“Morreu na contramão atrapalhando o sábado”
(Construção – Chico Buarque do Holanda)
Apesar da consciência crescente da população e de alguns setores governamentais sobre a gravidade da pandemia do coronavírus e da necessidade do isolamento social como medida preventiva essencial, o setor da construção civil ainda mantém os canteiros de obras em atividade.
De acordo com o Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020, assinado pelo Presidente da República, que define os serviços públicos e as atividades essenciais, a construção civil não se enquadra como de exceção, não sendo obrigada a continuar em atividade.
Os governos estaduais e municipais, por sua vez, estão liberando decretos que indicam a continuidade das atividades em canteiro. A grande maioria dos decretos não é explícita ao tratar da construção civil e decidem por manter as obras em andamento. Em algumas unidades da federação, como São Paulo, utiliza-se o argumento de que, por não terem atendimento ao público, essas atividades podem continuar. Até a data da publicação deste texto, apenas quatro estados paralisaram as atividades do setor (Ceará, Pernambuco, Santa Catarina e Goiás).
Segundo decisão tomada no dia 16 de março, a diretoria do SINDUSCON-SP decidiu manter as atividades. Curiosamente, a decisão foi tomada através de reunião realizada em teleconferência, conforme informação veiculada pelo Jornal o Estado de São Paulo, no dia 18 de março1. Ou seja, o SINDUSCON incentiva os trabalhadores de escritório a ficar em casa, os diretores se reúnem a partir de seus home-offices, mas os operários vão para a obra.
As medidas anunciadas são pouquíssimo importantes frente à gravidade da crise que enfrentamos: redução de contingente na obra, ampliação de medidas de segurança, orientação, limpeza de máquinas e equipamentos e redução da lotação em elevadores e cremalheiras. No documento encaminhado às empresas2, assinado pelo SINDUSCON-SP, ABRAINC, e SECOVI-SP, entre outras, chama a atenção o caráter banal com que o assunto é tratado, sem qualquer menção à gravidade da situação. A fala do presidente da ABRAINC3, Luiz França, é reveladora do descaso para com a vida dos operários: “Os canteiros não são lugar de aglomeração. Os operários trabalham distantes um do outro, em lugares arejados, o que reduz riscos de propagação do vírus”4.
O posicionamento do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) foi a suspensão de suas atividades presenciais. Porém, só a iniciativa do CAU do Distrito Federal abordou a questão dos trabalhadores de obra, sem indicar a paralisação, mas orientando para a redução em números de operários em canteiro e propondo alternativas para o deslocamento dessas pessoas, conforme mostra a imagem:
Para quem conhece um canteiro de obras, fica evidente a pouca efetividade das medidas recomendadas, que dependem decisivamente da adesão dos trabalhadores e da adoção de procedimentos que divergem completamente de suas práticas usuais de trabalho e de deslocamento. As propostas colocam nas mãos dos trabalhadores precarizados a responsabilidade pelo controle e não disseminação do vírus.
Foi divulgado em uma reunião com representantes do setor e o Ministro do Desenvolvimento Regional – na contramão das medidas sanitárias – que se estudaria a liberação de mais verbas para o Programa Minha Casa Minha Vida5. O que, no momento, só ampliaria a presença de operários em canteiros insalubres, deslocando-se através de meios de transporte coletivos que são viveiros de contaminação.
A problemática das precárias condições de trabalho nos canteiros de obra, do alto grau de exploração do operariado da construção civil e da baixa remuneração da mão de obra são conhecidas nos estudos especializados. Mesmo nos períodos de boom econômico, quando o setor chegou próximo ao pleno emprego, manteve baixas condições de remuneração e precária inserção no mercado de trabalho6. É uma parcela considerável da população e que deve receber atenção do Estado.
Segundo dados do CAGED, o contingente de trabalhadores formais no setor atinge hoje cerca de 2,072 milhões de pessoas7. Dados da PNAD 2018, mais abrangentes, indicam um total aproximado de 6,550 milhões de trabalhadores, sendo cerca de 40% empregados com carteira e 60% tipo “conta própria”, envolvendo informais e autônomos mais ou menos legalizados. Ainda segundo os dados da PNAD, 4,5% dos empregados com carteira e 11% dos trabalhadores por conta própria têm mais de 60 anos. Trata-se de um total de cerca de 550 mil trabalhadores em situação grave de risco que estão sendo expostos ao coronavírus diariamente.
