Skip to main content

Em junho de 2013 surgiu a Ocupação Izidora, um conjunto de assentamentos urbanos formados na região norte de Belo Horizonte. Desde então, a capital mineira passou a ser palco de um dos maiores conflitos territoriais urbanos do país, já que cerca de 30 mil pessoas lutam para não serem despejadas e terem suas casas destruídas. Para debater o tema, o INCT Observatório das Metrópoles divulga a dissertação “O Caso Izidora: as Ocupações Urbanas e a reprodução do espaço em Belo Horizonte”, de autoria de Guilherme de Abreu Basto Lima Rodrigues. O estudo mostra como a Prefeitura passou a travar uma batalha para o “despejo negociado” a fim de viabilizar a introdução das terras ocupadas da Izidora no circuito de valorização do capital através da renda fundiária. É o Estado brasileiro assumindo a função de agente mediador de interesses privados relacionados à regularização da terra urbana.

A dissertação “O Caso Izidora: as Ocupações Urbanas e a reprodução do espaço em Belo Horizonte”, de autoria do pesquisador Guilherme de Abreu Basto Lima Rodrigues, é mais um resultado da Rede INCT Observatório das Metrópoles. O trabalho foi defendido em 2016 no âmbito do programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e contou com a orientação Drª Jupira Gomes de Mendonça, coordenadora do Núcleo Belo Horizonte da nossa rede de pesquisa.

Segundo Guilherme de Abreu B. L. Rodrigues, o trabalho tem como foco investigar o papel que as ocupações urbanas assume na reprodução do espaço, sendo que o recorte é o caso Izidora. “Nas ocupações urbanas, vemos a terra virar alvo da disputa entre os institutos que visam viabilizar e garantir a renda da terra, de um lado, e o povo, até então, sem teto, outro”, aponta o pesquisador.

De acordo com o estudo,  as Ocupações da Izidora são um conjunto de assentamentos urbanos iniciados em Junho de 2013 — formadas por 3 vilas interligadas (Esperança, Rosa Leão e Vitória) e tem cerca de 30 mil pessoas. A ocupação agrega algumas características particulares: trata-se de uma forma semi-espontânea de produção do espaço, alheia, no primeiro momento, à direção tanto do Estado, quanto do Movimento Popular organizado. Apenas em um segundo momento, as Brigadas Populares, o Movimento de Luta em Vilas Bairros e Favelas (MLB) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) começaram a atuar no local.

De acordo com o pesquisador, outra característica do processo foi a construção de uma ampla rede de apoio, influente sobre diversos setores sociais, que se somaram à resistência e impediram um despejo que, em vários momentos, esteve em vias de acontecer. “A criação da rede #resisteIzidora potencializou e canalizou diversos fluxos de solidariedade que formaram um verdadeiro escudo humano – literalmente em alguns momentos – capaz de impor grande custo político ao despejo e forçar o Estado a recuar e voltar a negociar a viabilidade de permanência dos e das ocupantes. Nesse caso, observamos claramente um novo fazer espacial viabilizado na medida em que múltiplos apoios são conquistados”, afirma o autor da pesquisa.

O estudo descreve ainda que as negociações em curso mediadas pelo Estado e os Poderes Constituídos (Judiciário e Legislativo), sendo grande a pressão para o despejo, que abriria terreno para o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) no local. “Esse fato ilustra como, em última instância, é o nó da terra que ativa a contradição entre o autoprovimento de moradias e o PMCMV. É fundamental compreender a questão fundiária a partir desse nó”, sugere Guilherme Rodrigues.

O NÓ DA TERRA — A QUESTÃO FUNDIÁRIA

“Com a expressão nó da terra fazemos referência ao fato de que a contradição central entre capital e trabalho se expressa territorialmente e constitui o centro do debate das disputas fundiárias. Cabe ressaltar aqui que o problema da terra, especialmente nas grandes cidades não é a sua falta, como muitas vezes é colocado pelos ocupantes de cargos públicos; mas o conjunto de relações que articulam o movimento de valorização do capital e ativam engenhosos estratagemas de lucratividade através de discurso da escassez fundiária urbana”, afirma Guilherme Rodrigues.

