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A experiência das políticas habitacionais para população de baixa renda, com foco no caso de São Paulo, é analisada por Suzana Pasternark e Camila D’Ottaviano à luz da dinâmica entre condições institucionais e pragmáticas no planejamento urbano no artigo “Paradoxes of the Intervention Policy in Favelas in São Paulo: How the Practice Turned Out the Policy…”. O texto faz parte do The Routledge Handbook of Institutions and Planning in Action que tem como tema a inovação institucional e o pragmatismo filosófico no contexto do planejamento urbano. O objetivo do manual é motivar a análise institucional no contexto da ação na mudança de cidades.

No site da editora é possível adquirir o livro completo (clique aqui).

Abaixo, o artigo de Suzana Pasternark e Camila D’Ottaviano em português:

Paradoxos da política de intervenção em favelas em São Paulo: de como a prática virou política…

Tendo como foco a favela e as políticas recentes de intervenção em áreas faveladas, este artigo procura analisar como a realidade habitacional extremamente precária de parcela considerável da população brasileira de baixa renda acabou por consolidar políticas públicas que atuam “fora da lei”. Como o esboçado pelo capítulo introdutório do The Routledge Handbook of Institutions and Planning in Action, o enfoque é a dinâmica entre condições institucionais e pragmáticas no planejamento das cidades. Nosso argumento é que a experiência das políticas habitacionais para população de baixa renda no Brasil metropolitano adquiriu uma posição particular neste campo de tensões. As práticas prevalentes da moradia “ilegal” dos grupos populares tornaram-se tão dominantes nas últimas quatro décadas que transformaram as politicas institucionais vigentes até então, aproximando-as destas práticas.

Historicamente, o acesso à moradia para a população de baixa renda no Brasil se deu, em geral, de forma precária e a partir de três tipos básicos de moradia: os cortiços, as favelas e os loteamentos periféricos, com moradia própria e autoconstrução. Desde o início do século XX as favelas têm sido marca da cidade do Rio de Janeiro. Porém desde meados do século, a moradia em favela tem sido uma opção importante da população de baixa renda não apenas nas metrópoles, mas em quase todas as cidades brasileiras de porte médio e grande (PASTERNAK & D’OTTAVIANO, 2015).

Com isso, o crescimento das cidades brasileiras ao longo da segunda metade do século XX se caracterizou pela configuração de duas cidades distintas: uma cidade legal, consolidada pela implementação de parcelamentos oficiais (legalizados) localizados, usualmente, em áreas mais centrais, destinados à moradia das classes médias e altas; e uma cidade ilegal, destinada à moradia das classes baixas, caracterizada pela implantação de loteamentos ilegais (ou irregulares) nas porções periféricas dos municípios, pela consolidação de favelas em diversas áreas e pela oferta de cômodos em cortiços nos bairros históricos centrais.

Se, em 1960, a taxa de urbanização no Brasil era de 44,7%, a concentração de população nas zonas urbanas cresceu paulatinamente desde então, passando de 55,9% em 1970, para 67,6% em 1980, chegando a 75,6% em 1991. O Censo de 2010 apontou que 84,36% da população brasileira é urbana.

A demanda por moradia, serviços e infraestrutura urbanos tem acompanhado esse processo: “O Brasil, como os demais países da América Latina, apresentou intenso processo de urbanização, especialmente na segunda metade do século XX. Em 1940 a população urbana era de 26,3% do total. Em 2000 ela é de 81,2%. Esse crescimento se mostra mais impressionante ainda se lembrarmos dos números absolutos: em 1940 a população que residia nas cidades era de 18,8 milhões de habitantes e em 2000 ela é de aproximadamente 138 milhões. Constatamos, portanto, que em sessenta anos os assentamentos urbanos foram ampliados de forma a abrigar mais de 120 milhões de pessoas. (…) Trata-se de um gigantesco movimento de construção de cidade, necessário para o assentamento residencial dessa população bem como de suas necessidades de trabalho, abastecimento, transportes, saúde, energia, água, etc. Ainda que o rumo tomado pelo crescimento urbano não tenha respondido satisfatoriamente a todas essas necessidades, o território foi ocupado e foram construídas as condições para viver nesse espaço. Bem ou mal, de algum modo, improvisado ou não, todos os 138 milhões de habitantes moram em cidades” (MARICATO, 2002, p. 16).

O crescimento populacional urbano tem se concentrado, sobretudo, nas porções periféricas das cidades brasileiras. Em números absolutos, nos últimos 40 anos as áreas urbanas incorporaram praticamente 108 milhões de novos moradores. O resultado final são cidades com extensas áreas periféricas, com grande concentração de moradias inadequadas e/ou localizadas em favelas e loteamentos ilegais. Devido à falta de uma política habitacional eficiente para a população de baixa renda, o mercado habitacional informal tem sido decisivo na configuração das nossas cidades (PASTERNAK & D’OTTAVIANO, 2015; D’OTTAVIANO & QUAGLIA, 2010).

Até meados dos anos 1980, os governos locais e mesmo nacional utilizavam a letra estrita da lei no tratamento destes fenômenos: uma cidade não deveria, segundo a norma, apresentar estas formas de ocupação do solo. Favelas, por exemplo, eram vistas como moradia provisória e solução ilegal e, por esta razão, ignoradas pelo poder público.

Do ponto de vista das políticas públicas, experiências inovadoras, como as de intervenção em áreas de favela no Rio de Janeiro nos anos 1950 e depois em São Paulo nos anos 1980 abriram caminho para um novo entendimento sobre a forma como o poder público poderia atuar nas extensas áreas irregulares das cidades brasileiras. Do ponto de vista legal, a nova Constituição de 1988 avançou na definição da necessidade de uma política urbana, conforme indicado em seus artigos 182 e 183 (Capítulo II – Da Política Urbana).

O fim do Banco Nacional de Habitação, responsável pela construção de grandes conjuntos habitacionais periféricos e a nova Constituição Federal marcaram um período de maior protagonismo dos municípios, inclusive em relação à política habitacional. A aprovação do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257), em 2001 define como alguns dos paradigmas da política urbana nacional o direito à cidade, o direito à moradia digna e a função social da propriedade.

Este texto procura mostrar como práticas heterodoxas e mesmo à revelia da lei estrita foram sendo utilizadas de forma crescente pelo poder público, criando uma nova jurisprudência. E como, em alguns momentos, a lei foi moldada pela prática.

Favelas no Brasil.

A favela é definida e mensurada no Brasil como sendo um assentamento composto de moradias geralmente inadequadas, em área com deficiência de infraestrutura e melhoramentos públicos, sendo que as construções são feitas sem licença em terrenos de terceiros ou de propriedade desconhecida.

Até meados do século passado, as favelas eram um fenômeno quase que exclusivo da cidade do Rio de Janeiro. Assim, o primeiro levantamento sobre favelas foi realizado apenas em 1948, e somente no Rio de Janeiro, capital federal. Em 1950 o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) decidiu, pela primeira vez, incluir a favela na contagem de população, tendo como estudo de caso específico o Distrito Federal. Em 1953, o próprio IBGE publica o primeiro documento de estudo sobre a realidade das favelas cariocas: o Documento Censitário intitulado “As favelas do Distrito Federal” (IBGE, 1953). Neste momento, no entanto, os levantamentos quantitativos eram muito desiguais do ponto de vista geográfico. Nas publicações para São Paulo, por exemplo, apenas em 1980 dados específicos sobre favelas apareceram.

Num primeiro momento a conceituação de favelas era dada por um grupo de moradias que possuíssem pelo menos duas das características a seguir:

  • proporções mínimas – agrupamentos prediais ou residenciais formados com número geralmente superior a cinquenta;
  • tipo de habitação – predominância de casebres ou barracões de aspecto rústico, construídos principalmente com folha de flandres, chapas zincadas ou materiais similares;
  • condição jurídica da ocupação – construções sem licenciamento e sem fiscalização, em terrenos de terceiros ou de propriedade desconhecida;
  • melhoramentos públicos – ausência, no todo ou em parte, de rede sanitária, luz, telefone e água encanada;
  • urbanização – área não urbanizada, com falta de arruamento, numeração ou emplacamento (GUIMARÃES, 2000, p. 353).

A partir do Censo de 1991, o IBGE passou a adotar o conceito de aglomerado subnormal[1]. O conceito, bastante genérico, buscava abarcar a diversidade dos assentamentos irregulares existentes no país. Aglomerado subnormal abarca favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, mocambos, palafitas, entre outros. Foi neste Censo Demográfico que os dados relativos às favelas foram levantados de forma homogênea por todo o país.

O último censo nacional, de 2010, foi o que trouxe a maior quantidade de avanços em relação à identificação e levantamento de dados dos aglomerados subnormais, a partir de uma pesquisa morfológica específica, com a identificação georeferenciada e visita de campo preparatória nos aglomerados. Em função da antiga sub-enumeração e do avanço de 2010, a quantificação das favelas pelo Censo 2010 acabou sendo muito mais confiável, gerando um grande crescimento numérico de favelas, em especial na região norte do país.

De acordo com o Manual de Delimitação dos Setores, o Censo 2010 classifica como aglomerado subnormal “cada conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais carentes, em sua maioria, de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e densa”.

Assim, embora este capítulo utilize dados censitários, confiáveis e disponíveis para todo o território nacional, deve ser lembrado que contem uma subestimação, já que não incluem pequenos aglomerados. Esta subestimação varia conforme o município. No Rio de Janeiro, a disponibilidade de invasão nos morros facilitou a existência de grandes favelas. Daí a subestimação ser, provavelmente, pequena. Em São Paulo algumas pesquisas de campo apontaram que 20% das favelas teriam menos que 50 casas, mas são pesquisas da década de 1990, quando as favelas tinham menor porte.

As diversas crises econômicas, a desigualdade de renda, o preço da terra e da moradia, além do acentuado crescimento urbano contribuíram para o grande aumento da população favelada nas cidades brasileiras: entre 1980 e 2000 os domicílios favelados brasileiros cresceram 1.169.953 unidades habitacionais, de 1,16% dos domicílios totais para 3,04% no ano 2000, atingindo 5,61% em 2010 (3,22 milhões de domicílios, com 11,4 milhões de favelados, de acordo com dados do Censo). No município de São Paulo, os percentuais de população favelada aumentaram de 7,40% do total em 1991 para 11,38% em 2010, abrangendo 1.280.400 habitantes. As taxas de crescimento da população favelada na cidade têm sido significativamente maiores que as taxas de crescimento da população total desde a década de 80: entre 80 e 10, 8,18% ao ano para a população favelada e 3,08% para a total; entre 1991 e 200, 4,18% e 3,07% e 6,93% e 0,57% para a primeira década do século XXI.

Tabela 1 – Domicílios e População Residente em Favela, por capital. 2010.

Capitais (Seleção) Número de domicílios particulares ocupados em favelas População residente em domicílios particulares em favelas
Brasil  3 224 529  11 425 644
Belém – PA   193 557   758 524
Fortaleza – CE   109 122   396 370
Recife – PE   102 392   349 920
Salvador – BA   275 593   882 204
Belo Horizonte – MG   87 763   307 038
Rio de Janeiro – RJ   426 965  1 393 314
São Paulo – SP   355 756  1 280 400
Porto Alegre – RS   56 024   192 843
Brasília – DF   36 504   133 556
Fonte: IBGE, Censo Demográfico, 2010.

 

A Tabela 1 mostra o número de domicílios e de população residente em favelas para algumas das maiores capitais do país, em 2010. Naquele momento a população favelada, mesmo com sub-enumeração, totalizava 11.425.644 pessoas. Apenas no município do Rio de Janeiro 1,4 milhões de pessoas viviam em favelas. Em São Paulo, 1,3 milhões. No município de Belém, apesar do número absoluto ser menor (758 mil residentes em favelas), 54% dos domicílios está em favelas.

A condição de moradia e de acesso à infraestrutura urbana varia muito entre as diversas favelas, cidades e regiões, porém os números mostram porque ao longo das últimas quatro décadas governos municipais, estaduais e federais idealizaram e implementaram  diversas políticas de intervenção para essas áreas.

O município de São Paulo e as favelas.

