O mais novo atentado contra o social e o urbano: a PEC 80/2019
Por Tarcyla Fidalgo Ribeiro¹
Na última semana, foi divulgado o conteúdo da proposta de emenda à Constituição (PEC) n° 80, apresentada em 21 de maio pelo senador Flávio Bolsonaro, com assinatura de outros 27 senadores (acesse aqui o documento). A referida proposta pretende alterar os artigos 182 e 186 da Constituição Federal, que tratam da função social da propriedade urbana e rural, respectivamente.
Antes de abordar as alterações propostas e seus possíveis impactos, cabe destacar que a funcionalização social da propriedade está prevista nas constituições brasileiras desde 1934 (com um breve intervalo na Constituição de 1937), e traz em si a ideia de que a propriedade não se constitui apenas em um direito, mas também traz deveres ao proprietário. Estes deveres se relacionam à necessária colaboração para o alcance do desenvolvimento social e econômico do país, conforme previsto pela Constituição brasileira.
Com esta ideia em mente, a constituinte deu à função social da propriedade a posição de direito fundamental, ao mesmo tempo em que cuidou de sua regulamentação nos artigos 182 e seguintes do texto constitucional. Tais dispositivos, em conjunto, desenham um modelo de propriedade urbana necessariamente comprometido com o desenvolvimento de cidades justas e igualitárias.
Não se pode esquecer que a propriedade se relaciona diretamente com o direito à moradia, tratando-se de dois direitos fundamentais que não possuem qualquer hierarquia entre si, com a função social funcionando como uma espécie de moderador fundamental na relação (via de regra de tensão) entre ambos, que se mostra de fundamental importância nas cidades.
O desenvolvimento deste desenho constitucional inspirou diversas legislações e regulamentações ao longo dos últimos 30 anos, dentre as quais se destacam o Estatuto da Cidade e mesmo o Código Civil. Formou-se então uma espécie de microssistema jurídico sobre a propriedade imobiliária/fundiária no Brasil, do qual a função social da propriedade se constitui em núcleo fundamental.
A função social da propriedade contagiou diversos outros institutos jurídicos, passando a ser sinônimo de uma preocupação social que se apresenta, até então, como a melhor possibilidade de humanizar a aplicação das leis no país, via de regra tão seletiva e desigual.
De outro lado, conformou-se em uma das principais ferramentas de luta e resistência de movimentos sociais que, embora ainda enfrentem dificuldades para vencer a ideologia individualista e absolutista da propriedade, acionam a função social como argumentação jurídica, instrumento de coesão social e expressão de ordem política.
Pois bem. É neste cenário que pretende intervir a referida PEC , por meio das seguintes alterações no desenho constitucional da função social da propriedade:
- Retirada da competência do plano diretor para definir o conteúdo da função social da propriedade urbana, desprestigiando a dimensão local e o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana, conforme definição também constitucional. No lugar da definição local, integrada às diretrizes da política urbana, a PEC propõe que a definição sobre a função social se dê no próprio texto constitucional, conjugando uma expressão negativa (“sem ofensas a direitos de terceiros”) com o atendimento de apenas uma das exigências de ordenação da cidade dentre as três enumeradas: (i) parcelamento ou edificação adequados; (ii) aproveitamento compatível com sua finalidade ou (iii) preservação do meio ambiente ou do patrimônio histórico, artístico, cultural ou paisagístico.
- A função social é fragilizada e sua definição sob um viés negativo resgata seu caráter absoluto, que há muito havia sido superado na lei e que demonstrava avanços quanto à sua superação junto aos poderes judiciário e executivo. Este resgate fica claro na justificativa da PEC, que afirma que a função social é um “limite à propriedade”, definida como “um bem sagrado e que deve ser protegido de injustiças”.
- Retirada da competência do poder executivo para realizar desapropriações autonomamente, exigindo autorização do poder legislativo em qualquer caso. Ainda no âmbito da desapropriação por descumprimento da função social estabelece de forma expressa o valor de mercado como parâmetro de indenização.
- No que se refere às alterações sobre a desapropriação, estas se relacionam com o objetivo, expresso na justificativa, de dificultar a expropriação dos proprietários descumpridores da função social, acabando inclusive por beneficiá-los com a previsão de indenização por valor de mercado. Trata-se de subversão clara da intenção constituinte que, inclusive, estabeleceu uma série de instrumentos de coerção, e mesmo punição, dos proprietários que não exercem a função social de seus imóveis, como o IPTU progressivo, a desapropriação sanção e a usucapião especial urbana – com prazos reduzidos.
A partir dos breves apontamentos acima delineados, é possível dimensionar a gravidade da PEC que tramita, neste momento, junto a Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal. Trata-se do desmonte de um acúmulo não apenas de 30, mas de 85 anos de desenvolvimento do princípio da função social da propriedade em nosso ordenamento jurídico.
Uma vez aprovada, a proposta significará a perda do próprio sentido da função social da propriedade, com a positivação de um retorno ao paradigma da propriedade como direito absoluto, um esvaziamento significativo do instrumento do Plano Diretor e um enfraquecimento significativo das lutas e resistências por cidades mais justas e igualitárias.
É preciso resistir e lutar, ainda que pelo mínimo que considerávamos já garantido. A função social da propriedade é indispensável e qualquer mudança no seu conteúdo só deve ser admitida sob a ótica de ampliação de sua eficácia e garantia.
¹ Tarcyla Fidalgo Ribeiro é pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Rio de Janeiro e doutoranda do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ).