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Betânia de Moraes Alfonsin¹
Henrique Dorneles de Castro²

Porto Alegre completa 250 anos neste março de 2022 e é preciso desnaturalizar algumas das atividades que estão sendo realizadas nesta comemoração. Primeiro, é preciso lembrar que a cidade nunca se destacou como um destino turístico, mas no início dos anos 2000, a cidade havia se tornado uma referência política internacional. A democratização da gestão das políticas públicas e, muito especialmente, o esforço para fomentar e respeitar a participação popular no debate sobre o destino dos recursos públicos através do orçamento participativo (OP), tornou a cidade conhecida e reconhecida como uma cidade que promovia uma das 40 melhores práticas de gestão urbana do mundo, segundo a agência HABITAT das Nações Unidas.

Por conta desta notável experiência, Porto Alegre atraiu eventos como o Fórum Social Mundial (FSM), por exemplo, que realizou várias de suas edições na cidade no início do milênio, em reconhecimento a esse capital político. Ativistas, gestores/as públicos/as, agentes políticos/as e legisladores/as vinham ao FSM para debater, produzir e trocar conhecimentos e conhecer esta experiência de participação popular e, posteriormente, replicá-la em seus países. Fácil perceber que a DEMOCRACIA era a marca da cidade.

Com a derrota da Frente Popular na eleição de 2004, inicia-se um ciclo de governos municipais que vão, progressivamente, promovendo um processo de esvaziamento da participação popular nos conselhos municipais e também no Orçamento Participativo. Um processo de diminuição dos recursos disponíveis para o debate público no Conselho do OP, combinado a um progressivo desgaste de lideranças comunitárias que assistem ao desmonte da política pública enquanto pagam, pessoalmente, um alto preço pelo descrédito de seu trabalho militante junto aos seus territórios de inserção comunitária.

Esse processo se agudizou muito no último ciclo político e a pandemia agravou as dificuldades dos conselhos municipais em incidir sobre os processos de tomada de decisão, já que a necessidade de distanciamento social levou esses órgãos colegiados a funcionar de maneira remota, com a consequente diminuição da participação popular pelas conhecidas dificuldades que decorrem da exclusão digital.

Eis que surge, então, uma iniciativa para estabelecer a “marca da cidade”, por votação eletrônica entre três finalistas que envolveram mais de 40 escritórios de design. Parte do Pacto Alegre, acordo entre instituições de ensino, governo, iniciativa privada e sociedade civil para estimular o empreendedorismo colaborativo, a ideia era criar uma marca para a cidade que a fizesse ser reconhecida mundialmente, assim como acontece com as marcas de Nova York ou Amsterdam.

A rigor, em um simulacro de democracia que envolve apenas cidadãos e cidadãs com maior poder aquisitivo e com acesso à internet, a iniciativa pretende substituir um capital político de Porto Alegre – o de ter uma marca ligada à DEMOCRACIA – por um símbolo vazio, típico de marketing urbano.

Esse processo é coerente com as atuais formas de governança urbana que buscam inserir as cidades em um mercado urbano mundial, no qual através da divulgação – e competição – se espera atrair investimentos para a localidade, seja na forma de financiamentos, eventos, projetos, patrocínios, o que for. É a própria cidade que se torna uma mercadoria que se vende com o auxílio de uma marca.

Os gestores municipais passam a adotar estratégias condizentes com a lógica empresarial, que passa a ser adotada nesse momento de inflexão ultraliberal como solução para os problemas da cidade. Ignorando as enormes diferenças entre as duas esferas, utiliza-se um falacioso argumento de que se esta lógica funciona para alavancar empresas privadas também servirá para promover as cidades. Assim, como toda empresa que se preze tem sua própria marca, ao ponto de haver premiações para aquelas mais lembradas, às cidades também se tornaria necessária a adoção dessa prática, uma vez que o município irá competir num mercado hoje mundializado – daí o esforço para se tornar uma “cidade global”.

As marcas finalistas da competição realizada em Porto Alegre, escolhidas por júris e então disponibilizadas para que a população votasse eletronicamente, ofereciam conceitos relativos a caminhos, formas e encontros, como se vê abaixo.

Há caminhos a serem descobertos em Porto Alegre sim, desde pequenas ruas nas áreas centrais até as praias balneáveis do Lami. A questão que fica é até quando esses caminhos continuarão existindo frente à sanha construtiva e pavimentadora – que, aliás, é incapaz de solucionar os problemas de trânsito quando se aposta em um modelo de mobilidade centrado no transporte individual de passageiros podendo, inclusive, agravá-lo.

Da mesma maneira, há várias formas de ser em Porto Alegre, que apesar de não ser exatamente exemplo de tolerância está à frente de diversas outras cidades, valorizando a diversidade e uma sociedade plural. Vemos, no entanto, que também as formas arquitetônicas da nossa Porto Alegre estão mudando, da construção de empreendimentos de grande porte que destoam da paisagem ao apagamento ou substituição de formas antigas por tipologias mais modernas, às vezes de gosto duvidoso.

O fato é que é bem triste ver a cidade que adota os horizontes como marca vencedora da competição licenciando inúmeros empreendimentos na orla do Guaíba, privatizando a paisagem do lago e tornando o pôr do sol (um bem comum por excelência), uma vista para poucos. No atual ciclo do capitalismo financeirizado a dinâmica do mercado imobiliário promove uma grande valorização de frentes d’água, e é aí que o histórico Cais do Porto aparece como arena de disputa em relação à sua necessária renovação, com atores internacionais com interesse de investimento na área praticando uma lógica de urbanismo especulativo que, no caso de Porto Alegre, poderá redundar justamente no sacrifício do nosso “horizonte”. Como um sintoma de vitalidade de uma sociedade civil interessada no direito à cidade, observa-se também uma potente mobilização da sociedade civil para que esse patrimônio cultural da cidade continue sendo de todos.

No mesmo sentido, ver cinemas de rua se transformando em estacionamentos ou sobrados da virada do século XIX para o século XX sendo demolidos para o surgimento de um prédio com vidro espelhado causa uma dor muito grande na cidadania que gostaria de debater todas essas transformações em audiências públicas e em uma grande conferência da cidade que debatesse, democraticamente, a revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental como um todo.

Vemos então que Porto Alegre está vivendo um processo de rebranding, no qual a cidadania, muitas vezes, é atropelada em processos autoritários de alteração da legislação urbanística e mutilação de sua identidade social, ambiental, cultural e política.

Nos 250 anos de Porto Alegre, tudo o que queremos é nossa democracia de volta: esta é a marca de Porto Alegre com a qual uma grande parte da população realmente se identifica.

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¹ Betânia Alfonsin é doutora em Direito, diretora do IBDU, professora da FMP e pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Porto Alegre.

² Henrique Dorneles de Castro é geógrafo, doutorando em Geografia pela UFRGS e pesquisador do Observatório das Metrópoles Núcleo Porto Alegre.

* Artigo publicado originalmente no site do Brasil de Fato RS, em 22 de março de 2022: https://www.brasildefators.com.br/2022/03/22/artigo-250-anos-de-porto-alegre-qual-e-a-marca-da-cidade