O tecido urbano paulistano é marcado por habitação inadequada e assentamentos irregulares e desprovidos de titulação: cortiços, loteamentos irregulares, favelas e até mesmo conjuntos populares em estado deteriorado. Até meados dos anos 80, o governo de São Paulo utilizava a letra estrita da lei no tratamento destes fenômenos: uma cidade não deveria, segundo a norma, permitir estas formas de ocupação do solo. Favelas, por exemplo, eram vistas como moradia provisória e solução ilegal e, por esta razão, ignoradas pelo poder publico. Os cortiços, embora reconhecidos como forma de habitação múltipla em 1916 (Lei municipal 2.333), sumiram do Código de Obras em 1934, mostrando de forma inequívoca como sequer existiam para o poder publico. A solução seria extirpá-los e os substituir por moradias dignas. Mas o perfil de renda da população brasileira e o enorme crescimento populacional de centros urbanos como o município paulista (em 1940 a cidade tinha 1.326.261 habitantes e em 1991, 9.610.659; em 2010 São Paulo alcançou mais de 11 milhões de residentes), além do preço da terra e dos insumos de construção, fazem com que o déficit de moradias aumente, assim como alternativas irregulares  se disseminem pelo tecido urbano.

Este texto procura mostrar como práticas heterodoxas e mesmo à revelia da lei estrita foram sendo utilizadas de forma crescente pelo poder público, criando uma nova jurisprudência. Neste item, procura-se mostrar a evolução da população favelada na cidade de São Paulo e suas características. No item a seguir, as primeiras intervenções e sua lógica, a atual politica de urbanização e manutenção das favelas, sempre que possível. A lei versus a prática é o item seguinte, onde diversos problemas são abordados. Vai se formando todo um acervo de conhecimento dos problemas da urbanização dos assentamentos favelados, que vão informando a politica de intervenção. Finalmente, apontam-se novos problemas oriundos desta prática. Mudou-se o paradigma de intervenção e a aceitação social de alguns tipos de moradia antes condenados. Se antes a expulsão era frequente, hoje a inclusão dos favelados é item prestigiado. Mas, de outro lado, criou-se dois tipos de padrão urbano: o da cidade formal e o da cidade previamente informal, agora já legalizada.

A área ocupada pelas favelas no tecido urbano municipal em 2010 foi de 4.304,6 hectares, menos de 3% da área municipal. Estes pequenos pedaços de terra urbana abrigam mais de 11% da população da cidade. A densidade demográfica das favelas paulistanas é alta, fornecendo uma média de 297,4 habitantes por hectare. A densidade média do município é cerca de 80 habitantes por hectare. Esta densidade mais alta nas favelas faz com que uma série de problemas se agrave: a proximidade entre as unidades habitacionais dificulta insolação e ventilação das casas, diminui a privacidade e deixa alguns serviços públicos comprometidos, como a coleta de lixo e mobilidade. Além disso, o espaço disponível para invasão no tecido urbano diminui dia a dia, fazendo com que a única possibilidade de ampliação, ou mesmo de construção de novas unidades, se dê por verticalização: em 2010, apenas 30,48% dos domicílios favelados eram térreos. Mais de 61% tinham 2 ou mais andares, construídos sem cálculo estrutural e sem espaçamento entre unidades. Em algumas favelas da cidade a densidade demográfica chega a mais de 900 habitantes por hectare, mostrando a falta de espaços livres.

As politicas de intervenção mudaram consideravelmente a oferta de infraestrutura nas favelas paulistanas. Assim, em 1980, apenas 22,6% dos domicílios favelados eram servidos pela rede publica de água. No ano 2010 esta porcentagem atingiu 97,8%. Energia elétrica, que nos anos 80 existia em apenas 65,4% dos domicílios favelados, no ano 2010 era praticamente universal (em 99,9% dos domicílios favelados). Coleta de lixo, sempre um problema sério pela própria estrutura física do tecido favelado, com ruas estreitas que não permitem a passagem de caminhão coletor, também aumentou, de 42,8% das casas em 1980 para 98,9% em 2010. A coleta é feita com auxilio de containers, de forma que é necessário o transporte do lixo pela família a pé, quando a casa é incessível. Mas, de qualquer forma, o lixo pode ser retirado. O esgotamento sanitário é ainda o maior problema sanitário nas favelas: em 1980 praticamente nenhuma casa favelada o tinha, e em 2010 apenas 67,4% dos domicílios são cobertos pela rede publica de esgoto.

A favela paulistana do século XXI não é mais, como se imaginava, um local de barracos de madeira, sem infraestrutura. É claro que persiste o barraco de madeira, sobretudo em favelas recentes e pouco estruturadas. Mas não é forma predominante, como acontecia até 1980, quando apenas 2,40% das unidades de moradia tinham paredes externas de alvenaria. No ano 2000, 96,31% das casas faveladas paulistanas são de alvenaria. A paisagem favelada é agora cinzenta com blocos de concreto nos pisos inferiores e vermelha dos tijolos nos pisos superiores. Esta mudança de perfil também se liga a práticas de intervenção: a partir da década de 80 se iniciou a colocação de energia e água, antes proibida, dado que uma empresa estatal não poderia colocar investimento em área ilegal. Esta prática levou os favelados a terem maior segurança de permanência no local. Daí resultou num maior investimento na moradia, transformando-a de barraco em casa, garantindo maior solidez estrutural e maior conforto.  Na década de 80 em São Paulo o aumento do numero de favelas e favelados fez com que mesmo governos autoritários acabassem por se render a problemas de saúde publica e perceber que a remoção de tanta gente seria complicada. Assim iniciaram a instalação de infraestrutura. Em 1980 as paredes externas de 93% dos barracos eram confeccionadas com madeira usada, 46% apresentavam pisos sem revestimento e 36% das coberturas eram feitas de material inadequado.

Em relação às condições de ocupação, observa-se contínua melhoria no tempo; se em 1973 predominavam as casas de cômodo único, em 2010 esta proporção é inferior a 1%. Os indicadores de congestionamento se mostram cada vez melhores, com o número de pessoas por cômodo diminuindo 3,5 vezes desde 1973 até 2010, assim como houve uma redução de 25% na média de pessoas por dormitório. O percentual de casas sem sanitário individual também praticamente desapareceu.

A prática de colocação de luz e água nas favelas paulistanas, iniciada na década de 1980, e a posterior prática de introduzir coleta de lixo periódica e colocar rede de esgotamento sanitário mudaram o morar na favela. Perante a colocação de infraestrutura pelo poder público, os moradores tiveram a percepção de uma posse consentida. Afinal, após investimento, qual seria a lógica da expulsão? E a certeza da permanência possibilitou o investimento em melhora da moradia, mudando a paisagem da favela.  Entretanto o espaço favelado é distinto do formal, mesmo após urbanização: as ruas são mais estreitas, o tecido é mais denso, as casas não têm espaçamento e as condições de ventilação e insolação não raro continuam precárias. Mas a propriedade de bens de consumo na favela surpreende. A moradia favelada foi invadida por bens industrializados: a presença de TVs coloridas e de tela plana, aparelhos de som, máquinas de lavar roupa, micro ondas e mesmo computadores aparecem com frequência nos domicílios favelados. Em 2013, 46% das unidades habitacionais faveladas apresentavam TV de LCD, LED ou plasma, porcentagem que passa a 67% em 2015 (dados de Meirelles, 2015) Em 2000, 18% dos domicílios tinham automóvel, percentagem que passa a 24% em 2010, com 15% tendo moto.  Nas favelas maiores e mais estruturadas o comércio é presente, assim como mercado imobiliário e fundiário.

