O Observatório das Metrópoles Núcleo Natal e o Fórum Direito à Cidade da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em conjunto com outras organizações e coletivos, assinam a “Carta aberta aos gestores municipais sobre a realização de Audiências Públicas e outros eventos virtuais nos municípios da Região Metropolitana de Natal durante a pandemia do COVID-19“, onde colocam em discussão a participação social online nas revisões dos planos diretores em andamento na RMNatal.
O documento, que não se coloca necessariamente contra a utilização da forma virtual como um meio complementar à participação social presencial, destaca que uma parte significativa da população, nesse período, pode não conseguir manter os custos de serviço de internet e manutenção de seus aparelhos, caso os tenha, para viabilizar essa participação. Nesse sentido, defende que audiências públicas, reuniões e atividades similares no formato online somente devem ocorrer se forem garantidos à população local os meios gratuitos de acesso à internet pelos gestores públicos que coordenam os respectivos processos de revisão citados.
A seguir, confira o documento na íntegra:
Desde o final do mês de fevereiro a pandemia da COVID-19 vem se espalhando pelo Brasil, porém, somente a partir do mês de março medidas de isolamento social passaram a ser tomadas pelo Estado em diferentes instâncias governamentais – a primeira morte pela doença no país foi confirmada no dia 17 de março – o que acarretou a paralisação de algumas atividades burocráticas dos órgãos públicos considerados não essenciais ao combate da pandemia. Naquele momento o foco foi direcionado às ações de enfrentamento ao coronavírus. Passado o processo de adequação da população às novas medidas, percebe-se um movimento dos governos municipais dirigido à retomada de algumas atividades, a priori, consideradas como não essenciais, entre elas os processos de revisão de Planos Diretores que estavam suspensos, como exemplo do município de São Gonçalo do Amarante que realizou no dia 7 de abril uma audiência pública online (por meio das plataformas digitais: YouTube, Instagram e Facebook) na qual testou o uso da participação social virtual ou do exercício de uma democracia “digital”.
O fato é que, embora a participação social virtual, sob influência de distintos órgãos multilaterais, venha ganhando certa notoriedade, constitui uma estratégia que põe em evidência muitos questionamentos quanto às formas de inclusão digital, ainda muito desiguais, considerando o baixíssimo índice de acesso à internet de boa qualidade no país. Seguindo os mesmos passos de São Gonçalo do Amarante, o município de Natal retomou no início do mês de maio as atividades do processo de revisão do seu Plano Diretor e submeteu ao Conselho da Cidade (CONCIDADE/Natal) a aprovação de uma resolução que estabelece o seguimento das atividades, precisamente a realização das pré-conferências, na qual serão eleitos os delegados que terão direto a voto na conferência final do processo, por meio da participação social virtual.
Desde início vale ressaltar que o objetivo aqui não é ser contra a utilização da forma virtual como um meio complementar à participação social presencial, pois em um Estado democrático de direito a participação deve ser garantida para todos os cidadãos através das mais diversas opções disponíveis à administração pública e não apenas a um número limitado de pessoas favorecidas por sua condição de renda. Destaca-se aqui que Natal aguarda há mais de 10 anos pela revisão do seu principal instrumento urbanístico, que estava suspensa desde o dia 18 de março de 2020, e foi retomada no início do mês de maio com atividades que necessitam de participação virtual da população. Não está sendo fácil compreender os motivos da pressa de se concluir um processo de revisão que está atrasado há mais de 3 anos, pois o atual Plano Diretor completou 10 anos em 2017.
Nesse sentido, é importante refletir sobre a adoção de um modelo de participação social virtual nos processos de revisão dos Planos Diretores citados para compreender se os formatos adotados resultam em inclusão ou exclusão da população. Quanto ao processo presencial de participação na revisão do Plano Diretor de Natal (PDN), destaca-se que as audiências públicas realizadas nos dias 14 de dezembro de 2019 e 20 de fevereiro de 2020 tiveram 296 e 209 participantes, conforme as listas de presença disponíveis na página oficial da revisão do PDN¹, respectivamente, 0,033% e 0,023% da população estimada de Natal. Quando analisado pela perspectiva dos tipos de representação dos participantes envolvidos, é possível presumir que os números também revelam as possíveis dificuldades de inclusão da sociedade civil nos formatos virtuais de participação.
