Favela, pega a visão
Não tem futuro sem partilha
Nem messias de arma na mão
(Trecho do samba-enredo “A Verdade Vos Fará Livre” da Mangueira)
Não é de hoje que a crítica está presente no carnaval, mas certamente a radicalização política, marca do governo Bolsonaro, e a conjuntura econômica e social do país têm elevado o tom dos protestos. Com grande engajamento, o carnaval de 2020 foi marcado pela resistência que se fez presente nos desfiles das escolas de samba, com sambas-enredo cheios de referências à classe política e à defesa das minorias, assim como nos blocos de rua, repletos de diversidade e protestos em forma de fantasias e marchinhas.
Nesse período, a forte reivindicação pelo espaço público evidencia que a sua ocupação é objeto de luta e conflito – a relação dos cidadãos com esses espaços nos dias de folia catalisa o direito à cidade, seja na constatação da ausência de infraestrutura, mobilidade e etc., seja na percepção do local de interação e convívio, não apenas de passagem.
Dentre as iniciativas que se engajam no tema, o bloco Terra à Vista reuniu representantes de movimentos sociais, organizações não governamentais e apoiadores da luta pela Reforma Urbana. Pelo oitavo ano seguido, o bloco saiu pelas ruas do Recife para divulgar em alto e bom som que a cidade é de todas as pessoas. O tema “A terra do nunca e a peleja do povo por moradia” é uma crítica às promessas dos poderes públicos instituídos pouco efetivas em garantir o acesso à terra à população que mais precisa – não há no Recife nenhuma política habitacional que garanta o cumprimento da função social da propriedade.
Fundado em 2013, o bloco é uma realização das organizações FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional), Cendhec (Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social), CPDH (Centro Popular de Direitos Humanos), FETAPE (Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares de Pernambuco), Gestos, IBDU (Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico), Articulação Recife de Luta, CAUS (Cooperativa Arquitetura, Urbanismo e Sociedade) e Habitat Brasil (organização fundadora do bloco).
Socorro Leite, diretora nacional da Habitat Brasil, afirma que “o Terra à Vista tem a perspectiva de mostrar a luta, a constância do povo quanto à aquisição de moradia. As gestões governamentais mudam, mas as promessas não saem do papel e, através do carnaval, vamos cobrar o direito à propriedade”.
Segundo Leo Machado, educador da FASE em Pernambuco, o fortalecimento do direito à cidade se dá por meio da reivindicação política e social por direitos, mas também pelo bloco em si. “Aqui, estamos trazendo o elemento da cultura para comunicar uma crítica política. Para além de desfrutar dos artifícios já colocados para as cidades, sejam eles legais, jurídicos ou políticos, trazemos um outro viés do debate do direito à cidade: o que envolve a cultura como instrumento político“, afirma.
Na esteira das iniciativas de resistência e luta, o Instituto Pólis lançou a campanha “Carnaval é Direito à Cidade” em São Paulo – a cidade teve um número recorde de blocos de rua este ano. Através da produção de lambes e cartilhas, os materiais (disponíveis para download) continham dicas e argumentos jurídicos com o objetivo de auxiliar os blocos do carnaval de rua em casos de repressão e abordagem policial.
Conforme a declaração da campanha, “o carnaval de rua, livre de cordas e amarras, é político! No carnaval criamos, fantasiamos e disputamos outras narrativas para as ruas das cidades onde moramos, trabalhamos e existimos cotidianamente. É uma festa política que tensiona e desafia a ordem da vida e do espaço público! Quanto mais pessoas de diferentes raças, origens, classes, identidades, expressões de gênero e orientações sexuais se sentirem livres e seguras para existir e ocupar os espaços públicos, mais democrática é esta cidade”.
Representantes do Instituto Pólis, Beatriz de Paula e Danielle Klintowitz, em artigo para o Archdaily, defendem o papel político de ocupar a rua e as possibilidade de apropriação e uso da cidade:
“A produção do espaço urbano é uma construção social e coletiva, e que expressa as desigualdades e opressões existentes na sociedade. A rua sempre foi um lugar de disputa na cidade. Por ser o lugar primordial do encontro, o espaço público é também o lugar do conflito. As diferentes visões sobre a cidade se manifestam na reivindicação pelo espaço público e na tentativa de soberania de um grupo social sobre outro. No carnaval não poderia ser diferente: a ocupação da rua com ‘bagunceiros’, com blocos de ‘pessoas diferentes’, ou com ‘pessoas que não são daqui’ costumam ser foco de reclamações em bairros de elite“.