As melhores condições de moradia conduziram também a certa mudança no perfil populacional do favelado paulistano. As favelas de maior porte e mais estruturadas apresentam uma diferenciação socioespacial, mostrando setores distintos, que abrigam diferentes camadas sociais. “A favela de verdade apresenta-se na diversidade, plena de defeitos e virtudes (…) o receituário da estigmatização a vê como o conjunto dos três pês: pretos, pobres e proletários, privados da propriedade” (MEIRELLES, 2014, p. 134). Este mesmo autor, diretor do Data Popular, mostrou que o percentual de moradores das favelas brasileiras que pertenciam às classes A e B subiu de 3% em 2013 para 7% em 2015 (BBC Brasil, 3 de maio de 2015). Segundo ele, isso inclui famílias com mais de R$ 5 mil (1600USD). Em alguns casos, pode chagar até R$20 mil (6250 USD). A expansão do trabalho formal, que se deu no Brasil entre 2002 e 2014 trouxe uma melhoria social entre moradores favelados.

“Na prática, a gente vê que a vontade empreendedora está fazendo surgir uma nova elite na favela, que não é mais a elite do tráfico, da violência, da criminalidade- é a elite do empreendedorismo. É o dono da padaria, da mercearia, o cara que distribui água. Que preferem ser os mais ricos entre os pobres que os mais pobres entre os ricos”. (Meirelles, BBC Brasil, 3 de maio de 2015)

Programas de intervenção flexíveis, tanto de urbanização como de regulamentação fundiária, tornaram a favela uma opção menos traumática e com melhores condições de vida. São resultado tanto de pressões de movimentos sociais ligados à defesa dos direitos dos favelados como da consciência dos poderes públicos que as favelas se constituem numa saída para a carência de habitação, cada vez mais improvável de ser resolvido no panorama econômico brasileiro. Numa cidade como São Paulo, como construir 350 mil moradias e onde aloca-las? Soluções pragmáticas como melhoria das condições de moradia deste segmento populacional colocam-se como alternativa possível. Esta prática foi sendo construída nas ultimas décadas do século XX, tal como mostra o item seguinte.

As intervenções em favela: evolução do paradigma.

Primeiro Estágio: remoção da favela e realocação dos favelados.

A primeira intervenção em favelas no município de São Paulo foi a remoção e a reinstalação do aglomerado em outro lugar.  A ideia norteadora deste tipo de intervenção ligava-se à concepção que a favela era antro de doenças, crimes, desorganização social e marginalidade. Essa patologia se extinguiria com a extirpação do assentamento e a remoção dos favelados para unidades adequadas. Deve ser lembrado que a população favelada paulistana era pequena, cerca de 100 mil pessoas, o que tornava a remoção possível.  Embora não houvesse tensão entre a prática da remoção e a legislação vigente, que protegia a propriedade privada, os resultados foram pouco animadores. Os núcleos habitacionais para os quais foram removidos os favelados eram normalmente situados em terrenos periféricos, de difícil acesso. Como consequência, o custo do transporte aumentava para a família favelada, onerando o orçamento. De outro lado, a maior distância entre centros de serviço e o domicílio impediam a contribuição feminina para a renda familiar. O poder aquisitivo abaixa, dificultando o pagamento de prestação ou aluguel e resultando em volta à favela.

Na década de 70 já se tornava claro que a remoção só se justificava para situações de emergência ou para áreas de risco. Como forma modal de intervenção em favelas, era necessária política mais eficaz e menos traumática. Assim, ao invés de conduzir o favelado a uma unidade definitiva, procurou-se localizá-lo nas chamadas V.H.P. (Vilas de Habitação Provisória). A V.H.P. se constituía em alojamento não definitivo construído no próprio terreno da favela, onde atuava um serviço social intenso, visando dar formação profissional, alfabetização, documentação à população, visando dar a ela condições de integração à cidade e ao mercado imobiliário. Mesmo o projeto físico do alojamento enfatizava seu caráter provisório, através do uso de material de construção não definitivo – as V.H.P. – eram de madeira, o uso de alvenaria não se colocava e os banheiros eram coletivos. Esperava-se que após um ano a família estivesse apta e se integrar no mercado formal de moradia e de emprego.

As colocações teóricas que mediaram essa forma de intervenção inspiravam-se nas formulações de integração social da escola de pensamento da sociologia funcionalista. Enfatizavam a ideia que a favela seria a primeira alternativa habitacional para um migrante rural, um “trampolim” para a cidade, etapa necessária de integração à vida urbana. Na V.HP. , a preocupação básica era a de encurtar o “tempo necessário” que o migrante ficaria na favela, através de fornecimento de alguma infraestrutura básica, orientação profissional e instrução formal. Assim, em alguns assentamentos invadidos, embora o terreno não fosse de propriedade publica (e, portanto, no qual, segundo a lei, só poderia se dar alguma intervenção com o consentimento do proprietário), a prática consentida socialmente foi a de permitir moradia temporária, aliada ao serviço social. Já se observa uma lógica mais pragmática e instrumental.

As críticas a este projeto foram inúmeras. Além do pressuposto de integração social implícito – e que não se mostrou verdadeiro – dados empíricos, oriundos de Censos de Favelas, cuja coleta sistemática se iniciou em meados da década de 70, mostraram que os favelados não eram em absoluto migrantes recentes e nem tiveram na favela seu primeiro local de moradia. As favelas estavam crescendo mais por empobrecimento que por migração direta. “Os moradores das favelas não se instalaram logo de início no barraco onde moravam. Foram se deslocando no espaço urbano, numa trajetória de “filtração descendente”, dentro do processo de valorização da terra urbana e do empobrecimento da classe trabalhadora, das áreas centrais para as periféricas, das casas de alvenaria para os barracos das favelas” (PASTERNAK & TASCHNER, 1997, p. 54).

