“As desigualdades consequentes do racismo são um problema social coletivo do Estado e da sociedade civil, bem fáceis de se ver e serem vistas”. Em artigo para o Nexo Jornal, Fernanda Lira traz uma reflexão sobre os desafios da mulher negra diante do racismo estrutural e sobre a necessidade de diálogo e apoio de outras mulheres às causas de mulheres negras.
Luminosa e Poderosa: sobre ser mulher negra no Brasil em 2018
Via Nexo Jornal
No mês de julho minha caixa de e-mail vira um auê, pois no dia 25 comemora-se o Dia Internacional da Mulher Afro-Latina, Americana e Caribenha. Enquanto existirmos como população negra em um país estruturado social e economicamente por um modo produtivo desigual, defendo que ocupar os espaços é nosso direito. Por isso, se por um lado, faço questão de aceitar convites como oportunidade de registrar uma reflexão, por outro, fico encafifada com a ausência de diversidade de vozes negras nos lugares de fala e de poder.
Na escola secundária, ensino médio, o assunto mais próximo sobre mulher negra apareceu nas aulas de literatura. Li “A moreninha”, “Senhora”, “Helena”, referências obrigatórias de romances brasileiros nas provas de vestibular. Aliás, esqueceram de me ensinar que Machado de Assis, autor desse último livro, era negro. Nossa professora de literatura brasileira nos pediu para fazer uma apresentação oral sobre aquelas obras. E não é que fui escolhida para ser a escravizada?
Conhecia bem esse papel: na escola primária, etapa fundamental para o desenvolvimento da nossa cognição, havia sido a personagem da escravizada em um trabalho de grupo. Até recebi elogios, o lençol branco ficou muito bem em mim. A Pró (“professora” em baianês), tão logo iniciou suas observações sobre a nossa atividade, elogiou minha perfeição para aquele papel. Minha atuação foi simples. Em silêncio, deixei a Sinhá lavar meus pés. Tirar nota boa foi fácil. Difíceis foram as perguntas que elucubrei depois. Por que seria eu uma escravizada perfeita?
Lá ela! Eu mesma não! Nem eu, nem nenhuma negra, viu? Saiba que nós gostamos de receber nosso pagamento justo pelo nosso trabalho. Não vou mais lavar os pratos, junto-me à poeta Cristiane Sobral. Nós gostamos é de ter renda coerente com nossos compromissos financeiros! Pode soar estranho relacionar mulher negra com riqueza. Afinal, de acordo com as últimas Pnads (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do século 21, a renda da mulher negra está classificada como a pior quando comparada à renda do homem branco, da mulher branca, do homem negro, nessa ordem.
Mulheres negras lutando por direitos inclui equidade de riqueza! Quem gosta de pobreza é quem precisa impor a manutenção dessa situação a oprimidos para continuar na vida privilegiada. Nós gostamos de divisão de riqueza. Miséria de uma é responsabilidade de todas e todos nós. Quem nunca inteirou as moedas para pagar o ônibus e pedir uma força pra cobradora? Ou queixar um acarajé na baiana? A baiana é sempre alimentação garantida. Você encosta no tabuleiro, pergunta se o acarajé está quente, mostra as moedas, conta na frente dela. Ela pergunta quanto tem aí, me dê vá, vai querer com o quê? Em qualquer rede de fast food ficaríamos sem comer, pois no neoliberalismo sua fome é preocupação individual, o objetivo real é a mais-valia.
Até há quem questione a intervenção do Estado com políticas públicas de combate à pobreza por defender que a mão invisível do mercado vai equilibrar demanda e oferta. Uma pessoa com renda de R$ 1.000, ao comprar um alimento, com custo, a R$ 10, paga percentualmente mais que outra pessoa com renda de R$ 4.000. Portanto, o valor dos alimentos para quem possui menor renda tem maior peso. A mulher negra paga mais! Se a classe média e rica é reembolsada quando consome educação e saúde privada para sua família, que tal devolver de quem pagou excessivamente em alimentação? Retorno por meio da Receita Federal e não em programa de assistência.
Se pobreza fosse boa, não haveria rico. Até banho de rico é diferente. Pobre conhece banho de balde, banho de cuia. Conhece até falta de banho porque a água foi cortada. Na peça “Ó Pai Ó”, a personagem Dona Joana corta a água só para pirraçar a vizinhança no Pelourinho. A resistência à situação de pobreza está presente em todo o espetáculo. Maria, personagem de Valdinéia Soriano, quer vivenciar uma relação familiar com seu companheiro em uma posição de estabilidade financeira. Em fase de gravação do filme “Ó Paí Ó 2”, durante roda de conversa sobre cinema negro na Mostra de Teatro Afro Cena, Valdinéia defende que sejamos mulheres negras unidas e reunidas. O diálogo e apoio de outras mulheres às causas de mulheres negras também é apontado pela diretora de “Selma” e “A 13ª Emenda”, Ava DuVernay, no seu recente filme “Uma Dobra no Tempo”.
As desigualdades consequentes do racismo são um problema social coletivo do Estado e da sociedade civil, bem fáceis de se ver e serem vistas. Nos aglomerados subnormais, favelas, invasões, comunidades, baixadas, palafitas, ressacas, grotas e vilas reside a maioria percentual de negros e negras. A periferia preta e pobre. Foi onde morou Carolina Maria de Jesus quando escreveu “Quarto de despejo: Diário de uma favelada”. Querem negar-lhe o direito de ser escritora. Vão ficar querendo.
Se o racismo parece suave, a professora e ativista Silvany Euclênio lembra que é bem pesado para quem sente! “Contém Dendê”, na voz de Sam Defor, embala nosso fortalecimento! Chega feito lua cheia, incendeia!