Na audiência do dia 14 de dezembro de 2019, convocada para apresentação da sistematização das contribuições virtuais da primeira etapa da leitura comunitária do processo de revisão do Plano Diretor, os 296 participantes tinham a seguinte configuração de representação por seguimento: 20,60% do poder público; 21,62% dos movimentos populares; 8,1% dos trabalhadores ou entidades sindicais; 10,81% dos empresários relacionados à produção e ao financiamento do desenvolvimento urbano; 19,93% das entidades profissionais, acadêmicas, de pesquisa e conselhos profissionais; 0,3% das organizações não governamentais com atuação na área do desenvolvimento urbano e ambiental; e 15,87% de “outros”, categoria aplicada aos participantes sem um tipo especifico de representação. Já na audiência do dia 20 de fevereiro de 2020, que teve 209 participantes, portanto 30% menos que a anterior, houve uma visível alteração na representação: 39,23% representam o poder público; 13,87% representam movimentos populares; 0,4% representam trabalhadores ou entidades sindicais; 0,2% representam empresários relacionados à produção e ao financiamento do desenvolvimento urbano; 25,35% representam entidades profissionais, acadêmicas, de pesquisa e conselhos profissionais; 0 % representam organizações não governamentais com atuação na área do desenvolvimento urbano e ambiental; e 14,83% representam outros participantes. Nessa última audiência pública presencial, convocada para aprovação da minuta após o encerramento dos Grupos de Trabalho, percebe-se uma grande maioria de representantes do poder público, além de um aumento considerável também de participantes de entidades profissionais (nas quais incluem-se as categorias ligadas ao setor patronal).
Analisando a audiência pública do processo de revisão de São Gonçalo do Amarante, realizada no dia 7 de abril com o uso das plataformas virtuais, pode-se fazer duas leituras: o uso da internet como forma de complementar a publicidade e transparência dos atos e até mesmo permitir uma forma remota de participação demonstra-se como uma medida positiva, tendo em vista, inclusive, que a apresentação do diagnóstico, elaborado com clareza metodológica, foi de fácil compreensão; Por outro lado, o mesmo não pode ser constatado na fase de debates, tendo em vista que o processo não possibilitou a leitura integral das perguntas e as respectivas respostas, revelando um modelo de votação confuso e de difícil fiscalização e controle, que também comprometeu o processo de votação. Ademais, os participantes não conseguiram averiguar se todos os delegados com direito a voto estavam presentes virtualmente e se tiveram condições de acesso à internet durante todas as horas da audiência, pois essas informações não foram disponibilizadas pela equipe técnica que conduziu a audiência online e, quando questionados durante à audiência sobre a participação social, foi respondido apenas que havia muitas pessoas assistindo.
O município de Natal, que suspendeu o processo de revisão do Plano Diretor após recomendações do Ministério Público Estadual, em razão da pandemia da COVID-19 no dia 18 de março de 2020, convocou no dia 23 de abril de 2020 os membros do CONCIDADE -Natal para uma reunião virtual extraordinária para deliberar sobre a possibilidade de retomar o processo de revisão, na qual aprovou-se no dia 06 de maio de 2020 uma resolução com regras sobre os procedimentos para a realização da pré-conferência e da conferência final previstas no Regimento Interno de revisão do PDN². Na pré-conferência – fases determinantes da participação social no processo de revisão – serão votados os delegados que irão representar toda a população natalense na conferência final de aprovação da minuta que será enviada, em seguida, para a Câmara de Vereadores, sendo necessária uma ampla participação social na escolha desses representantes. No entanto, até agora não está claro de que forma a participação irrestrita, ou seja, a qualquer cidadão, será garantida. Ressalta-se que tanto no CONCIDADE como no Núcleo Gestor da revisão do Plano Diretor de Natal há membros advindos de categorias e classes sociais distintas, não podendo ser considerado um grupo homogêneo, vez que nele estão servidores públicos municipais, professores, empresários, profissionais liberais, representantes de associações de bairro, movimentos populares, entre outros.
Importante destacar que esse esforço de reflexão não pretende deslegitimar o uso da internet em si, como forma de ampliar os canais de comunicação e publicidade entre a gestão pública e a sociedade civil. Reconhecemos que, a cada dia, os meios digitais demonstram sua capacidade de inovação, aproximação e soluções de situações e problemas antes consideradas lentas, ineficientes ou até mesmo pouco transparentes. Entretanto, colocamos um questionamento para reflexão, sobre a capacidade operacional dos municípios para conduzir esse tipo de processo participativo, na forma remota, pois ao migrar do modelo presencial para o virtual é imprescindível que se demonstre, com total transparência, os mecanismos e procedimentos adotados para garantir uma efetiva participação de todos.
Registre-se o fato de que os formatos de reunião de colegiados que estão acontecendo online em distintos setores profissionais (universidade, parlamento, tribunais, entre outros), partem do pressuposto de que todos os participantes tenham condições iguais e plenas (homogêneas) de acesso à ferramenta e aos seus respectivos conteúdos, sem os quais não será possível a validação e a efetividade deliberativa da reunião. No caso de um chamamento aberto, à população em geral, essas condições de acesso devem ser asseguradas e demonstradas desde o início do processo para todos os participantes da audiência. Ademais, em tempos de pandemia, com os trabalhadores exercendo suas atividades de forma remota, com algumas escolas e faculdades privadas adotando formatos de Educação à Distância, com as famílias precisando dividir seus equipamentos (quando eles existem) e etc., é necessário justificar a urgência de adotar medidas que limitam a participação da sociedade em um processo de decisão de fundamental importância para o bem estar social.
Nossa preocupação é que a participação social não se converta apenas em retórica, um compromisso meramente burocrático, mas que, de fato, se constitua em estratégia de gestão que possibilite a real apreensão dos objetivos e conteúdo das políticas e, no caso do Plano Diretor, da minuta que deverá ser aprovada como resultado das contribuições da sociedade. Para isso, é importante verificar se os princípios da representatividade, diversidade e pluralidade da participação social estão sendo cumpridos também de modo virtual. Nesse sentido, para uma participação de forma plena é preciso o governo municipal passe a estimular a participação social por meio de ações de mobilização e informação para que a deliberação seja efetiva.
É essencial reconhecer que as desigualdades do mundo offline são reproduzidas no mundo online e, por isso, precisamos assumir a responsabilidade de pensar em uma participação inclusiva nas atividades humanas realizadas no contexto da internet. São diversas e multifacetadas as formas de exclusão e desigualdade no Brasil e no mundo. No contexto em discussão, é fato que uma parcela considerável da população dos Municípios da RMNatal não possuem computador em casa – as pesquisas mais recentes sobre isso demonstram que a Internet está presente em apenas 30% das pessoas de famílias de baixa renda (nível socioeconômico D e E), em famílias de alta renda (A e B) as proporções são 99% e 93%, respectivamente³ – embora provavelmente uma parcela considerável da população tenha acesso à internet de alguma forma, pelo menos por meio de celulares smartphones. Entretanto, estes, não substituem computadores, necessários para os complexos fins exigidos no processo de revisão de um Plano Diretor, como a análise de diagnóstico e leitura de uma cidade ou mesmo a eleição de delegados em uma pré-conferência e a votação da minuta de revisão do Plano Diretor na Conferência Final.
A qualidade do sinal de internet, bem como a resolução de seus equipamentos também podem ser um obstáculo. Somam-se todas as dificuldades e fragilidades “técnicas” e “operacionais” inerentes ao próprio processo, sem definição de metodologias claras e falhando na capacitação do cidadão comum, de modo a assegurar a participação efetiva, seja no ambiente online ou offline. Há também os obstáculos geracionais que devem ser considerados, principalmente em relação aos idosos, público frequente nas audiências públicas, muitos com dificuldades de acesso as plataformas virtuais, fato que evidencia, ainda mais, as limitações dessas estratégias para a efetividade de uma ampla participação social. Também deve-se considerar os obstáculos para as pessoas com deficiências (PCD) visuais e auditivas, pessoas não alfabetizadas ou com pouca instrução.
