O mal-estar urbano constituiu o estopim das manifestações, focalizado em tópico de relevância que atravessa a dinâmica das nossas cidades: a precariedade do sistema de transporte e de mobilidade urbana. Mas esses dois problemas são apenas a ponta de um grande iceberg mergulhado no sentimento de indignação dos habitantes das grandes metrópoles diante dos evidentes efeitos da privatização da política. A cidade vem sendo transformada em máquina de produção de emprego, renda, consumo e votos que reproduz em nova escala os velhos e os novos interesses da acumulação privada de riqueza e de poder político.
O artigo “2014: o que esperar das ruas: silêncio ou mobilização?”, de Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Rojas de Carvalho, é um dos destaques da edição de nº 15 da Revista eletrônica e-metropolis. Publicação trimestral que tem como objetivo principal suscitar o debate e incentivar a divulgação de trabalhos, ensaios, resenhas, resultados parciais de pesquisas e propostas teórico-metodológicas relacionados à dinâmica da vida urbana contemporânea e áreas afins.
A Revista e-metropolis é direcionada a alunos de pós-graduação de forma a priorizar trabalhos que garantam o caráter multidisciplinar e que proporcionem um meio democrático e ágil de acesso ao conhecimento, estimulando a discussão sobre os múltiplos aspectos na vida nas grandes cidades.
2014 | O que esperar das ruas: silêncio ou mobilização?
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Rojas de Carvalho
O primeiro semestre de 2013 deve, sem dúvida, ser considerado como ponto inédito de inflexão na história recente do País: tendo por elemento deflagrador o protesto contra elevação das tarifas de ônibus em São Paulo, milhões de jovens saíram às ruas em escalada crescente tanto em número de ativistas quanto na extensão da pauta de suas demandas. Enquanto o movimento de ocupação das ruas se disseminou em processo viral por centenas de cidades brasileiras, a agenda de reivindicações e críticas se ampliou em forma espiral: ao tema localizado das tarifas de ônibus veio se somar amplo leque de críticas, que se voltaram tanto à qualidade dos serviços públicos – notadamente a precariedade da educação e da saúde públicas – como a uma pauta de natureza ética, centrada nas manifestações mais ostensivas da natureza patrimonialista de nosso estado. A rua insurgente de 2013, rua inesperada tanto em sua eclosão como em sua dimensão, se mostrou ademais infensa a qualquer direcionamento por parte dos atores políticos. A resposta dos governos estaduais e federal, embora necessária, esteve longe de estancar o movimento: o congelamento das tarifas de ônibus e o pacote de leis enviado pelo Executivo ao Congresso, com propostas de considerável relevância, como a consulta popular sobre a reforma política, pouco repercutiram sobre o ânimo dos manifestantes.
Se a primeira onda da “primavera brasileira” se notabilizou por sua amplitude e caráter inesperado, cabe assinalar que a primeira fase do movimento refluiu no horizonte de meses, dando lugar a uma rua mais radicalizada e violenta, tanto no que se refere à orientação dos manifestantes, como à resposta dos agentes policiais. A rua radicalizada e policiada – onde black blocs assumiram lugar de protagonismo – teria deslocado e neutralizado – para muitos, com o estímulo ou anuência velada dos poderes estabelecidos – uma rua politizada, sem direção, e potencialmente perigosa. A ocupação recente dos shoppings centers por jovens da periferia paulista representaria uma linha de continuidade, em escala reduzida e dotada de outro conjunto de significados, de uma rua que se radicaliza, para muitos, com o fim precípuo de neutralização do retorno da primeira onda das manifestações de 2013.
Nesse momento, em ano chave, em que o Brasil sedia o seu primeiro megaevento e em que se disputam eleições desde já polarizadas tanto no plano nacional como nos estados, certamente uma pergunta se impõe tanto para os atores políticos como para os analistas – o que esperar das ruas deste ano: silêncio, mobilização ou radicalização? A resposta a essa questão requer mais do que nunca a compreensão, ao menos uma tentativa, das forças subjacentes às ruas de 2013. Esse é o esforço deste ensaio.
Se ainda hoje o número de indagações ultrapassa de longe as tentativas de resposta sobre a natureza e o sentido dos movimentos reivindicatórios que mobilizaram os jovens nas praças e avenidas das principais cidades do País em 2013, se a cautela analítica prevalece no campo da reflexão e a prudência no terreno da ação das lideranças políticas, algumas hipóteses podem e devem ser levantadas em relação a duas dimensões que figuraram como novas e inesperadas expressões desse movimento de natureza e extensão também inéditas: (i) a forma de ação – avessa a todas as organizações associativas tradicionais, notadamente os partidos políticos, mas também sindicatos, associações profissionais e comunitárias etc. – e (ii) o objeto da ação – uma agenda difusa de temas de orientação ética e moral, deflagrada por um problema central da vida das grandes cidades – a precariedade do transporte público e crescente limitação da mobilidade urbana.
Problema, por seu turno, que se alastrou para outros aspectos do cotidiano das cidades brasileiras – na crítica à precariedade dos seus serviços básicos – que estão na raiz de nosso mal-estar urbano. Da análise dos movimentos das ruas, devemos destacar, antes de mais nada, que os jovens promoveram uma associação inédita entre a crítica ao nosso modelo de cidade, de um lado, e a defesa de valores éticos que denunciam aspectos patrimonialistas do nosso Estado e a dinâmica excludente e segregacionista da vida de nossas cidades, de outro.
O descolamento e mesmo visão crítica dos jovens em relação aos partidos políticos em todas as passeatas – exclusão que não poupou novas legendas como o PSOL ou PSTU – traduz fenômeno que nem é peculiar à situação brasileira, nem representa novidade para aqueles que acompanham a cena política aqui e alhures: a crise dos pilares centrais das democracias representativas – em especial, a perda crescente de legitimidade do sistema dos partidos políticos, como instrumentos de vocalização das clivagens sociais e das demandas cidadãs – trata-se de fenômeno de anos. A deserção da militância dos partidos tradicionais, o crescimento dos eleitores independentes, a volatilidade partidária, o surgimento de legendas novas e candidatos independentes trata-se de eventos que salpicam nas principais democracias consolidadas europeias há pelo menos vinte anos.
Cabe aqui assinalar, no entanto que se o afastamento entre o sistema político e a cidadania é tendência do conjunto das democracias, entre nós o distanciamento entre a pólis e a demos parece ter assumido uma dimensão inaudita. Vale aqui uma autocrítica por parte daqueles que avaliaram a governabilidade de nosso sistema político tão somente a partir do segundo andar desse sistema, a saber, do exame da articulação entre os poderes, notadamente, a partir das relações entre o e Executivo e Legislativo, ou seja, focando a análise apenas nos sinais do aparente sucesso do nosso presidencialismo de coalizão. Para esses analistas, o presidencialismo de coalizão bem azeitado seria condição suficiente para garantir ao País as condições de governabilidade. Ora, esquecemos, com raras exceções, de olhar para o primeiro andar de nosso sistema político, a saber, para os mecanismos de representação, para a capacidade de o sistema representativo absorver e processar as demandas sociais.
Para ler o artigo completo “2014 | O que esperar das ruas: silêncio ou mobilização?”, acesse a edição nº 15 da Revista emetropolis.