A possibilidade de paralisação das obras em andamento não é, obviamente, uma questão simples, dependendo de entendimentos a serem realizados entre governos e empresas, o que até agora não foi compreendido pelo governo, tendo em vista o recente impasse em torno da Medida Provisória nº 927, editada pelo governo Bolsonaro, que permitiria a suspensão de contrato de trabalho por 4 meses sem pagamento8. Essa medida colocaria em risco a sobrevivência de milhões de trabalhadores e suas famílias. É fundamental nesse momento buscar soluções que permitam a manutenção dos salários e o apoio às empresas, entidades, associações e profissionais do setor, com atenção especial a ser dada às pequenas e médias e aos trabalhadores informais, por conta própria.
As grandes empresas do setor imobiliário certamente têm condições financeiras para suportar a paralisação e retomar as atividades logo que possível e já estão sendo atendidas pelo pacote de medidas econômicas adotado pelo governo, como a facilitação do crédito pela Caixa Econômica Federal e o pacote de ajuda do BNDES, anunciadas na semana passada. Já para as pequenas e médias, a situação é diversa, não contando com capital de giro, dependendo do cumprimento de metas para poder realizar medições e obter recursos para pagar fornecedores e mão de obra. Situação dramática, de fato, é a dos trabalhadores informais de baixa qualificação que recebem remuneração semanal e que sem o salário não têm como sobreviver. Nesse sentido, há necessidade de medidas econômicas voltadas especificamente para esses segmentos.
Além disso, em situações como essa, obras emergenciais são fundamentais e para isso uma política pública deve guiar e normatizar esse trabalho. A responsabilidade do funcionamento dos canteiros não pode ser individualizada e sobrecarregar a condição do trabalhador.
A Caixa Econômica Federal é um agente que vem há anos atuando no financiamento ao setor da construção civil e que poderia ter um papel relevante na crise. Recentemente foram anunciadas algumas medidas pela Caixa, que, todavia, não incluem o setor da construção, estando direcionadas aos setores de comércio, serviços e pessoas físicas. Seria fundamental que a Caixa pudesse financiar o capital de giro das pequenas e médias empresas com juros próximos de zero (cobrindo fundamentalmente os seus custos de administração) e com prazos de carência de no mínimo 120 dias9. Tais medidas poderiam atenuar a crise e reduzir a onda de falências que certamente irá ocorrer. Uma outra possibilidade seria mobilizar os recursos do FGTS e do FDS, junto com recursos do Orçamento Geral da União, para criar um fundo de apoio às empresas, associações e cooperativas, desde que garantido o pagamento dos salários. Esses recursos poderiam abranger ainda a manutenção da segurança nos canteiros fechados e o financiamento do custo fixo dos canteiros.
Em uma situação de calamidade como essa todos perdem. Mas é importante que os órgãos competentes, agentes operadores e financeiros e o poder público indiquem alternativas para que haja um programa de securitização dos operários nesse contexto. Hierarquizar quais obras devem se manter, regulamentar de perto a licença remunerada desses trabalhadores e propor alternativas às empresas e profissionais do ramo é urgente.
[Texto produzido por pesquisadores(as) do GT Habitação e Cidade]
6 Pesquisas realizadas por Melissa Oliveira e Mariana FIX, em 2016 e 2017.
7 Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED), Agosto de 2019. Disponível em: http://portalfat.mte.gov.br/cadastro-geral-de-empregados-e-desempregados-caged/
REFERÊNCIAS:
OLIVEIRA, M. R. Mercado de trabalho na construção civil: o subsetor da Construção de Edifícios durante a retomada do financiamento habitacional nos anos 2000. Dissertação (mestrado) – IE/UNICAMP, Campinas, 2016.
OLIVEIRA, M. R; FIX, M. Trabalho na construção civil durante a retomada do financiamento habitacional no Brasil. In: Anais do XVII Encontro Nacional da ANPUR. São Paulo, 2017.