 1, no entanto, a declaração do ministro durante a apresentação do novo programa reitera o que já vem sendo sinalizado pelo MDR ao longo dos últimos meses: não haverá novas contratações para as famílias de baixa renda a curto/médio prazo por falta de recursos do Orçamento Geral da União (OGU) para essa finalidade.
Com efeito, não foram realizadas novas contratações para a Faixa 1 do PMCMV desde que Bolsonaro assumiu o governo. O ministro Rogério Marinho afirmou que apenas a partir de 2021 poderão serão mobilizados recursos da União para garantir a continuidade das obras de 285 mil unidades habitacionais já contratadas ou paralisadas (majoritariamente na Faixa 1) durante o PMCMV e os empreendimentos de urbanização em andamento, com aporte de R$ 2,4 bilhões⁵. Assim, não há previsão de contratação de novas unidades para habitação de interesse social com subsídios da OGU até 2024, meta estabelecida para a finalização dos contratos já iniciados, apesar das justificativas do programa envolverem a redução do déficit habitacional. Essa declaração está de acordo com as medidas recentes tomadas pelo MDR que, desde o segundo semestre de 2019, vem mantendo o PMCMV funcionando majoritariamente com recursos provenientes do FGTS, no contexto da política de austeridade que vem sendo implementada desde o governo de Michel Temer e reafirmada no governo atual⁶.
Dos R$ 5,1 bilhões previstos no Orçamento Geral da União (OGU) em 2019 para os subsídios no âmbito do PMCMV, apenas R$ 2,7 bilhões tinham sido executados até agosto, quando o atraso nos repasses somava aproximadamente 500 milhões de reais⁷. No mesmo mês de 2019, determinou-se que o FGTS assumisse integralmente os descontos e subsídios nas faixas 1,5 e 2⁸. Em 2020, a continuidade do PMCMV foi ainda mais ameaçada devido à falta de recursos somada à crise do coronavírus. O orçamento previa o aporte de apenas R$ 2,71 bilhões do governo federal (aproximadamente metade da previsão de 2019), sendo que até março de 2020 as contratações estavam suspensas, pois não havia clareza do percentual de contribuição da União para os subsídios nas faixas 1,5 e 2.
Por outro lado, o anúncio da retomada das obras paralisadas vai criar a possibilidade de que o governo transforme as quase 300 mil unidades que foram contratadas sob a égide do PMCMV em produtos que terão a marca do novo programa, atendendo a objetivos eleitorais e de propaganda do governo.
Por fim, o PMCMV-Entidades, que atendia às famílias das faixas 1 e 1,5, ainda que não tenha sido oficialmente descontinuado, também não irá contar com novas contratações até 2024, uma vez que se enquadra na mesma situação das contratações subsidiadas para o Grupo 1, e que os recursos disponíveis no FDS serão utilizados para as ações de Regularização Fundiária e Melhorias Habitacionais previstas no novo programa, conforme declaração do Secretário Nacional de Habitação.
2. Os contratos irregulares da Faixa 1.
Dados do MDR indicam que, em 2020, 40,6% dos contratos relativos ao PMCMV estavam inadimplentes, com atrasos no pagamento de parcelas superiores a 90 dias. Em especial, entre as famílias com menor renda (Faixa 1)⁹. Apesar da promessa do MDR de que haja um “mutirão de renegociação” das dívidas previsto para o primeiro semestre de 2021, o texto da MP, mesmo querendo romper com o antigo programa, ainda faz referência (e altera) a Lei nº 11.977 de 2009, que passará a vigorar com modificações significativas em relação à situação das famílias inadimplentes.
O artigo 19º da MP, que trata dessas alterações, determina que na hipótese de não pagamento pelo beneficiário, as unidades poderão ser doadas pelo FAR ou pelo FDS aos estados e municípios ou aos órgãos de suas administrações diretas e indiretas que pagarem os valores devidos pelas famílias inadimplentes, com vistas à sua permanência na unidade habitacional ou à sua disponibilização para outros programas de interesse social. E acrescenta, ainda, que para garantia da posse legítima dos empreendimentos do PMCMV ainda não alienados aos beneficiários finais que venham a sofrer turbação ou esbulho poderão ser empregados atos de defesa ou de desforço diretos, inclusive por meio do auxílio de força policial.
