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A crise dos sistemas de democracia representativa é algo que atravessa todos os continentes e boa parte dos países do globo. Esse é o ponto de partida do livro “Esperança Democrática: 25 anos de Orçamentos Participativos no Mundo”, lançado na 13ª Conferência do OIDP, realizada em julho de 2013 em Portugal. A publicação traz artigos de cerca de 40 autores que procuram mostrar como os Orçamentos Participativos têm provocado mudanças na forma de exercer o poder democrático, na transformação das administrações públicas, na construção de socieda¬des civis mais fortes e organizadas, no combate às assimetrias sociais e territoriais.

O livro “Esperança Democrática: 25 anos de Orçamentos Participativos no Mundo” contém 475 páginas e proporciona um balanço muito significativo dos OP´s que se globalizaram a partir do Brasil, em especial do caso de Porto Alegre. A publicação proporciona um importante mapeamento dos OP´s em todos os continentes. O INCT Observatório das Metrópoles apoia a iniciativa e participa no livro com o artigo “Os OP’s no Brasil”, do professor Luciano Fedozzi (UFRGS), que atualiza a expansão dos casos (355) existentes no nosso país e as características dos municípios que o adotam, trabalho esse realizado em parceria com a Rede Brasileira de OP´s  (coordenada pela Prefeitura de Guarulhos).

A publicação conta ainda com prefácio de Olívio Dutra que fala sobre a sua experiência com o Orçamento Participativo em três circunstâncias distintas: como Prefeito de Porto Alegre (1989/1992), Governador do Estado do Rio Grande do Sul (1999/2002) e Ministro das Cidades do Brasil (2003/2005). Segundo Olívio o OP surgiu com o objetivo de “demo¬cratizar o Estado na sua dimensão local e na esperança de poder democratizá-lo também nas dimensões estadual e federal. De¬mocratização que significava a luta para desconcentrar a riqueza e descentralizar o poder, capacitando as pessoas como sujeitos e não objectos da política”, afirma.

O livro foi publicado pela ONG IN Loco de Lisboa e tem uma missão importante: ampliar a difusão da experiência participativa no mundo, fortalecendo a democracia e a participação popular. O Observatório das Metrópoles reafirma o seu apoio à iniciativa e, parafraseando as palavras de Nelson Dias (organizador), convida a sociedade a construir outras formas e modelos mais intensos e ativos de viver a democracia.

 

INTRODUÇÃO

POR NELSON DIAS

Este livro representa o esforço de mais de quarenta autores e de muitos outros colaboradores directos e indirectos que espalhados pelos diferentes continentes procuram proporcionar uma visão panorâmica sobre os Orçamentos Participativos (OP) no Mundo. Fazem-no a partir de contextos muito diferentes. Alguns são investigadores, outros consultores de processos, outros ainda activistas ligados a vários grupos e movimentos sociais. Os textos espelham bem esta diversidade de abordagens e de olhares, que não pretendemos condicionar.

Este livro não é, por isso, fruto de um estudo comparativo sobre os OP em diferentes partes do mundo, embora alguns dos autores tivessem baseado os seus artigos em trabalhos de investigação a que estão ligados. O que aqui propomos é uma reflexão aberta e em construção sobre as múltiplas dinâmicas dos Orçamentos Participativos, desafiando os nossos leitores a continuarem este trabalho nas realidades mais próximas de si. As páginas que se seguem são um convite para uma fascinante viagem pelos caminhos da inovação democrática em contextos culturais, políticos, sociais e administrativos muito diversos. Da América do Norte à Ásia, da Oceânia à Europa, da América Latina à África, o leitor encontrará muitos motivos para seguir atentamente as propostas dos diferentes autores.

O surpreende alcance deste fenómeno de democratização das relações sociais e políticas, de construção da confiança entre populações e administrações locais exige de nós um esforço de sistematização que permita compreender a forma como os Orçamentos Participativos se disseminaram pelo mundo. Trata-se de uma dinâmica de enorme riqueza e sem precedentes que invadiu inclusive as fronteiras de países onde os atropelos democráticos são uma constante. Teremos muitos relatos elucidativos deste processo ao longo do livro.

