O Observatório das Metrópoles apoia a campanha “Todos pelo Censo 2020” e assinou recentemente a carta aberta em defesa da Diretoria da Associação Brasileira de Estudos Populacionais e técnicos do IBGE, que contou com a assinatura de mais de 250 pesquisadores do Brasil e do exterior.
Defendemos que a construção de políticas públicas deve estar amparada em dados que ofereçam um retrato confiável da realidade. Nesse sentido, a supressão da questão sobre valor do aluguel inviabiliza análises sobre o papel do mercado na política de habitação. Confira o texto de Thêmis Amorim Aragão¹, pesquisadora do Observatório das Metrópoles, sobre as implicações do corte dessa variável para o cálculo do déficit habitacional.
Em qualquer governo, o desenho de políticas públicas é baseado em dados da realidade a qual a administração publica pretende incidir. No caso das políticas urbanas, em especial a política de moradia, o déficit habitacional representa o principal indicador que baliza as ações do poder público.
O déficit habitacional é dividido em dois grupos: (i) o déficit qualitativo, medido por aqueles domicílios que precisam de melhorias na edificação ou na infraestrutura urbana para atingir níveis de habitabilidade; e (ii) o déficit quantitativo, aquela quantia de domicílios que devem ser construídos para dar conta do crescimento populacional, das famílias que sofrerão housing stress (ônus excessivo com aluguel) e da reposição de estoque.
Para quem acompanha o debate do cálculo do déficit, sabe que ele é medido a partir dos dados de amostra da PNAD. A descontinuação da coleta da PNAD e a adaptação das demandas de informações da PNAD ao formulário da PNAD Contínua geraram problemas metodológicos de cálculo do déficit, uma vez que a variável que fazia a indexação dos dados do domicílio com os dados da família sofreu modificações. Apesar de muitos estatísticos estarem tentando reconstruir a variável a partir das outras remanescentes, este desafio se mostrou impossível. Como consequência, o déficit habitacional não é divulgado pela Fundação João Pinheiro desde 2016.
Diante da necessidade desse índice para a realização de estudos e elaboração de políticas públicas, o cálculo do déficit habitacional poderia ser retomado a partir de possíveis projeções com base nos microdados do Censo de 2020. No entanto, uma variável importantíssima está sendo cortada do formulário: o valor do aluguel. Justamente a variável “problemática”. Aquela que jogava luz para a principal questão da política habitacional: o mercado.
Para qualificar o debate e entender que a retirada dessa variável não é insignificante, analisemos as raízes dos problemas habitacionais. As favelas são o lugar de moradia da larga parcela da população que, por questões de renda, não conseguem acessar o mercado imobiliário formal. Já o aluguel é a modalidade de habitação daqueles que estão no limiar de se tornar déficit. São famílias que não conseguem acessar o crédito para a compra do imóvel, mas conseguem arcar com o ônus excessivo do aluguel.
No Brasil não temos base de dados oficiais territorializada do valor dos imóveis urbanos (vale destacar que a planta cadastral não reflete os valores que o mercado opera). Também não há dados de inadimplência ou dados dinâmicos de vacância. Não sabemos quanto tempo os imóveis ficam vazios antes de entrar ou retornar ao mercado. Em suma, não sabemos quase nada sobre a atividade econômica que deveria prover imóveis acessíveis à população. Não temos condições de identificar cientificamente, sem assumir cegamente os discursos dos promotores imobiliários, quais os gargalos do mercado. Não temos condições nem ao menos de afirmar a especulação, exatamente por falta de dados.
A única variável oficial que monitorava e fazia o link entre política e mercado de moradia era o dado do aluguel. Para além da interpretação equivocada que muitos gestores públicos têm do déficit como meta para os programas habitacionais, o déficit é uma ferramenta analítica muito mais ampla que os anseios utilitaristas de quadros políticos que só veem a superfície do problema. A supressão do dado do valor do aluguel no formulário do Censo é mais uma prova dessa miopia. Mesmo nos governos de esquerda, quando tínhamos programas de fôlego para dar conta do déficit quantitativo e qualitativo (PMCMV e PAC), o aluguel era a variável que inflava o déficit.
O curioso é que frequentemente o problema era o dado em si e não o que o dado refletia. Qual o sentido de ter tanto dinheiro investido na construção de casas e urbanização de favelas se o déficit continuava crescendo? O que não parece óbvio é que, apesar das medidas de atendimento às necessidades habitacionais, os mecanismos de exclusão do mercado imobiliário formal não foram problematizados. A raiz do problema nunca foi posta na mesa como objeto de debate ou de intervenção do Estado.
A regulação do mercado imobiliário é urgente e não está necessariamente atrelada ao controle estatal de preços: estamos falando de DADOS. A existência de informação pública irrestrita é fundamental para o bom funcionamento dos mercados. No entanto, o governo opera na contramão das reais questões da sociedade e ao invés de gerar mais dados para promover políticas coerentes e efetivas resolve suprimir as variáveis importunas.
Retirar a pergunta relativa ao valor do aluguel do Censo parece ser a solução do problema, afinal o ônus excessivo com o aluguel não vai mais ser calculado e “se não há dados, não existe fenômeno”. De fato, deram fim ao déficit habitacional no Brasil. Qualquer coisa que surgir daí será resultado do amadorismo, desconhecimento ou falta de visão sobre os reais problemas da sociedade.
¹ Thêmis Amorim Aragão é arquiteta e urbanista. Pesquisadora do Observatório das Metrópoles e professora em estágio pós-doutoral no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ).