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Por Juliano Ximenes Ponte

Coordenador do Núcleo Belém do Observatório das Metrópoles

As notícias recentes, vindas do Governo Federal, dão conta da recriação dos Ministérios das Cidades (criado em 2003, no primeiro mandato do presidente Luís Inácio Lula da Silva) e da Integração Nacional (criado em 1999, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso)[1]. A imprensa, e alguns analistas, colocavam a questão como um recuo do governo e como uma medida decorrente de reavaliação da reestruturação administrativa operada já no início do mandato com uma apologia amorfa e pouco eficaz de suposto enxugamento de gastos e da máquina pública através da redução do número de ministérios[2]. Na época, ainda na fase de transição entre a gestão Michel Temer e a posse de Jair Bolsonaro na presidência, a extinção atingiu os ministérios da Segurança Pública, do Desenvolvimento Social, do Trabalho, da Cultura, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, do Planejamento, dos Esportes, da Integração Nacional e das Cidades. O benefício, dentro do ideário já típico neoliberal, seria a redução do “gasto público”, conversão generalizada do investimento estatal, compartilhado ou coordenado a uma atividade de mero desperdício e falta de controle social.

A imprensa teria solicitado, ainda sob a vigência da Lei de Acesso à Informação, a estimativa da economia da redução dos ministérios. Segundo o próprio Ministério da Economia do atual governo, a redução estaria entre R$ 20 a 30 milhões, o que representa 0,006% do total de despesas atuais do Poder Executivo no Brasil. Mesmo com a extinção de cargos e funções, outra medida mais cosmética do que administrativa, a economia rondaria 0,06% do orçamento do Executivo[3]. Demarca-se, contudo, a intenção clara de retirar o Estado de seu papel de promotor do desenvolvimento econômico, da distribuição da riqueza, da regulação das relações e conflitos ou de produtor de investimentos de amortização de longo prazo, categoria em que tipicamente o empresariado não se envolve[4].

Mas o noticiário cobre a intenção da Casa Civil e do Gabinete da Presidência da República, em articulação com a Presidência da Câmara dos Deputados, de arregimentar parlamentares para duas tarefas: os apoios à Medida Provisória de alteração da estrutura do Poder Executivo e a proposta do governo Bolsonaro e do ministro Paulo Guedes para a Reforma da Previdência. O mapeamento de parlamentares feito pelo governo, com apoio das presidências da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, aponta para um cortejo do Centrão, numeroso grupo político de corte conservador e comportamento abertamente fisiológico, dado a negociações baseadas em distribuição de cargos e emendas parlamentares. Coerente com esta lógica, o governo conjectura um ministro das Cidades do Partido Progressista (PP), legenda tributária do Partido Democrático Social (PDS) da ditadura militar de 1964-1985, forte no grupo do Centrão e já titular anterior do Ministério em governos do Partido dos Trabalhadores (PT) e do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB, atual MDB, de Michel Temer).

O esforço de rearranjo institucional do governo é também administrativo. O também ex-ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), prevê na Reforma Administrativa certos vetos à atuação da Receita Federal e do Ministério Público em investigações de natureza fiscal e contábil nestas pastas. O grupo pauta, ainda, maior controle do Centrão sobre o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), saindo do atual Ministério da Justiça e Segurança Pública e migrando para pasta da área econômica.

No desenho institucional atual, contudo, o Ministério do Desenvolvimento Regional seria o sorvedouro, em tese, das atribuições e políticas dos Ministérios das Cidades e da Integração Nacional. O esforço de reversão das desigualdades regionais brasileiras, seculares, e a defesa de uma política sistemática de enfrentamento do problema podem ser ilustrados claramente a partir da formulação de Carlos Brandão:

[…] alguns elementos para o debate da necessidade de se legitimar a política regional enquanto uma política de Estado e de se estruturar um sistema nacional de política regional permanente, que tenha eficiência e eficácia no enfrentamento das nossas mazelas socioespaciais. Tal sistema deverá ter por base a integração e a transversalidade das políticas públicas no território, ser concebida e implementada em múltiplas escalas espaciais e bem articular níveis de governo. Portanto a questão das especificidades de nosso pacto federativo torna-se central nessa análise.

[…] Se o Estado já obteve alguns importantes resultados na política de proteção e seguridade sociais, tem sido pouco capaz (ou não tem interesse) em colocar em sua agenda (muito menos priorizar) a promoção do combate às desigualdades regionais. Não tem sido eficaz em, simultaneamente, valorizar a diversidade e combater as heterogeneidades inter e intra as regiões brasileiras. O federalismo brasileiro mostra-se frágil e impotente para organizar multiescalarmente, com diversificados instrumentos, a governança multinível, no território. Ou seja, persistem os constrangimentos ao avanço de uma abordagem mais sistêmica, inclusiva, estruturante e duradoura de desenvolvimento, que alcance maiores níveis de justiça socioespacial.[5]

Por outro lado, com a virtual extinção do programa habitacional Minha Casa Minha Vida (MCMV), cujos recursos já reduzidos durariam até junho, segundo o próprio Ministério do Desenvolvimento Regional[6], já se percebe sinais do que o Presidente da Câmara dos Deputados chamara de “deserto de ideias” do Governo Federal[7]. O governo se mostra associado a uma pauta simplista e francamente neoliberal de quase absoluta extinção da ação do Estado como vetor de investimento, reorientando-o como equalizador do rentismo fiscalista e financeiro da manutenção do pagamento dos juros da dívida pública. Neste sentido o governo é, portanto, responsável por honrar a dívida nunca auditada com os bancos, sobretudo privados.

O problema, inclusive segundo um célebre economista de certa inspiração keynesiana, seria que:

Mercados falham com frequência, mas os governos frequentemente não são bem-sucedidos em corrigir as falhas do mercado. Os economistas de hoje, na tarefa de determinar o papel adequado do governo na economia, tentam incorporar uma leitura das limitações tanto do mercado quanto dos governos. Há consenso de que há muitos problemas que o mercado não encaminha adequadamente[8] para uma solução.

Stiglitz relata, para o caso norte-americano, que os esforços liberalizantes e conservadores apontaram basicamente para duas frentes nas últimas décadas: a desregulação e a privatização. No primeiro caso, a ressaca viria através de sucessivas crises financeiras, desde a Ásia até a Europa e os próprios EUA, no mínimo desde os anos 1990, o que amargamente ensinou a estes países e regiões que seria importante regular o mercado financeiro, objetivamente. Para a segunda frente, embora os EUA não sejam tão estatizados em termos de suas empresas nas décadas recentes, o autor pontua que houve conflitos evidentes entre público e privado, comprometendo até mesmo a segurança nacional, por exemplo, em contradições (des)regulatórias entre o beneficiamento e enriquecimento de urânio para a indústria bélica, a tecnologia e a geração de energia. O liberalismo, nos termos do economista, teria ido longe demais[9]. E Stiglitz fala em socialismo como só um norte-americano consegue; chama de socialismo o esforço de reversão das desigualdades que é estrutural no capitalismo, ou seja, chama matizes social-democratas de socialismo. Poucas tintas vermelhas no horizonte, portanto, e, aliás, um apontamento contraditório para a própria matriz do governo Bolsonaro; a receita já não funciona lá, como poderia funcionar aqui?

Voltando às pautas e atribuições dos Ministérios das Cidades e da Integração Nacional, a aparente reversão do enxugamento da máquina pretenderia alojar parlamentares estratégicos para o apoio do governo no Legislativo. Além disso, revela uma intenção hesitante de um governo cujo ministro da Economia desconhecia os mecanismos e limites legais de definição do plano plurianual (PPA), tendo argumentando com o então Presidente do Senado que desprezaria o orçamento de 2019 elaborado pela gestão anterior para, então, elaborar o seu próprio – coisa que singelamente a lei não permite[10]. Que não se confunda, contudo, os gestos aparentemente erráticos deste governo com mero amadorismo; as manobras contundentes, pirotécnicas, cênicas, estéreis, amplificadas nas redes sociais, são mecanismos para ganhar tempo, manter a base fiel e para criar camadas de fatos[11] com diferentes zonas de importância, inclusive para distrair a opinião pública sobre o violento desmonte operado celeremente por este governo. Sem dúvida esta postura frontalmente beligerante e autoritária solenemente despreza a coisa pública, e nisso implica um desgaste com o tempo. Por outro lado, a ameaça frequente de fechamento do regime já autoritário se assemelha ao efeito demonstrativo de que tipo de alternativa se discute.

Do ponto de vista da concepção, parece claro que o Governo Federal encaminha diretamente certas demandas do empresariado nacional e, até mais explicitamente, do setor financeiro e do empresariado estrangeiro. No setor da urbanização e da infraestrutura de alcance urbano e regional, esta postura se reflete no discurso do investimento privado para provisão de infraestrutura[12]. Sabe-se, contudo, que há investimentos de lenta amortização, que demandam entre 20 e 50 anos para que se paguem, e que são classicamente assumidos pelo recurso público, pela riqueza social[13]. Neste sentido, é plenamente ilustrativo considerar o que o governo vem produzindo no setor da provisão habitacional e da infraestrutura urbana e regional. O governo resolveu alterar regras do Conselho Curador do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), esvaziando o poder deliberativo da Caixa Econômica Federal, banco público, sobre o Fundo[14]. Em paralelo, circula um discurso que se assemelha a um cruzamento entre uma simplificação grosseira do municipalismo dos anos 1980, sem o ideário democrático da emancipação, com um laissez-faire populista de repasse de recursos direto a Prefeituras sem fiscalização de projetos ou órgãos de controle fazendo análise[15]. Regulação, análise, controle social, segundo o ideário deste governo, não seriam instrumentos de democratização, mas entraves. Sem meios-termos, a ideia seria potencializar, sem critério, orçamentos municipais em troca de apoio para a Reforma da Previdência. Do mesmo modo ocorreria com a renegociação da dívida dos Estados da Federação.

A previsão do novo Programa de Parceria de Investimentos (PPI) e demais frentes de privatização é ilustrativa, do mesmo modo. Neste sentido haveria grande centralidade nos modelos de privatização de rodovias, aeroportos e nos esforços de pensar o setor elétrico brasileiro no eixo da desresponsabilização generalizada do Governo Federal com as chamadas indústrias de base. Elemento mais amadurecido desta engenharia estaria na Medida Provisória 868, de 2018, que altera o marco legal do saneamento básico[16]. Neste caso, a previsão é de instalação dos chamados mercados da água, com mecanismos financeirizados de precificação deste recurso e de negociação entre macrobacias do país (com interesse de indústrias transnacionais, obviamente). Além disso, há previsão de dessolidarização dos sistemas de infraestrutura de saneamento no país. Enquanto hoje há previsão de subsídio cruzado em redes e sistemas de saneamento, o novo modelo prevê que as empresas privadas possam concorrer a blocos, metáforas dos mercados consumidores, perseguindo e mirando apenas aqueles em que se verifique demanda solvável e relegando a meta de expansão e universalização dos serviços, da cidadania e do direito à saúde pública às sucateadas empresas públicas de saneamento.

Deste modo, a recriação dos Ministérios das Cidades e da Integração Nacional aponta para:

  • A barganha por cargos e a negociação em torno das reformas estruturais de abertura ultraliberal do choque neoliberal sobre a nação e o Estado brasileiro;
  • A divisão nas pastas entre uma agenda relativamente unificada de abertura de mercados, perda de controle público sobre indústrias de base e infraestrutura;
  • Um afrouxamento de mecanismos de revisão, qualificação e adequação regional da produção do ambiente construído na habitação ou nos equipamentos públicos;
  • Uma proposta insidiosa de reversão (anti)constitucional do Pacto Federativo brasileiro, em que o fiscalismo rentista chantageia os entes federativos em busca de sujeição à máquina de rolagem da dívida (processo iniciado com a PEC do Teto de Gastos e a criação das Estatais Não-Dependentes emissoras de debêntures);
  • A própria antítese de uma política de desenvolvimento urbano e regional, portanto, pela intenção de esvaziamento da dimensão republicana de regulação, controle, indução ou mesmo incentivo controlado das condições de territorialização da população e da economia sobre a base ambiental do território brasileiro.