Para orientar a viagem dos leitores, os artigos encontram-se divididos em três grandes capítulos: O primeiro, designado “Dinâmicas Globais”, é composto pelos contributos de autores que se têm dedicado ao estudo comparativo destes processos, assegurando leituras abrangentes sobre os OP no Mundo, recorrendo à tipificação de modelos, de objectivos e de resultados. Estes textos são uma excelente “porta de entrada” para os interessados em compreender o fenómeno de globalização dos Orçamentos Participativos, as utilizações que desses têm sido feitas, os desafios que hoje enfrentam, bem como as ramificações metodológicas associadas.

O segundo capítulo, referente às “Dinâmicas Regionais”, integra 22 artigos que cobrem 5 continentes e mais de 30 países, entre os quais se encontram certamente aqueles onde os OP alcançaram maior expressão.

A situação dos OP na África é retratada em 5 textos, um dos quais de Mamadou Bachir Kanoute, senegalês, que nos apresenta uma visão abrangente destes processos sobretudo em alguns dos países francófonos do continente. O autor é um experiente consultor e a proximidade que tem mantido com o OP em vários países permite-lhe concluir que esse tem contribuído para melhorar os mecanismos de redistribuição da riqueza ao nível local e para uma melhor atribuição de recursos orçamentais para responder às necessidades básicas da população, particularmente a dos bairros mais desfavorecidos e periféricos.

Osmany Oliveira, brasileiro, sugere-nos uma leitura sobre a evolução dos Orçamentos Participativos em alguns dos Estados da região subsaariana, destacando casos que considera de sucesso. O autor analisa as dinâmicas de disseminação destes processos, procurando compreender os mecanismos de transferência entre cidades, as razões que a suportam e os resultados obtidos. Esta é uma análise muito interessante na medida em que existe uma certa percepção de que o OP em África é, em parte, o resultado de um conjunto de contributos e planos de instituições de cooperação internacional.

Eduardo Nguenha, moçambicano, propõe-nos uma análise detalhada sobre as características das práticas de governação municipal participativa recentemente emergentes no seu país. O autor apresenta os elementos que impulsionaram a introdução das iniciativas de Planificação e Orçamento Participativo, analisa o quadro legal que favorece a sua implementação e as características comuns às diferentes práticas sinalizadas.

Jules Nguebou e Achille Noupeou retractam a situação dos OP nos Camarões. Desde 2003 à actualidade foram identificados 57 municípios que se comprometeram a implementar o processo. Este tende a ser visto como uma ferramenta que pode apoiar a descentralização administrativa em curso no país. Um dos resultados mais interessantes do OP prende-se exactamente com isto, ou seja, com o facto de o processo estar a contribuir para reforçar o papel dos municípios junto das comunidades e melhorar a sua capacidade de arrecadação fiscal. É um exemplo que demonstra que o OP não serve apenas para discutir investimentos mas pode permitir também um debate comunitário sobre as receitas.

Emmy Mbera e Giovanni Allegretti debruçam-se sobre as experiências em curso na província de South Kivu, na República Democrática do Congo. Os autores analisam o OP sob a perspectiva do processo de orçamentação geral, destacando as actividades e as opções adoptadas relativamente à dinâmica participativa, as quais foram capazes de ir além do que era a mera promoção de uma deliberação democrática e de transparência orçamental.

A realidade da América Latina, muito rica e diversa, é aqui retratada em oito artigos. Cristina Bloj convida-nos a compreender a extraordinária evolução dos Orçamentos Participativos na Argentina, país onde encontramos algumas das mais interessantes inovações da actualidade.

Luciano Fedozzi e Kátia Lima analisam o contexto de surgimento e de expansão destes processos no Brasil, complementando com dados muito actuais, recolhidos pela Rede Brasileira de OP, que permitem compreender melhor os contextos demográficos, regionais e partidários onde estas iniciativas têm emergido. Leonardo Avritzer e Alexander Vaz complementam uma perspectiva histórica sobre os Orçamentos Participativos no Brasil com uma análise sobre as potencialidades e limites destes processos, discutindo de forma mais detalhada as características dos ciclos de participação anuais e bianuais, bem como os sistemas de avaliação e monitorização previstos nos casos estudados.

Pablo Paño convida-nos a uma viagem sobre a evolução dos OP no Chile ao longo dos últimos 12 anos. A trajectória destes processos, neste país sul-americano encostado ao Pacífico, acompanha a evolução do próprio regime democrático numa nação fortemente marcada pela férrea ditadura de Pinochet.