Segundo ele, o Caso Izidora constitui um claro exemplo de movimento espacial que nasce e cresce em meio ao embate entre frações do mundo do capital e do trabalho e tem como eixo de mediação previamente enviesada o Estado. As hipóteses da pesquisa dizem respeito à maneira como os movimentos de capital – e sua recente adequação aos novos esquemas financeiro-rentistas do mercado brasileiro – em direção à valorização imobiliária na região da Izidora esbarram no bloqueio que as Ocupações Urbanas impõem à extração da renda fundiária.

“Surge, pois nossa primeira hipótese: o Empreendimento Granja Werneck, sob a responsabilidade da incorporadora Direcional e articulado no plano do Programa Minha Casa, Minha Vida consiste em um arranjo que visa a promover um despejo negociado que viabilize a introdução das terras ocupadas na Izidora no circuito de valorização do capital através da renda fundiária”.

MERCADO IMOBILIÁRIO — A SOLUÇÃO DADA PELO ESTADO

A segunda hipótese se insere no âmbito da fabricação da legalidade jurídica, e coloca as Ocupações Urbanas realizadas em 2013 na Izidora como o evento responsável pela elaboração da Lei No 10.705/2014, na qual é aberto espaço legal para investimentos empresariais residenciais de grande porte na área. De acordo com o pesquisador, essa lei foi em um primeiro momento pensada como o Projeto de Lei No 859, entregue à Câmara de Vereadores pelo Prefeito de Belo Horizonte em Outubro de 2013, poucos meses depois do território ser ocupado.

Trata-se de um processo já bastante avançado e que conta com a aproximação entre os agentes que se reivindicam proprietários do terreno (a família Werneck) e a empresa incorporadora (Direcional S.A) e se expressa na assinatura de um contrato. Em seu conteúdo, está previsto o Empreendimento Granja Werneck, que, inscrito no âmbito do Programa Minha Casa, Minha Vida, envolve a Caixa Econômica Federal, operadora e fiadora do processo.

“Esse quadro responde a questão das forças sociais que definem o conflito no Caso Izidora. Basicamente, temos forças sociais contraditórias que expressam a disputa pela terra. A secular e poderosa família Werneck reivindica a propriedade do terreno; no transcurso da consolidação da nova dinâmica imobiliária brasileira, os Werneck se associam (conforme um funcionário da Prefeitura de Belo Horizonte em entrevista) a Direcional SA, empresa incorporadora. Essa aliança é celebrada pelo Estado: no plano de suas funções do chamado Poder Executivo, com o alinhamento dos entes municipais-estaduais-federal em um bloco político; nas sentenças de reintegração de posse prontamente ordenadas pelo chamado Poder Judiciário; e nas leis que o Legislativo fabrica para resguardar a validade jurídica da propriedade e o imperativo do lucro sobre a vida digna dos ocupantes”, afirma Guilherme de Abreu B. L. Rodrigues.

“É a partir desse registro que se constroem as ofensivas do consórcio Estado-Capital imobiliário/incorporador contra os territórios ocupados. Empregam-se formas jurídicas como a Operação Urbana Consorciada, onde verbas públicas rendem lucros privados, para que a terra seja libertada dos ocupantes e garanta o acesso do rentismo.

ENTREVISTA

Guilherme de Abreu Basto Lima Rodrigues

— Podemos afirmar que as duas hipóteses levantadas pela pesquisa foram confirmadas? “Surge, pois nossa primeira hipótese: o Empreendimento Granja Werneck, sob a responsabilidade da incorporadora Direcional e articulado no plano do Programa Minha Casa, Minha Vida consiste em um arranjo que visa a promover um despejo negociado que viabilize a introdução das terras ocupadas na Izidora no circuito de valorização do capital através da renda fundiária”.

Guilherme. A primeira hipótese assume o risco de apontar o provável desfecho de um processo cujos desdobramentos ainda não se esgotaram. Nesse sentido, estando aberto o processo, ainda não houve tempo para se confirmar. Resta saber como o novo consórcio de poder que ocupa a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH)hoje vai responder às pressões das forças sociais que representam os interesses majoritários do capital imobiliário/financeiro. essa é a questão-chave, porque, em última instância, é a PBH que operacionaliza a articulação do poder local.

— A segunda hipótese se insere no âmbito da fabricação da legalidade jurídica, e coloca as Ocupações Urbanas realizadas em 2013 na Izidora como o evento responsável pela elaboração da Lei No 10.705/2014, na qual é aberto espaço legal para investimentos empresariais residenciais de grande porte na área.

Guilherme. Em relação à segunda hipótese, não consegui recolher material empírico suficiente para comprová-la nos termos do maior rigor científico possível. O encadeamento dos fatos, a lógica que subjaz, tudo se encaixa perfeitamente; mas acredito que ficou faltando aquele depoimento de alguém próximo, um insider dos corredores do poder, que falasse: “realmente foi isso mesmo”. Embora o projeto de lei apresente a intenção em termos claros, faltou esse depoimento. Os bastidores dos poderes constituídos foram blindados.

— O Observatório das Metrópoles vem apontando para um processo de intervenção do Estado brasileiro em benefício aos interesses privados. Ou seja, o Estado atua como ente mediador para a iniciativa privada. O debate entorno da Ocupação Izidora confirma esse processo?

Guilherme. Totalmente. Penso que, inclusive, precisamos atualizar a forma como lemos o Estado, ressaltando como é mais fictícia do que real a separação entre o que se chama de público e privado. Um exemplo é como metade do orçamento da União é ‘sequestrado’ anualmente para a rolagem dos juros da dívida ‘pública’, em prol do capital rentista – que se articula via setor imobiliário. Essa é uma prerrogativa que, entra governo e sai governo, ninguém sequer questiona. Precisamos, dentro dos estudos urbanos, desvendar esses mecanismos, sua forma de operar.

— O perfil do ex-Prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda, que era um empresário, pode ter influenciado a sua proposta de resolução para a questão?

Guilherme. Sem dúvida, pois trata-se de uma pessoa indisposta ao diálogo com as Ocupações e muito próxima dos setores empresariais.

— Na tua investigação os outros Poderes (Judiciário e Legislativo) também atuaram para viabilizar uma solução em prol da renda fundiária? Se sim, como você vê isso?

Guilherme. A separação entre os poderes, da forma como é colocada pela literatura clássica na Ciência Política, é outro mito totalmente apartado da realidade. Vemos, por exemplo, como no desenrolar desse Golpe de Estado que estamos presenciando, Judiciário e Legislativo conformam uma base institucional para frear um Executivo menos palatável pelas classes dirigentes. No caso das Ocupações, o Judiciário sempre se mostra como a salvaguarda da ilegalidade quando ela é praticada por gente com interlocuções no mundo do poder. O Deputado Hugo Weneck recebeu de presente a Granja, construiu o Sanatório e, depois da legislação proibindo esse empreendimento no Brasil, o que é feito? Mantém-se a propriedade da terra para seus herdeiros, quando o certo era que se tornassem públicas novamente, já que a finalidade para qual foram doadas foi extinta. E o que chamamos de poderes constituídos, através do estado, confluem para resolver as contradições fundiárias em prol dos já estabelecidos.

— Como a população de Belo Horizonte se posicionou em relação à Ocupação Izidora? Qual foi a sua impressão? Tanto em relação ao movimento #resisteizidora quanto a população contrária?

Guilherme. Os amigos e amigas da justiça, pessoas de boa vontade, cidadãos conscientes, geralmente são sensíveis à causa dos Sem-Teto, e se mobilizaram para tal, apoiando as marchas do movimento e se reunindo em suas associações – com destaque para os estudante da UFMG e a classe artística. Há também aqueles que são contrários, se posicionam de forma mais raivosa em defesa da garantia abstrata da propriedade, mesmo que ela não cumpra sua função social. Mas esses geralmente expressam suas vontades em comentários de internet ou em foros privados; não houve uma manifestação pública anti-ocupações de terra que eu tenha ouvido falar, em Belo Horizonte ou em qualquer outra cidade brasileira.

— Já ocorreu alguma solução final para o caso?

Guilherme. O Caso Izidora segue em aberto e poucos se arriscam a vislumbrar um desfecho. No fim, tudo depende da capacidade do movimento de aumentar o custo político do desejo. Não creio na ‘solução’ violenta, que já foi tentada e derrotada; mas no chamado despejo brando, negociado. A pressão é muito forte e vem de diversos setores, mas o  futuro não está escrito. Sempre há possibilidade de reviravoltas.

***Entrevista realizada por Breno Procópio, jornalista da Rede INCT Observatório das Metrópoles.

Leia também:

MP 759 e a ofensiva conservadora-liberal: a desconstrução da Regularização fundiária no Brasil

“Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças”

Conheça também o Movimento #resisteizadora


 

Última modificação em 15-03-2017 14:49:54