Assim, o texto da MP 996/2020 abre brechas para a realização de despejos em plena pandemia de COVID-19, o que caracterizaria uma violação de direitos humanos, conforme apontado pelo relator da ONU sobre o direito à moradia¹⁰, que solicitou ao Brasil a suspensão dos despejos durante a pandemia, independentemente do status legal da posse. A retirada dos imóveis da classe trabalhadora por inadimplência não se enquadra na lógica de uma política habitacional desenvolvida com recursos a fundo perdido, em que a contribuição dos beneficiários não corresponde a um financiamento. Cabe ressaltar que, até o momento, apesar dos impactos da COVID-19 sobre as condições de sobrevivência das famílias mais pobres, os beneficiários do Faixa 1 não tiveram garantida a suspensão do pagamento das mensalidades, como ocorreu com as faixas de renda superiores, financiadas pelo FGTS.
3. O papel dos municípios no novo programa.
No que tange ao papel dos governos locais no âmbito do programa, o mesmo não segue o modelo do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) – Lei 11.124/05, que prevê a aplicação dos recursos federais de forma descentralizada, no qual o poder local é responsável pela constituição de fundo, conselho e pela formulação de um Plano Habitacional de Interesse Social, considerando as especificidades do local e da demanda. Portanto, seguindo a problemática do PMCMV, o novo programa não se vincula obrigatoriamente a uma política habitacional local, inclusive abrindo brechas maiores para um descolamento da produção em relação às necessidades de moradia dos municípios.
Dessa forma, serão atribuições dos poderes municipais apenas ações complementares e a responsabilidade por parte dos custos dos empreendimentos, referentes à infraestrutura, como a provisão de redes de abastecimento de água, esgotamento sanitário e energia elétrica através de suas concessionárias. Da mesma forma, as novas ações de regularização fundiária e de melhorias habitacionais não serão desenvolvidas através de projetos de iniciativa local e sob gestão das administrações municipais, mas com protagonismo do setor privado.
4. A ausência de políticas amplas de Regularização Fundiária e ATHIS.
Sobre as modalidades de Regularização Fundiária e Melhorias Habitacionais com ATHIS, cabe ressaltar que esses programas não estão vinculados a políticas amplas de Regularização Fundiária e de Urbanização de Assentamentos Precários que viabilizassem intervenções estruturais fundamentais à garantia das condições de moradia digna, como o tratamento de áreas de risco, o desadensamento, a abertura de sistemas de circulação adequado, o acesso ao saneamento básico e etc. Os recursos de R$ 500 milhões, previstos para serem liberados ainda em 2020, provenientes do FDS, deverão atender, segundo as previsões do MDR, 130 mil famílias nas modalidades de Regularização Fundiária e Melhorias, de modo que a média de valor por contrato é de R$3.800, valor que corresponderia a intervenções de pequeno porte e sem possibilidades de resolver problemas de precariedade estrutural das moradias e dos assentamentos precários.
A partir dos depoimentos do Secretário Nacional de Habitação, pode-se concluir que serão regularizadas apenas áreas que não apresentem situações fundiárias ou de infraestrutura de maior complexidade, o que corresponde a uma pequena parcela do problema da precariedade habitacional e que não resolverá os problemas graves vividos pela população residente em assentamentos precários. A ausência de recursos destinados à urbanização compromete a efetividade do novo Programa em atingir as diretrizes gerais estabelecidas na MP, sobretudo no art.2º, que diz que “a habitação [deve ser] entendida em seu sentido amplo de moradia, a qual se integram as dimensões física, urbanística, fundiária, econômica, social, cultural e ambiental do espaço em que a vida do cidadão acontece”.
Esta visão da regularização fundiária desvinculada de ações mais amplas de urbanização e inclusão social apoia-se na polêmica Lei 13.465/2017, aprovada ainda no governo Temer, que segue valendo, salvo pequenas modificações introduzidas pela MP. Os projetos urbanísticos e obras de infraestrutura ficam a cargo dos municípios, não sendo impeditivos para a realização do que parece ser um dos principais objetivos do novo programa: a titulação em massa de imóveis irregulares. Em declarações recentes, tanto o Ministro Marinho, quanto o presidente do Bacen, Roberto Campos Neto, enfatizaram o objetivo de conferir títulos plenos de propriedade para que os imóveis se valorizem e para que as famílias possam “extrair valor de suas casas”. Noutros termos, trata-se de empregar a propriedade imobiliária popular regularizada para inserir parcela significativa da população no mercado de crédito imobiliário, preparando terreno para securitização das dívidas, outros dos objetivos perseguidos pelo atual governo, com apoio da Caixa Econômica Federal (CEF)¹¹.