Carolina Lara, colombiana, oferece-nos uma interessante reflexão sobre a emergência dos Orçamentos Participativos no seu país, após a criação de um novo quadro constitucional, que data de 1991, que reorganizou o edifício do Estado e criou condições para o desenvolvimento de políticas de participação cidadã no seio das administrações públicas locais. A Colômbia tem hoje cerca de 50 iniciativas de OP e uma das mais activas redes nacionais deste tipo de experiências.

Stephanie McNulty brinda-nos com um estimulante artigo sobre os Orçamentos Participativos no Peru, o primeiro país no Mundo a aprovar uma lei, em 2003, que obriga todos os governos subnacionais a implementar o OP. O trabalho da autora descreve o quadro legislativo nacional que orienta este processo, os seus pontos fortes e fracos, bem como os desafios constantes na relação entre uma lei nacional e as vontades políticas locais.

Depois do Peru, a República Dominicana foi o segundo país a nível mundial a desenvolver um processo legislativo nacional que vincula todos os municípios à implementação do Orçamento Participativo. A análise desta realidade, composta na actualidade por 179 experiências de OP, é feita aqui por Francis Jorge, que coordena a equipa de assistência técnica a estes processos, sedeada no interior da Federação Dominicana de Municípios.

Alicia Veneziano e Ivan Sánchez fecham o conjunto de artigos sobre a América Latina com uma análise sobre a situação dos OP no Uruguai, destacando os casos de Montevidéu e Paysandú. A particularidade do trabalho destes dois autores assenta na relação estabelecida entre o processo de descentralização político-territorial do país e o desenvolvimento dos Orçamentos Participativos.

A realidade de alguns dos países europeus com maior expressão no tema dos OP é retratada em cinco artigos. Da Alemanha chega-nos o contributo de Michelle Ruesch e Mandy Wagner, que traçam o cenário actual dos OP germânicos, composto por cerca de 100 experiências, na maioria dos casos consultivas. O trabalho destas autoras mostra o modo como estes processos prosseguem o objectivo de tornar os governos locais mais receptivos aos “conselhos” dos cidadãos.

Ernesto Ganuza, acompanhado por Francisco Francés, presenteia-nos com um excelente artigo sobre a situação dos Orçamentos Participativo na Espanha. É uma história “trepidante” como referem os autores. Este país registava no ano 2000 a maior expansão dos OP no “velho continente”. A forte crise que assola este Estado europeu, associada à derrota da esquerda política em muitos municípios, nas eleições de 2011, conduziu a uma drástica redução do número de experiências actualmente activas.

De Itália chega-nos o contributo de Giovanni Allegretti e Stefano Stortone. Este é um país que tem passado por amplas transformações políticas e cujas incidências se fazem sentir também ao nível das inovações democráticas de âmbito local. Depois de registar o surgimento da primeira experiência europeia de OP, em 1994, na pequena cidade de Grottammare, a Itália destaca-se pela forte instabilidade destes processos. A ampla disseminação dos OP entre 2005 e 2010, com forte incidência na região Lazio, deu lugar à suspensão da esmagadora maioria destas iniciativas no ano de 2011. A Itália parece agora recuperar gradualmente desta crise dos OP, sendo perceptível a emergência de novas iniciativas e novos modelos de participação dos cidadãos nos orçamentos municipais.

A situação dos OP em Portugal é retratada num artigo de minha autoria, no âmbito do qual são analisadas as mais de setenta experiências sinalizadas no país, através de um conjunto de indicadores que permitem compreender de forma mais apurada a geografia e os “códigos genéticos” destes processos. O falhanço dos OP consultivos é contrariado pelo crescente sucesso das iniciativas de carácter deliberativo, o que permite, ao fim de uma década, clarificar qual o caminho preferido pelos cidadãos para exercerem o seu direito de participação democrática fora dos ciclos eleitorais.

Para fechar o conjunto de artigos sobre o OP na Europa temos os contributos de Lena Langlet e Giovanni Allegretti sobre as experiências na Suécia. As profundas mudanças registadas na sociedade sueca, marcadas por uma perda progressiva de confiança nas instituições políticas, pelo agravamento de uma cultura de individualismo e diminuição dos laços sociais e pelo forte afastamento dos mais jovens em relação à política, são algumas das justificações que fundamentam a decisão de alguns municípios suecos para lançarem processos de OP.

