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No Brasil, há leis que pegam e leis que não pegam, como gosta de lembrar a urbanista Ermínia Maricato. Via de regra, funcionam, e muito bem, as que favorecem os grupos dominantes, enquanto são esquecidas no fundo do baú as que possam ter algum potencial de enfrentamento das nossas desigualdades e, assim, favorecer os mais pobres. Leia o artigo de João Whitaker sobre a Cota de Solidariedade em São Paulo no blog observaSP.

blog observaSP é uma iniciativa do LabCidade (FAU/USP) com o objetivo de monitorar e influenciar políticas urbanas municipais, com foco na função social da propriedade, inclusão socioterritorial da população de baixa renda e ampliação do acesso aos serviços urbanos. Coordenado por Paula Santoro e Raquel Rolnik, o observaSP irá monitorar os desdobramentos do novo Plano Diretor Estratégico de São Paulo e a implementação da Operação Urbana Consorciada Água Branca.

A iniciativa do observaSP integra o projeto de pesquisa “Estratégias e instrumentos de planejamento e regulação urbanística voltados à implementação do direito à moradia e à cidade no Brasil”, com financiamento da Fundação Ford. O INCT Observatório das Metrópoles participa do projeto com estudos de caso no Rio de Janeiro, coordenado pelo professor Orlando Alves dos Santos Jr., e em Fortaleza, coordenado pelo professor Renato Pequeno.

A seguir o texto do professor João Whitaker sobre a Cota de Solidariedade em São Paulo.

 

O patrimonialismo e as leis facultativas: o caso da Cota de Solidariedade em SP

Por João Whitaker*

No Brasil, há leis que pegam e leis que não pegam, como gosta de lembrar a urbanista Ermínia Maricato. Via de regra, funcionam, e muito bem, as que favorecem os grupos dominantes, enquanto são esquecidas no fundo do baú as que possam ter algum potencial de enfrentamento das nossas desigualdades e, assim, favorecer os mais pobres.

Um dos exemplos mais simbólicos é sobre o tratamento dado à proteção da propriedade em detrimento do direito básico à moradia (art. 6 da Constituição Federal). Um edifício vazio, portanto ilegal constitucionalmente por não cumprir sua função social, é ocupado pelos sem-teto, e bastam poucas horas para que um juiz qualquer, que desconhece as leis de seu país, determine a imediata reintegração de posse, com violência contra famílias e crianças, se necessário.

Em compensação, nunca se viu a polícia incomodar, por ordem judicial, os shopping centers, mansões na Serra do Mar e outros Alphavilles que ocupam alegremente e impunemente áreas públicas, da União, estaduais ou municipais. A lei, no Brasil, é um tanto quanto maleável, e isso é um dos reflexos mais claros do que se denomina de Estado e sociedade patrimonialistas, em que o público não é bem público, e a máquina “pública” mais serve, na verdade, para manter as hegemonias dominantes.

No caso do novo Plano Diretor de São Paulo, tivemos um outro exemplo de como as leis “se adaptam”, caso  ameacem os poderes constituídos, para evitar que sejam aplicadas em seu sentido original. É a tal “Cota de Solidariedade”, que gerou uma figura jurídica interessante, que o urbanista Flávio Villaça chama, com precisão, de “lei facultativa”. Faculta-se a obrigação de sua aplicação. Lei deveria ser lei, ou seja, cumprida. Mas, no Brasil, as leis volta e meia são facultativas. Cumpra-a se quiser. Ou opte por algumas das alternativas que a própria lei lhe oferece para não ser efetivamente cumprida.

A ideia inicial da cota, que eu havia chamado em texto no meu blog de “lei da solidariedade urbana paulistana”, é inspirada em democracias que não têm nada de “bolivarianas”, como as de quase todos os países europeus: na França, a Lei da Solidariedade e Renovação Urbana obriga que todo e qualquer município do país tenha, de seu total de unidades habitacionais, no mínimo 20% destinadas à habitação social. Na Espanha, qualquer transformação urbana de maior porte tem que destinar área e construir uma porcentagem de HIS, e por aí vai.

Assim, o princípio da lei é bastante simples: um dos aspectos mais perversos da nossa urbanização segregadora é sempre relegar os mais pobres ao exílio de uma periferia distante. O alto preço da terra nas áreas que vergonhosamente chamamos de “nobres” e a subordinação histórica do poder público à ocupação privada do território impedem que se faça habitação social em áreas mais próximas. Assim, o direito de morar perto do trabalho, no Brasil, é possibilitado apenas àqueles que puderem pagar por isso. Aos mais pobres, jamais, até mesmo porque a classe dominante não gosta de tê-los por perto. Com isso, acentua-se aquilo que os urbanistas chamam de pendularidade, ou seja, a necessidade pouco eficaz, do ponto de vista econômico, de baldear diariamente milhões de trabalhadores pobres de suas casas nas periferias para seus distantes empregos.

Uma das maneiras de se enfrentar esse perverso cenário seria começar a criar formas de o Poder Público obter terrenos nas ditas áreas nobres, onde pudesse construir habitações sociais para os mais pobres. Sobretudo em grandes empreendimentos, como os que pulularam em São Paulo durante a (não) gestão passada, em que toda aprovação era aparentemente concedida mediante o pagamento de uns bons trocados. Esses grandes empreendimentos, como se tem na Barra Funda ou na Moóca, constroem dezenas de torres em miniclubes privativos que oferecem a seus afortunados clientes a tão almejada “exclusividade”: piscinas, spas, comércio de conveniência, quadras de esporte. Ou seja, para cada um desses empreendimentos, pode-se contar milhares de trabalhadores que serão atraídos pelos empregos ali oferecidos: atendentes, seguranças, jardineiros, trabalhadores domésticos, faxineiros etc. Toda uma população que terá que deslocar-se por horas, acentuando a tal pendularidade entre casa e trabalho, amontoada em transportes coletivos saturados.

Daí a ideia da Cota de Solidariedade: dar 10% da área do empreendimento para a Prefeitura, a fim de produzir ali HIS destinada justamente a essa população. Trata-se de minimizar o impacto urbano do próprio empreendimento, garantindo o bem mais difícil de se obter, a TERRA em área “nobre” para a população trabalhadora mais pobre, e não compensações em dinheiro ou coisa que o valha, democratizando a cidade já na origem do processo de urbanização. Que os mais liberais se acalmem, os “pobres” empreendedores nada perdem com isso, pois ficam liberados de pagar outorga onerosa sobre 10% do que constroem.

Ou seja, oferecer outra coisa do que terra mudaria completamente o caráter do instrumento. Seu enorme interesse, e o ponto no qual ele é realmente inovador, é o fato de permitir a obtenção direta, e sem intermediação monetária, de terra para construção em áreas valorizadas. O segundo princípio é que essa terra, por ser no empreendimento, é de fato próxima ao polo gerador de empregos. No momento de reflexão sobre a elaboração da lei, em diálogo com o próprio Prefeito, aventou-se a possibilidade de o empreendedor, em vez de dar parte do seu terreno, comprar área equivalente na cercania próxima. Poderia ser, mas em um raio limitado de distância, por exemplo, de uns 500 metros.

Leia o texto completo no blog observaSP.

* João Whitaker é professor nos cursos de graduação e pós-graduação da FAUUSP e da graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie-SP. Coordena o Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LabHab) da FAUUSP.

Última modificação em 14-01-2015