Isto indica que o Programa Casa Verde e Amarela precisa ser lido não apenas como continuidade ao PMCMV, mas também como parte de transformações mais amplas do modelo de financiamento do imobiliário no país, que apontam para uma maior aproximação entre o setor imobiliário e os interesses do mercado financeiro, concorrendo para tratamento da casa-própria como mercadoria e ativo financeiro, em detrimento da universalização do direito à moradia preconizada na Constituição Federal de 1988.
A MP aponta para algumas medidas que, olhadas de forma isolada, poderiam ser consideradas adequadas, como a redução dos juros, particularmente a utilização de taxas ainda menores para empreendimentos no Norte e no Nordeste. Embora sejam medidas positivas, deve-se considerar que, sem novas contratações no Grupo 1, a população mais pobre, que vive majoritária nas cidades nordestinas, não será atendida. Outro ponto relevante é que esse programa está sendo anunciado num contexto de reorganização política do Governo Bolsonaro, após a sua aliança política com o Centrão e a adoção definitiva do modelo de presidencialismo de coalizão, dos quais um dos principais artífices é o Ministro Marinho. Nesse sentido, existem possibilidades bastante palpáveis de que haja um direcionamento de recursos para o fortalecimento da “base aliada” do governo e também que a priorização do Nordeste tenha mais a ver com objetivos eleitorais do que com o enfrentamento efetivo do déficit habitacional.
Outras entidades, movimentos sociais e pesquisadores(as) também já se manifestaram quanto ao lançamento do programa. Abaixo algumas notas e textos já publicados:
- Programa Casa Verde e Amarela nega o direito à moradia (União Nacional por Moradia Popular);
- Programa Casa Verde e Amarela é insignificante e ridículo, diz Miriam Belchior (Rede Brasil Atual);
- Os tons de cinza do Casa Verde e Amarela (Le Monde Diplomatique Brasil);
- Casa Verde e Amarela, securitização e saídas da crise: no milagre da multiplicação, o direito ao endividamento (Passa Palavra);
- Casa Verde e Amarela: o que pode mudar na versão bolsonarista do Minha Casa Minha Vida (BBC).
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¹ Texto elaborado pelo GT Habitação e Cidade (IPPUR/UFRJ) do Observatório das Metrópoles, com colaboração de João Tonucci (Cedeplar/FACE/UFMG). Contato: habitacao@observatoriodasmetropoles.net
² Disponível em “Quintas da CBIC”: https://www.youtube.com/watch?v=RKRhtWTocU8&t=1s
³ Destacamos aqui as publicações “Minha Casa… E a Cidade? Avaliação do Programa Minha Casa Minha Vida em seis estados brasileiros” (2015) e “22 anos de política habitacional no Brasil“(2017).
⁴ Disponível em: https://www.mdr.gov.br/programa-casa-verde-e-amarela/financiamentos
⁶ Dossiê do desmonte da política urbana federal nos governos Temer e Bolsonaro e seus impactos sobre as cidades. Disponível em: https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2020/02/Dossi%C3%AA-FNRU-2020-Final.pdf
⁸ A Portaria Interministerial n. 7/2019, publicada no dia 14 de agosto de 2019 no Diário Oficial da União, estabeleceu um teto de 450 milhões (metade dos 900 milhões previstos) do governo federal para os subsídios das Faixas 1,5 e 2, que passaram a ser assumidos pelo FGTS. Disponível em: https://www.mdr.gov.br/ultimas-noticias/12224-nova-regra-viabiliza-ampliacao-de-recursos-do-ogu-a-faixa-1-do-minha-casa-minha-vida
⁹ Agência Senado. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/08/26/mp-cria-programa-casa-verde-amarela-no-lugar-do-minha-casa-minha-vida
¹⁰ Disponível em: https://nacoesunidas.org/especialista-da-onu-pede-fim-dos-despejos-no-brasil-durante-a-crise-da-covid-19/
¹¹ Sobre o aspecto financeiro que acompanha o Programa, ver: “A Cidade é Nossa com Raquel Rolnik #24: Casa Verde e Amarela e a financeirização da moradia”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uAEBOQ32qCU