Da Oceânia chega-nos o contributo de Janette Hartz-Karp e Iain Walker sobre os recém-criados Orçamentos Participativos na Austrália. As primeiras experiências datam de 2012, tendo estas assumido como desafio metodológico a conjugação de elementos de representação social com técnicas de deliberação sobre as prioridades dos orçamentos públicos municipais. É um desafio muito interessante e que os autores procuram abordar ao longo do seu artigo, baseando-se nas experiências pioneiras de Canada Bay (NSW) e Greater Geraldton (WA).

O terceiro e último capítulo, referente às “Dinâmicas Temáticas”, integra cinco artigos sobre problemáticas específicas relacionadas com processos de OP. Cesár Muñoz propõe-nos um roteiro de leitura para interpretar os Orçamentos Participativos com crianças e jovens, com recurso a vários casos práticos. Qualquer uma das experiências em destaque permite compreender que o grande potencial destes processos não está na participação dos mais jovens na decisão sobre os recursos públicos mas sobretudo da dimensão educativa e formativa para cidadania que é gerado no interior destas iniciativas.

Rafael Sampaio e Tiago Peixoto propõem-nos uma interessante reflexão sobre o que chamaram de “falsos dilemas e verdadeiras complexidades” associados à utilização das TIC nos processos participativos. É um artigo estimulante e inquietante, que nos interpela constantemente sobre as potencialidades e os limites das novas tecnologias na mobilização dos cidadãos para a apresentação de propostas, para o debate e para deliberação sobre projectos no interior das dinâmicas de OP.

Pedro Pontual assume claramente uma abordagem política dos Orçamentos Participativos e do potencial destes processos para a promoção de uma pedagogia democrática nas sociedades contemporâneas. O autor contextualiza o OP como um instrumento que possibilita a participação directa dos cidadãos na definição das políticas públicas, e dessa forma ajuda a reinventar as instituições e a modernizar o regime democrático. O enfoque temático privilegiado neste artigo é precisamente o do OP como uma escola de cidadania, que estimula positivamente governos e governados a criarem novas institucionalidades democráticas e novos modelos de viver em sociedade.

O artigo de Cristina Miret e Joan Bou oferece-nos uma reflexão sobre a difícil mas necessária relação entre a perspectiva de género e os processos de Orçamento Participativo. Os autores basearam este trabalho no estudo comparativo de várias experiências analisadas em Espanha, Uruguai e República Dominicana. Os resultados mostram que as diferenças de género verificadas na política convencional se reproduzem nos espaços de participação com o OP. Os autores concluem, no entanto, que esta não é uma fatalidade mas apenas um ponto de partida que pode ser revertido, existindo exemplos interessantes de experiências que colocaram a questão de género na agenda do processo participativo.

Patrícia Leiva fecha este livro com uma abordagem muito singular sobre os OP. A autora concentra o seu trabalho na análise da dimensão psicossocial destas iniciativas. Este artigo procura, assim, dar um contributo para a elaboração de um quadro teórico de empowerment psicológico a partir dos Orçamentos Participativos. Os resultados de dois estudos de caso permitem concluir que a população que participa activamente se fortalece e rompe com o sentimento de indefensibilidade e a consequente apatia política.

A ideia de publicar este livro surgiu perante a aproximação da data comemorativa dos 25 anos de Orçamentos Participativos no Mundo. O título final só ficou definido, no entanto, depois de concluída a revisão de todos os artigos. “Esperança Democrática” procura traduzir um estado de espírito contagiado pela inovação, pela constante busca da acção transformadora, pela inconformidade de muitas pessoas e organizações espalhadas pelo Mundo.

A crise dos sistemas de democracia representativa é algo que atravessa todos os continentes e países retratados no livro. Sendo esse o ponto de partida, os diferentes autores procuram mostrar como os Orçamentos Participativos têm vindo a provocar mudanças na forma de exercer o poder democrático, na transformação das administrações públicas, na construção de sociedades civis mais fortes e organizadas, no combate às assimetrias sociais e territoriais. A leitura deste livro faz-nos acreditar que outra democracia é possível e necessária.

“Esperança Democrática” é por isso um título, mas também um desejo e um convite à acção de todos os leitores, para que na sua família ou comunidade se esforcem por construir outras formas e modelos mais intensos e activos de viver a democracia.

 

Para mais informações, acesse o site da ONG IN Loco.