[1] Bolsonaro cede a políticos e recria dois ministérios. O Estado de São Paulo, Caderno Política, São Paulo, 07 mai. 2019. [Felipe Frazão, Daniel Weterman, Eduardo Rodrigues, Vera Rosa e Idiana Tomazelli]. https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,planalto-da-aval-para-recriar-dois-ministerios-diz-lider-do-governo-no-senado,70002819114

[2] Governo Bolsonaro confirma 22 ministérios, 7 a mais do que o prometido. Folha de São Paulo, Caderno Poder, São Paulo, 03 dez. 2018. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/12/governo-bolsonaro-confirma-22-ministerios-sete-a-mais-do-que-o-prometido.shtml

[3] Governo economizará menos de 0,01% com corte em ministérios. Terra, Seção Política, Porto Alegre, 15 mar. 2019. https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/governo-economizara-menos-de-001-com-corte-em-ministerios,140eab32fb755e88cc3a94f9f23429a6aszg5rri.html

[4] Se pensarmos como na Economia do Desenvolvimento dos anos 1950 e 1960, o investimento estatal seria estratégico para criar até mesmo condições para o desenvolvimento de um capital nacional, de cadeias produtivas articuladas a potenciais regionalmente dispostos, e para a reversão da tendência à causação circular e, portanto, à reprodução das desigualdades (MYRDAL, Gunnar. Teoria econômica e regiões subdesenvolvidas. Rio de Janeiro: Saga, 1969). Como se vê, não se trata de nenhuma perspectiva propriamente socialista.

[5] BRANDÃO, Carlos Antônio. Pacto federativo, reescalonamento do Estado e desafios para a integração e coesão regionais e para a legitimação de políticas regionais no Brasil. In: _______; SIQUEIRA, Hipólita (orgs.) Pacto federativo, integração nacional e desenvolvimento regional. São Paulo: Fundação Editora Perseu Abramo, 2013. p. 163-174.

[6] Ministro diz que Minha Casa Minha Vida só tem dinheiro até junho e pede ajuda aos parlamentares Portal da Câmara dos Deputados, Brasília, 24 abr. 2019. https://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/ECONOMIA/575373-MINISTRO-DIZ-QUE-MINHA-CASA,-MINHA-VIDA-SO-TEM-DINHEIRO-ATE-JUNHO-E-PEDE-AJUDA-DOS-PARLAMENTARES.html

[7] Governo é “deserto de ideias” e trabalhou contra minha reeleição, diz Maia. “Quem foi contra a reforma foi Bolsonaro”. Congresso em Foco, Brasília, 23 mar. 2019. https://congressoemfoco.uol.com.br/legislativo/governo-e-deserto-de-ideias-e-trabalhou-contra-minha-reeleicao-diz-maia-quem-foi-contra-a-reforma-foi-bolsonaro/

[8] STIGLITZ, Joseph. Economics of the public sector. 3. ed. Nova Iorque: W. W. Norton & Company Inc., 2000. p. 10.

[9] Idem, op. cit., p. 11.

[10] Em que mundo vive Paulo Guedes? Carta Capital, 09 nov. 2018. [Pedro Paulo Zahluth Bastos]. https://www.cartacapital.com.br/opiniao/em-que-mundo-vive-paulo-guedes/

[11] NOBRE, Marcos. O caos como método. Manter o colapso institucional é o modo de Bolsonaro garantir a fidelidade de seus eleitores. Piauí, seção Questões Brasileiras, 151, abr. 2019. https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-caos-como-metodo/

[12] Bolsonaro quer destravar projetos de infraestrutura com dinheiro privado. Estadão Conteúdo, Rio de Janeiro, 17 out. 2018. [Renata Agostini; Vinícius Neder.]

[13] Myrdal, op. cit.

[14] Através do Decreto 9.737/2019. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D9737.htm

[15] Como, por exemplo, na notícia: Bolsonaro promete a prefeitos aumentar repasse de recursos para municípios. O Globo, Rio de Janeiro, 09 abr. 2019. https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-promete-prefeitos-aumentar-repasse-de-recursos-para-municipios-23584815

[16] Recentemente aprovada em Comissão Especial: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/135061