A percepção, no fim dos anos 70, que a favela veio para ficar e que os favelados eram trabalhadores, em grande parte empregados registrados da indústria paulista, colocou a necessidade de se buscar novas soluções. O pressuposto da integração social numa sociedade como a brasileira tem sérios limites: a capacidade da economia paulistana de incorporar força de trabalho nos polos dinâmicos da economia é limitada, além dos pré-requisitos de competência profissional e escolaridade. O aumento numérico da população favelada paulistana, que já em 1980 alcançava mais de 335 mil pessoas, em 71,2 mil domicílios já dificultava a construção de novas unidades em conjuntos, mesmo periféricos, e a solução da integração no tecido urbano não se mostrava factível. Isso conduziu a um impasse operacional: como colocar o problema da intervenção? Como formar uma metodologia de ação que não seja a de ruptura total com o sistema?

Alguns setores técnicos acreditavam que a construção em larga escala, a pré-fabricação, a industrialização e a racionalização da construção poderiam promover o barateamento da casa, colocando-a ao alcance de todos. Assim edificaram-se conjuntos como o de Itaquera, no extremo leste do município, onde alguns modelos de barateamento foram introduzidos (sistemas de pré-fabricação leve com formas metálicas tipo “outnord”, alvenaria estrutural, etc.), dentro de esforço da COHAB-SP da edificação de cerca de 80 mil unidades habitacionais entre 1980 e 1985. Mas o custo da construção de conjuntos para tanta gente era monstruoso. A urbanização de favelas se mostrava como alternativa possível, dentro de um paradigma pragmático de tentativa de resolução de determinado problema, que era criar alternativas para a melhoria das condições de infraestrutura dos assentamentos, mantendo a população onde estava, sempre que possível. Com isso, o problema habitacional teria algum tipo de solução mais barata e os problemas de saúde pública que assentamentos informais causavam seriam minimizados.

Um problema básico nas favelas paulistanas era a falta de energia elétrica, o que obrigava a família a utilizar vela ou lampião. Incêndios eram frequentes e a falta de luz prejudicava tanto o estudo das crianças como a possibilidade da família aumentar sua renda através de algum trabalho noturno que pudesse ser feito em casa. Além disso, ligações clandestinas sobrecarregavam o sistema elétrico. A solução para isto foi permitir que a Eletropaulo (concessionária de energia em São Paulo) desenvolvesse  formas eficazes de fornecimento de energia, a tarifas mínimas. O Pró–Luz, programa de eletrificação das unidades faveladas, iniciou-se em 1979 e até 1987 já tinha instalado energia elétrica em quase todas as moradias faveladas. Também em 1979 iniciou-se o Pró-Água, que propunha a extensão da rede de água potável para as favelas, com ligação domiciliar sempre que possível. Bem mais caro e complicado que o Pro-Luz, dado que colocar canalização é mais difícil que fiação aérea. Este programa procurava contemplar o favelado com distribuição de água potável, melhorando condições sanitárias e diminuindo a mortalidade infantil. De novo abriu-se uma exceção na normativa vigente, que não autorizava companhias estatais a fazerem serviços em áreas invadidas. Justificou-se a exceção, dado que não se poderia deixar tanta gente vivendo sem nenhum saneamento. Mesmo porque o tecido urbano informal era local propício à propagação de vários tipos de doenças. Mesmo em um governo conservador como o de Reinaldo de Barros, na década de 1980, a massa de favelados (mais de 400 mil pessoas, cerca de 5% da população municipal) já inviabilizava soluções do tipo remoção. O Pro-Luz e o Pro-Água eram programas estaduais. No mesmo ano, o município lançou um programa municipal de melhoria urbana e dotação de infraestrutura, o Profavela, que teve pouca expressão quantitativa. Uma das suas experiências modelo se deu numa favela no Jardim Educandário, zona oeste de São Paulo, onde todas as unidades habitacionais foram demolidas e a população alojada temporariamente em terreno próximo. Toda a antiga favela foi arruada, dotada de infraestrutura sanitária e energia e as moradias reconstruídas. A experiência foi bastante interessante, garantindo aos favelados a permanência no seu local, assim como a garantia da posse de suas casas. Mas foi uma obra cara e não replicável. De qualquer forma, percebe-se um novo paradigma de atuação: a permanência dos moradores na favela e intervenções que garantam a melhoria de todo o tecido urbano. A remoção foi primeiramente substituída por permanência temporária e posteriormente pela permanência consentida e a integração do território favelado na malha urbana.  Entretanto, as normas vigentes, que permitiram a urbanização, impediram um maior avanço na regularização fundiária. A proposta de Concessão de Direito Real de Uso da Terra, que permitira a posse do lote pelos favelados não conseguiu ser implementada. Nos anos 1990, o slum upgrading ganha espaço no Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID e no Banco Mundial. Mesmo a nível internacional o paradigma de intervenção em favelas já estava mudando: um extenso programa de regulamentação fundiária acontece no Peru, com apoio do Banco Mundial e sob a inspiração das ideias de De Soto (2000).

Estas conquistas dos favelados não se mantiveram por muito tempo. Com a nomeação de um novo prefeito de perfil conservador (1986-1988), as ações de remoção são retomadas, sobretudo nas áreas nobres. As remoções feitas foram ancoradas na Lei das Operações Interligadas, que permitia a troca do aumento do potencial construtivo de terrenos pela construção de habitação popular, por parceria entre poder publico e privado.

Segundo estágio: a urbanização de favelas.

Já nesta época no Brasil a abertura democrática e o fim da ditadura militar estavam em marcha. Com o fim do governo militar teve inicio o processo de elaboração de uma nova Constituição Federal, que incluiu um capitulo específico estabelecendo os princípios da função social da propriedade, antes absoluta no Brasil. Entretanto, com a democratização houve um esvaziamento da politica habitacional a nível nacional ( o BNH foi extinto em 1986). A Constituição, ao criar o instituto do usucapião urbano, fornece apoio legal à permanência da população em áreas ocupadas, antes inexistente. O texto constitucional é um marco na mudança de paradigma no enfrentamento das favelas. De outro lado, aumentava a mobilização popular e a pressão politica por moradias. A descentralização – reação democrática à excessiva centralidade da politica habitacional vigente até então – tornou o município o principal ator da intervenção habitacional. Mas o marco legal agora já estava mudado, fornecendo brecha para a regularização fundiária.

Na gestão Luiza Erundina (PT, 1989-992) a urbanização de favelas no município foi uma das tônicas da politica habitacional. Governo comprometido com movimentos populares e lutas sindicais definiu linhas de atuação que mostravam esse compromisso. O retrato da cidade, elaborado por seus técnicos, trazia à tona a existência de uma enorme cidade ilegal que abrigava as camadas populares. A segregação urbana surge como item a evitar. Os projetos de urbanização de favela se intensificam, desta vez com participação da população. No caso da reurbanização de favelas paulistanas, a partir de 1990 foram atendidas “26.000 famílias em 50 favelas, com obras de infraestrutura: pavimentação, reparcelamento do solo, água, esgoto, drenagem, abertura de acessos” (SÃO PAULO, 1992, p. 12). Nota-se que as práticas de urbanização de favelas na década de 90 iam além da colocação de infraestrutura: incluíam a construção de escadas e pavimentação. Introduziu-se, na urbanização de favelas, o conceito de risco ambiental para definição da prioridade de intervenção. Trata-se aqui de risco geomorfológico para seus habitantes: desabamento, inundação ou solapamento. A prioridade era urbanizar assentamentos com risco geomorfológico.

Percebe-se que em 10 anos as intervenções em favelas mudaram radicalmente, da remoção e alocação dos favelados em conjuntos públicos, à permanência dos favelados no terreno invadido e melhoria da infraestrutura sanitária e viária, mantendo-se a população nos locais de moradia a conservando-se o investimento já feito nas moradias.

Em 1993, toma posse na Prefeitura do Município de São Paulo outro governo eleito que representa vertente política distinta do anterior. Neste ano pesquisa coordenada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) apontou a crescente porcentagem de unidades de alvenaria nas favelas – cerca de 75%.  O seu perfil mudava, tanto em relação aos aspectos construtivos como econômicos. Nessa pesquisa notou-se o aumento relativo da renda domiciliar nas favelas.

A então gestão municipal não tinha, como na época da prefeita Erundina, nenhum compromisso com movimentos populares. De outro lado, a concepção que favelados eram trabalhadores pobres, com direito à cidade e a serem integrados à vida urbana já tinha se sedimentado. A política habitacional do município concentra-se no PROVER (Projeto de Urbanização de Favelas com Verticalização), comumente chamado de Projeto Cingapura.

O Projeto Cingapura mantém os favelados no mesmo terreno da favela, mas em unidades verticalizadas construídas por empreiteira. Difere, assim, da urbanização de favela do governo anterior ao não aproveitar o tecido urbano já construído pelos favelados e fornecer unidade habitacional acabada e não extensível. Mas mantém os moradores na terra ocupada.

Convém notar que em duas décadas o paradigma normativo – expulsão dos invasores da terra ocupada ilegalmente e sua remoção para conjuntos habitacionais na periferia da cidade- foi se modificando, através de uma prática que foi se aperfeiçoando, criando uma nova cultura de intervenção com apoio da sociedade e mesmo de organismos internacionais. Esta prática foi referendada por novas leis, fornecendo seu arcabouço legal[2]. Embora partidos de esquerda liguem as práticas de urbanização à pressão dos movimentos populares, é digno de nota que mesmo governos conservadores, provavelmente movidos pela convicção de que o tamanho da população favelada era enorme e os recursos disponíveis poucos, entenderam que seria mais adequado integrar, de alguma forma, a favela ao tecido urbano e garantir condições mínimas de salubridade aos seus moradores. Passou-se de uma lógica puramente operacional para normas institucionais que acabaram por referendar o paradigma pragmático anterior, fornecendo justificativa legal. Em relação à ética, conseguiu-se melhorar as condições de vida de um grande segmento populacional, manter os investimentos já feitos em suas moradias, respeitando sua cultura e não impondo padrões, e foi ampliada a inclusão social.

Terceiro estágio: os caminhos para a regularização da cidade ilegal.

Na gestão que se seguiu, de Marta Suplicy, então no PT (2001-2004) foram retomados os programas de urbanização e regularização das favelas. O Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo (2004-2012) é promulgado e previa instrumentos urbanísticos como as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), áreas destinadas à habitação social, onde normas mais flexíveis de organização do território e das unidades permitiriam regularização de áreas urbanas distintas das áreas formais da cidade.  Diferentemente da gestão PT 1989-1991, onde as experiências de urbanização voltaram-se principalmente para o saneamento básico, o programa implementado, o Bairro Legal, pretendia uma intervenção mais abrangente, que considerasse de forma integrada a qualificação urbana, a regularização fundiária, o acesso a serviços e equipamentos públicos e áreas verdes, juntamente com programas sociais. Paralelamente, o programa de Provisão de Habitação Social (PROVER), herdado das gestões anteriores, foi mantido, com a construção de prédios de moradia em áreas previamente ocupadas para população que necessitava de realojamento, ou por causa de obras de urbanização que necessitava de mais área e, portanto, de demolição de unidades habitacionais construídas, ou por moradia em áreas de risco ambiental.

Deve ser lembrado que os paradigmas de intervenção em favelas já estavam mudados mesmo a nível federal.  Em meados dos anos 90, o programa federal Habitar Brasil (1994) já enfatizava, baseado na Constituição de 1988, questões como o direito à moradia, o reconhecimento da cidade ilegal, a urbanização e a regularização da posse da terra para garantir a permanência da família em áreas invadidas. O programa, embora de pequena abrangência, teve o mérito de reabrir a agenda nacional para a urbanização de favelas e originou o Programa Habitar Brasil/BID, voltado ao atendimento da população pobre. O intuito deste último era capacitar as prefeituras para implantação de politica habitacional. No ano 2000, a moradia é reconhecida no Brasil como um direito social. Em 2001, a aprovação do Estatuto da Cidade marca a regulamentação dos artigos 182 e 183 da Constituição Federal, relativos à politica urbana e ao direito social da propriedade.  O Estatuto da Cidade introduz, a nível federal, instrumentos urbanísticos de regularização de áreas ilegais (ZEIS, tal como já existiam em alguns municípios brasileiros) e consagra o município como condutor principal da politica urbana. Os instrumentos urbanísticos agora a nível federal dão aos assentamentos favelados perspectiva de urbanização plena, ou seja, não apenas regularização urbanística, mas também fundiária, com usufruto de posse e propriedade.

