Por Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
Coordenador nacional da Rede Observatório das Metrópoles
A realização do Congresso de 20 anos do Observatório das Metrópoles foi um evento muito exitoso, para além da merecida e alegre confraternização dos quase 100 pesquisadores que integram este projeto acadêmico tão longevo, criativo e produtivo na geração de conhecimentos, sua difusão e, sobretudo, no seu uso para empreender o protagonismo nas várias esferas públicas que envolvem a questão urbana-metropolitana. Que balanço podemos propor neste momento, ainda no calor dos afetos, ideias e inspirações surgidas na intensidade das trocas intelectuais que tivemos?
Devemos destacar a quantidade, qualidade e diversidade de pesquisadores e pesquisadoras que aderiram ao nosso convite para passarmos cinco dias discutindo e refletindo sobre os desafios para a defesa e avanço da plataforma reformista ensejada na palavra de ordem do Direito à Cidade. Reunimos cerca de 420 participantes, vindos dos diversos recantos do país, além de diversos pesquisadores estrangeiros de países da Europa e América Latina. Também contamos com a presença honrosa do colega Neil Brenner, cuja conferência de abertura nos ofereceu elementos valorosos para a reflexão sobre o futuro das nossas metrópoles na urbanização planetária. Também merece destaque a participação dos convidados que integraram as mesas redondas, que vindos de outas instituições e outros campos disciplinares se engajaram na proposta e nos ajudaram a refletir sobre algumas questões fundamentais para renovação da nossa agenda de pesquisa. Os simpósios realizados dos evidenciaram a existência de diversos trabalhos com afinidades teóricas e metodológicas em relação aos nossos projetos, abrindo possibilidades de ampliarmos a nossa rede de pesquisa. Renovação também pela presença de novos pesquisadores interessados em se associarem ao nosso programa de trabalho. Podemos aproveitar este impulso para ganharmos maior extensão e capilaridade no território nacional, o que sem dúvida torna-se um valioso ativo não apenas acadêmico, mas sobretudo para enfrentarmos o ciclo de indeterminação histórica que entramos com o golpe parlamentar de 2016 e a eleição neste ano de uma coalisão conservadora e ultradireitista, que comandará certamente a inflexão do país na direção do aprofundamento da nossa inserção passiva no capitalismo financeiro-rentista e neoliberalizante das forças de mercado, além de desencadear as tendências de ataque à democracia que rondam o mundo.
É um cenário certamente de inflexão do ciclo reformista que tivemos recentemente. Sem dúvida, marca o fim das esperanças de um novo Brasil suscitadas pelo laboratório histórico da “longa década de 1980” na qual o Povo em Movimento (para usar um termo consagrado por Paul Singer e Vinicius Brant) reinventa a política e constrói o primeiro Contrato Social do Brasil institucionalizado pela Constituinte de 1988, no qual a projeto de democratização, inclusão social e de igualdade funda um novo imaginário de país. Posteriormente, conhecemos alguns experimentos progressistas que conseguiram combinar crescimento econômico com a integração produtiva de amplas parcelas da população, a extensão das políticas de proteção social e retomada do planejamento governamental. Os números são conhecidos, mas quando justapostos não deixam de surpreender. O PIB foi multiplicamos por 4, foram criados 21 milhões de empregos formais, 36 milhões de pessoas saíram da pobreza, a renda familiar per capita aumentou em 35%, o número de pessoas com acesso ao crédito passou de 70 milhões para 120 milhões, foram construídas 1,5 milhões de moradias populares.
A conclusão mais central gerada pelo Congresso Observatório das Metrópoles 20 Anos e suas várias atividades foi a constatação de que vivemos um momento de transições nas múltiplas dimensões e escalas da questão urbana-metropolitana. O marcador principal é a inflexão ultraliberal e conservadora do padrão de desenvolvimento, aprofundando a sua dependência ao capitalismo rentista-financeiro, acelerando a dinâmica de destruição criativa do sistema de proteção social, pressionando por um reescalonamento do Estado e incentivando à adoção de modelos de empreendedorismo territorial no plano regional e urbano. Em resumo, os efeitos da inflexão ultraliberal e conservadora no plano local podem ser a generalização e radicalização do conflito já vivido em alguns municípios entre a cidade como “máquina de crescimento”, funcionando a favor dos interesses privados da acumulação urbana e das elites políticas, em contraposição a sua função de agente do Sistema Nacional de Proteção Social. Ou seja, é possível que o pêndulo da ordem urbana se desloque mais claramente do polo cidade do bem-estar social para o da cidade da acumulação urbana, fato que seria traduzido em políticas habilitadoras das forças mercantilizadoras do solo urbano, da moradia, privatização dos serviços coletivos e assim por diante.
E como corolário destas transições, temos o prolongamento no plano sócio-político da Era da Indeterminação, como denominou o nosso grande sociólogo Francisco de Oliveira para designar este momento do capitalismo rentista-financeirizado e seu poder de mercantilizar todas as esferas da vida e, consequentemente silenciar o conflito, anular a política. Na era indeterminação a política tende a tornar-se apenas a administração conservadora da sociedade segundo o imperativo do mercado.
Este cenário coloca novos desafios ao Observatório enquanto programa de pesquisa e ação comprometido com a agenda da reforma urbana e o direito à cidade. Ao mesmo tempo em que renova a relevância da nossa de prática acadêmica fundada na teoria urbana crítica na produção do conhecimento e na sua transferência aos atores sociais e governamentais através das nossas variadas modalidades de difusão científica e extensão universitária. Assim como no início da nossa trajetória de 20 anos, estamos diante do desafio seguir em nosso caminho de relevar criticamente os mecanismos pouco visíveis (e agora renovados) de espoliação urbana que mantêm as nossas metrópoles como espaços da reprodução das desigualdades de patrimônio, renda e oportunidades e da marginalização de amplas camadas da população da polis. Enfim, vamos renovar o nosso compromisso prática acadêmica fundada na concepção da utopística, tal como proposta por Immanuel Wallerstein para os intelectuais e pesquisadores diante da bifurcação histórica que atravessamos da crise civilizatória do capitalismo.
Utopística é uma avaliação profunda das alternativas históricas, o exercício de nosso juízo para examinar a racionalidade substantiva de possíveis sistemas históricos alternativos. É avaliação sóbria, racional e realista dos sistemas humanos, em que condições eles podem existir, e as áreas que estão abertas à criatividade humana. (…) Assim, é o exercício que ocorre simultaneamente na ciência, na política e na moralidade. (Utopística ou As Decisões Históricas do Século XXI. Editora Vozes, Petrópolis: 2003)
Estou certo que o Observatório das Metrópoles se renovou com este Congresso. Esta me parece ser a primeira lição a retirar desta ousada empreitada acadêmica, que só possível pelo abnegado trabalho de jovens pesquisadores que assumiram a tarefa de organizá-lo, particularmente: Carolina Calcavecchia, Juciano Rodrigues, Karoline Souza, Luísa Sobral, Patrícia Ramos Novaes, Samuel Thomas Jaenisch, Thais Velasco e Tuanni Rachel Borba.