Diante disso, e considerando que estamos vivenciando uma situação absolutamente nova, uma crise sanitária sem precedentes com a pandemia da COVID-19, se faz necessário ponderar sobre a real necessidade da retomada das atividades que envolvem o processo de revisão de Plano Diretor que, a princípio, também não se enquadram no que pode ser chamado de essencial. Assim, questiona-se quais os motivos para a continuidade ou retomada dessa discussão nesse momento, como aconteceu em São Gonçalo do Amarante com a realização da referida audiência, a qual, inclusive, somente foi noticiada 6 (seis) dias antes sobre a mudança para o formato virtual. Quanto a Natal, têm-se o mesmo questionamento: a urgência da retomada também se justifica? Além disso, como o município de Natal pretende garantir a efetiva participação social e a total transparência dos processos eletivos implicados na realização das pré-conferências e da conferência final?
As respostas aos questionamentos feitos são essenciais para que possamos avaliar a possibilidade de um caminho frutífero e virtuoso nos processos participativos de revisão dos planos diretores em andamento na Região Metropolitana de Natal. Assim, as gestões municipais devem demonstrar a capacidade de acesso à internet pela população e os canais de comunicação e de disponibilização dos documentos com as informações necessárias às discussões virtuais.
Por fim, ressalta-se que as pessoas e os grupos sociais estão vivendo diferentes quarentenas. As manchetes dos jornais informam todos os dias que as diferentes camadas sociais vivenciam de modo diferente os problemas decorrentes da pandemia, alguns tentam adequar suas rotinas ao isolamento social com home office, aulas telepresenciais, atividades físicas individuais, serviços de delivery, entretenimento via lives, etc.; outros – e aqui se inclui a grande maioria da população do Brasil – luta pela sobrevivência, seja na fila de um banco para conseguir o auxílio emergencial do governo e não morrer de fome, seja na fila por atendimento médico para sobreviver aos efeitos devastadores da COVID-19 que, segundo os dados oficiais das secretarias de saúde dos estados, já matou mais de 12 mil pessoas e contaminou mais de 180 mil no país em pouco mais de 2 meses desde o primeiro caso confirmado, segundo os dados oficiais do Ministério da Saúde⁴.
Assim, retomando a discussão sobre a participação social nas revisões dos planos diretores em andamento na RMNatal, realçamos que é preciso considerar que uma parte significativa da população, nesse período, poderá não conseguir manter os custos de serviço de internet e manutenção de seus aparelhos, caso os tenha. Diante disso, recomendamos que a população dos municípios que estão com os processos de revisão em curso, principalmente de Natal e São Gonçalo do Amarante, que já aderiram ao formato virtual, somente poderá ser convocada a participar de audiências públicas, reuniões e atividades similares no formato online se lhes forem garantidos os meios gratuitos de acesso à internet pelos gestores públicos que coordenam os respectivos processos de revisão citados, não podendo transferir para a população a responsabilidade de operacionalizar e garantir a participação social.
Fórum Direito à Cidade Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Observatório das Metrópoles Núcleo Natal
Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU)
BrCidades
RN Solidariedade COVID
Associação Potiguar Amigos da Natureza (ASPOAN)
Fórum Vila em Movimento (FVM)
Projeto Motyrum de Educação Popular em.Direitos Humanos – Núcleo Urbano
Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB)
Associação dos Ciclistas do Rio Grande do Norte (ACIRN)
Sindicato dos Arquitetos e Urbanistas no Estado do Rio Grande do Norte (SINARQ/RN)
Movimento Nacional População em Situação de Rua no RN (MNPR/RN)
Instituto dos Amigos do Patrimônio Histórico e Artístico Cultural e da Cidadania (IAPHACC)
Comunitários contra COVID
Centro Social Pastoral Nossa Senhora da Conceição
Instituto Soma Brasil
Rede de Ambientalistas Potiguar (RAP)
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¹ Informações disponíveis em: https://natal.rn.gov.br/semurb/planodiretor/paginas/menu/aba2/pagina1.php
² Informações disponíveis em: https://natal.rn.gov.br/segap/paginas/ctd-1044.html
³ Fonte: Cetic.br/NIC.br (2019).
⁴ Informações disponíveis em: https://covid.saude.gov.br/