Com a eleição de prefeito novamente de outro partido politico em 2005-2009 (PSBD e posteriormente DEM), a política habitacional apresenta algumas descontinuidades, com relativo abandono dos projetos de levar a população pobre ao centro (Morar no Centro, Locação Social, bolsa aluguel, PAR-Programa de Arrendamento Residencial) e continuação da ênfase na urbanização de favelas. Cymbalista (2007) comenta que a gestão Marta direcionava recursos para colocara população em área já infraestruturada, enquanto que as gestões Serra/Kassab direcionavam recursos para levar infraestrutura para população em áreas carentes dela. As gestões municipais entre 2005 e 2012 (Serra, PSDB, Kassab, DEM), enfatizaram a atuação na urbanização de favelas. Entretanto, sua forma de atuação diferia da gestão anterior, onde predominavam intervenções mais estruturadas, onde além da colocação de infraestrutura sanitária abriam-se espaços públicos, quadras de esporte, praças, etc., sendo necessárias mais remoções, mas deixando o tecido urbano menos precário. O padrão de intervenção das gestões 2005-2012 previa o mínimo possível de remoções e o máximo possível da manutenção da estrutura urbana anterior, reduzindo o custo e permitindo, assim, o atendimento de maior parcela da população. Com isso, a favela continuaria com tecido urbano mais denso, com menos equipamento, sem previsão de parques ou quadras esportivas. Foram colocados prioritariamente apenas equipamentos básicos de saneamento, pavimentação de acessos e escadas. As ruas projetadas foram mais estreitas que nas intervenções da gestão Marta e não foram previstos terrenos para uso comunitário ou comercial. Em relação à regularização fundiária, o processo foi continuado, com regularização de 115 mil unidades (sendo que 63 mil unidades habitacionais eram de antigos conjuntos públicos ainda irregulares). A prática continuou, agora com amparo institucional. Socialmente e legalmente a favela antes ilegal se integra ao tecido urbano. Os assentamentos precários, antes ignorados pelas politicas publicas, passam a estarem presentes em mapas e cadastros.

Percebe-se que cada vez mais governos nos diferentes níveis – municipal, estadual e federal – concordam com a possibilidade de regularização urbanística e fundiária da favela.  Em 2007, o governo federal lançou o Programa de Aceleração do Crescimento, que, além de obras como estradas e portos, implementou obras de saneamento e mobilidade urbana, a divididas em quatro grandes áreas: (1) logística, (2) energia, (3) social e urbano e (4) habitação e saneamento. Desde seu início, a intervenção em favelas foi indicada como um Projeto Prioritário de Investimento (PPI). Foram definidas duas ações principais: “apoio a empreendimentos de Saneamento Integrado em Assentamentos Precários em Municípios de Regiões Metropolitanas, de Regiões Integradas de Desenvolvimento Econômico ou municípios com mais de 150 mil habitantes; (…) e apoio à urbanização de assentamentos precários.” (BRASIL, 2007, p. 3 – grifo nosso). Esta foi a primeira vez em que o governo federal destinou um grande volume de recursos para urbanizar favelas. A urbanização de favelas passa a incluir obras básicas de saneamento e infraestrutura, a execução de obras complementares em áreas que já sofreram intervenções anteriores e também intervenções em áreas de risco ou com restrições ambientais, como as áreas de manancial.

O PAC 1 foi responsável pela realização de 621 operações que beneficiaram 1,24 milhão de famílias, totalizando R$ 16,8 bilhão investidos (Brasil, 2010). Obras como a urbanização integrada de Favelas nas Represas Billings e Guarapiranga, que incluiu a recuperação ambiental dos mananciais, a ordenação urbanística do Complexo do Alemão, que inclui obras de mobilidade e construção de novas moradias, e a urbanização integrada da Bacia do rio Beberibe, com remoção de palafitas e construção de 5.070 unidades habitacionais, são algumas das intervenções financiadas pelo PAC – Urbanização de Assentamentos Precários (ver BRASIL, 2010).

Com o PAC as politicas de intervenção em favelas deixaram de ser apenas de responsabilidade dos municípios, passando a serem viabilizadas através de parcerias entre os governos locais e o governo federal, com grande aporte de verba por parte do governo federal (D’OTTAVIANO & PASTERNAK, 2015).

Paralelamente ao PAC, o governo federal, procurando mitigar os efeitos internos da crise econômica de 2008, lançou um ambicioso programa de construção de moradias para famílias com até 10 salários mínimos. Com isso pretendia estimular o setor da construção, tradicional provedor de empregos e dinamizar a produção habitacional. O programa Minha Casa, Minha Vida foi publicado no Diário Oficial da União a 26 de março de 2009, com a Medida Provisória nº 459, entrando em vigor a 14 de abril de 2009. Em junho de 2009, foi substituído pela Lei nº 11.977. A lei, além de instaurar normas para financiamento da construção de unidades habitacionais, no seu capítulo III dispõe sobre medidas sobre regularização fundiária de assentamentos urbanos. Define o que chama de legitimação de posse, ou seja, título de reconhecimento de posse de imóvel objeto de demarcação urbanística (definição de limites e área de imóvel); assentamentos irregulares: ocupação inscrita em parcelamentos informais ou irregulares, localizadas em áreas públicas ou privadas, utilizadas predominantemente para moradias; regularização fundiária de interesse social: regularização fundiária de assentamentos irregulares ocupados, predominantemente por população de baixa renda, nos casos de preenchimento dos requisitos de usucapião ou concessão de uso especial para fins de moradia, de imóveis situados em ZEIS ou em áreas declaradas de interesse público.

Novamente prática e lei se contrapõe: a Lei 11.977 reconhece o poder do município em regularizar assentamentos em áreas de preservação permanente (APP), ocupadas até 31/12/2007 e inseridas em área urbana consolidada, desde que estudo comprove que esta intervenção melhore as condições ambientais em relação à ocupação anterior. Está colocado um conflito entre a visão “preservacionista” e ambientalista e a regularização das favelas. Preservar cursos d’água e parques, ou garantir direito à moradia? O que significa “a intervenção melhorar as condições ambientais?” Melhorar para quem? Para o grupo específico, ou para a cidade como um todo? Até então, favelas localizadas em APP (margens de córrego, local de proteção de matas ciliares, por exemplo) não podiam ser regularizadas, pela legislação ambiental. Passa então a existir uma brecha para tal.

O governo Haddad (2012-2016), do Partido dos Trabalhadores, prosseguiu a politica anterior, de urbanização de favelas, com uma meta de atender 70 mil famílias. Ao final do governo, em dezembro de 2016, tinha atendido 49 mil. De outro lado, 200 mil famílias conseguiram ter seus imóveis regularizados.

Da Prática à Política.

O caso das favelas é paradigmático, pois as áreas faveladas são áreas irregulares tanto do ponto de vista fundiário quanto do ponto de vista da construção das moradias ali presentes. Devido a sua total irregularidade são áreas onde o poder público não poderia, a principio, atuar oficialmente. Porém o intenso crescimento das favelas brasileiras ao longo de toda a segunda metade do século XX fez com que o poder público passasse atuar nessas áreas, tanto  devido à precariedade habitacional, como também à problemas relacionados à questão sanitária e de saúde pública. Projetos pontuais de intervenção em favelas, com a construção de redes de infraestrutura e obras de acessibilidade, se tornaram a regra primeiramente a nível local, e depois também a nível federal.

A partir do final dos anos 1980 e durante todos os anos 1990 as intervenções em favelas e mesmo nas redes de infraestrutura dependeram do empreendedorismo das administrações municipais, que contavam pouco com apoio ou verbas federais. Algumas cidades como Recife (PREZEIS, de 1987), Rio de Janeiro (Favela Bairro, inicio em 1993) e São Paulo (gestão Luiza Erundina, 1989-1993) implantaram políticas locais de intervenção em áreas de favela e de assentamentos irregulares. Porém muitos dos projetos esbarraram na falta de verbas ou de restrições legais, como a regularização fundiária.

Nos anos 1990, os programas de urbanização começam a ser incorporados de forma oficial como objeto da política pública nas diversas esferas de governo. Neste momento predominam intervenções pontuais e projetos de urbanização gradual.

Os anos 2000 trouxeram dois marcos importantes para a gestão urbana brasileira: a aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001, e a criação do Ministério das Cidades, em 2003. Com o Estatuto da Cidade questões normativas para a garantia da permanência da população favelada em suas moradias foram regulamentadas. Instrumentos como a CUEM (concessão de uso especial para fins de moradia) e o usucapião urbano ou coletivo representaram importantes avanços para a população moradora de assentamentos irregulares. O Estatuto da Cidade, aprovado em 2001, quase 50 anos depois das primeiras intervenções em favela no Rio de Janeiro e 20 anos após os primeiros programas de urbanização de favelas em São Paulo, consolidou do ponto de vista legal o direito à permanência nas favelas da população residente, mesmo que sendo essas áreas sem parcelamento legal ou posse reconhecida oficialmente.

O PAC-Urbanização de Favelas destinou pela primeira vez um grande volume de recursos para intervenção em áreas de favelas, independe da regularidade jurídica das áreas ou moradias. A evolução do pensamento e atuação nas favelas brasileiras e paulistanas mostra a mudança de paradigma: de como uma prática foi sendo aceita e virando lei. Atualmente, a prática continua foco de discussão, desta vez com ambientalistas, que criticam a permanência de assentamentos precários em áreas de preservação, se forem anteriores a 2007 e se com a urbanização as condições ambientais tornarem-se melhores.

De qualquer forma, deve ser lembrado que o adensamento cada vez maior observado nos assentamentos existentes, geralmente associado à verticalização, traz um agravamento das condições de insalubridade. Samora (2009, p. 28) nota que a área ocupada pelas favelas em São Paulo em 2003 e 2008 era praticamente a mesma, com população bem maior. Melhorias na infraestrutura e a certeza da permanência resultaram num alto adensamento. Além disso, as moradias faveladas são, em geral, autoconstruídas, de forma bastante rudimentar. Apesar da visão “romântica” da favela como ambiente criativo, as técnicas e materiais são tradicionais e não raro precários. E, por estar em permanente construção, a unidade habitacional apresenta lajes sem proteção e paredes sem revestimento, com infiltrações e problemas de conforto térmico e acústico. Quaisquer que sejam os parâmetros para a moradia adequada, a casa favelada raramente os obedecem. Segundo Coelho (2017), numa pesquisa na favela de Heliópolis foi feito um estudo de insolação, para que cada moradia recebesse no mínimo 1 hora de sol durante o solstício de inverno. Percebeu-se que 35% das unidades pesquisadas não obedeciam a isto. Para que se enquadrassem seria necessário um desadensamento de 1.207,5 hab/ha para 772,50 hab/ha, o que implicaria em grande remoção. O adensamento excessivo traz, entre diversos problemas, umidade, fungos e ácaros. Problemas de segurança são também comuns em casas faveladas: num hospital da zona sul de São Paulo verificou-se que quedas de lajes (por falta de grade de contenção) foram responsáveis por 23% dos casos hospitalares de traumatismo da coluna vertebral.

Críticos dos atuais processos de urbanização e regularização comentam que se está legalizando tecidos urbanos e unidade de moradia totalmente fora de normas sanitárias. Coelho (2017, p. 174) exemplifica com o caso da favela das Nações, em Diadema, na região metropolitana de São Paulo: é uma favela já urbanizada, com incidência de dengue de 29,18 casos por 1000 habitantes, quando no município de Diadema como um todo a incidência entre 2007 e 2012 foi de 1,73 casos por 1000 habitantes. No caso da leptospirose, no município a incidência para o período foi de 0,16, enquanto que na favela chegou a 7,97 casos por 1000 habitantes. Mesmo a urbanização não conduziu à melhora sanitária esperada. Há muito o que fazer ainda. Há coisas ilegais (como eram as favelas) que fazem algum sentido num pais como o Brasil. Há coisas legais (como a remoção), mas que não fazem nenhum sentido. E há coisas ilegais e sem sentido, como não garantir um mínimo de salubridade e de condições de sobrevivência.

Mas a permanência dos favelados no local da invasão e sua titulação, sempre que possível individual, tem sido efetivada. As favelas, embora com tecido urbano distinto da “cidade formal”, agora integram os mapas das cidades brasileiras e as estatísticas públicas oficiais.

Referências Bibliográficas

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[1] Para efeito deste artigo, aglomerado subnormal é usado como proxy de favela.

[2] A experiência do Plano de Regularização das Zonas Especiais de Interesse (Prezeis) em Recife, nos anos 1980, pode ser vista como pioneira em todo o processo de regularização fundiária brasileiras e também na criação de uma normatização especifica para subsidiar o projeto.

Como citar (ABNT): PASTERNAK, Suzana e D’OTTAVIANO, Maria Camila Loffredo. Paradoxes of the intervention policy in favelas in São Paulo: how the practice turned our the policy. The Routledge handbook of institutions and planning in action. Tradução. New York: Routledge, 2018.