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Patricinhas, funkeiros e emergentes da Barra. São personagens emblemáticos do Rio de Janeiro, cuja convivência é marcada por antagonismos. Como analisa o livro Cidade: olhares e trajetórias, organizado por Sandra Carneiro e Maria Josefina Sant’ Anna.
Falar sobre o Rio de Janeiro é abordar uma das inúmeras questões que a cidade suscita. Nela, transitam personagens emblemáticos, que vão de patricinhas e mauricinhos a funkeiros, favelados, milicianos, passando pelos emergentes da Barra. Longe de uma imagem única da tão falada “cordialidade carioca”, o universo urbano do Rio é permeado por diferenças, antagonismos e conflitos. Essa heterogeneidade, própria das grandes metrópoles, está presente nos vários artigos que compõem o livro Cidade: olhares e trajetórias, organizado por Sandra de Sá Carneiro e Maria Josefina Gabriel Sant’ Anna, e publicado com recursos do programa Auxílio à Editoração, da FAPERJ.

O livro é resultado das conferências e palestras que marcaram as comemorações, em 2006, dos 25 anos do curso de especialização em Sociologia Urbana, do Departamento de Ciências Sociais, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Nele, sociólogos, economistas, geógrafos, antropólogos e diversos pesquisadores de formações distintas expõem aspectos particulares da chamada “Cidade Maravilhosa”.

Dividido em quatro partes – Classes populares urbanas, territórios, identidades, urbanização e reestruturação espacial; Habitação, segregação social e fronteiras simbólicas; Espaço urbano, formas de sociabilidades e deslocamentos; e Cotidiano, cultura e política –, Cidade: olhares e trajetórias traz uma reflexão coletiva sobre o Rio de Janeiro. Nele, 21 artigos procuram dar conta da heterogeneidade da metrópole em que se transformou o Rio de Janeiro, não apenas do ponto de vista de seus vários personagens, mas do universo tecido pelas diferenças entre eles, das relações nem sempre amistosas dessa convivência, e dos conflitos que os movem.

“Em primeiro lugar é preciso destacar o imenso leque de questões que a cidade desperta, entre seus habitantes e os estudiosos de seus problemas e virtudes. Em segundo lugar, deve-se estar atento às novas clivagens sociais que surgem e numa configuração urbana atualmente marcada pela interação perversa dos circuitos da pobreza e da violência”, falam as organizadoras, Maria Josefina e Sandra de Sá Carneiro. Elas lembram ainda que “a proximidade territorial não garante a interação entre grupos sociais localizados em posições distantes do espaço social”. Em outras palavras, a vizinhança não elimina as relações de dominação existentes entre os moradores que vivem próximos.

Um dos artigos aborda justamente esse aspecto, ao se deter sobre os moradores da Cruzada São Sebastião – conjunto de prédios construídos por Dom Hélder Câmara no bairro do Leblon para abrigar egressos de favelas da Zona Sul. “Apesar do endereço, eles não se vêem exatamente como moradores do Leblon.” À pergunta sobre onde moram, a maioria de seus cinco mil habitantes indica a própria Cruzada e não o bairro, que é sinônimo de moradia de famílias de classe média e classe média alta e um dos metros quadrados mais caros da cidade. Observou-se que 48% dos moradores do conjunto também declararam que gostariam de se mudar para outro lugar da cidade, apesar da melhor situação de moradia e acesso a benefícios sociais que encontram na Zona Sul. Desejo que indica o desconforto dos moradores, confrontados diariamente com o preconceito com que são olhados por seus vizinhos de classe social mais alta.

A polaridade Zona Norte x Zona Sul, que tanto aparece na mídia – em personagens de telenovelas e filmes criados sobre uma imagem estereotipada –, mostra o morador da Zona Sul como moderno, de maior escolaridade, mais rico e de comportamento mais refinado, em contraposição ao suburbano, visto como “gente humilde”, mais ligada à tradição e ao atraso. O que também é tema de análise no livro. “Entendemos que é preciso relativizar as perspectivas dualistas, particularmente aquela que opõe a Zona Sul à Zona Norte nas representações sobre a cidade, como duas partes fechadas em si mesmas. Por esta perspectiva não parecem ser reconhecidas e nem valorizadas as interações, trocas, negociações e conflitos possíveis de serem estabelecidos na dinâmica da vida social e que continuamente afetam os diversos segmentos sociais que compõem a cidade”, falam as organizadoras. E acrescentam: “O artificialismo inscrito nessas classificações espaciais quanto à perspectiva que essencializa um estilo de vida é enganoso, tanto no plano das práticas sociais quanto no das idéias e valores. E as rápidas mudanças sociais decorrentes do processo de globalização também contribuem para que se acentue entre os jovens a valorização do consumo de marcas ou estilos (de roupa, de música, etc.), que passam a ser muito mais significativos na definição das novas identidades”, dizem.

Em outro artigo, observa-se que a segregação da pobreza em determinados espaços da cidade acaba por limitar oportunidades e chances de mobilidade social. “Esse isolamento afeta as relações dos indivíduos com a sociedade e suas instituições. Morar em áreas pobres, isoladas, contribui para que os indivíduos se vejam excluídos das principais correntes de influência da sociedade, vivenciando situações de fragilização social, tanto diante do mercado de trabalho quanto diante da família, da escola e da moradia”, explica Sandra. Para reverter esse quadro de precariedade, ela afirma que as iniciativas devem voltar-se para oferta de empregos, ou seja, para a efetivação da renda gerada pelo trabalho, e para a garantia de que crianças e jovens frequentem a escola, já que a mobilidade social propiciada pela educação pode ser um caminho. Maria Josefina acrescenta: “Na ausência desses mecanismos, recria-se o processo de causa circular da pobreza, em que ela se reproduz geração após geração.”

A questão das favelas e da violência urbana também não fica esquecida. “De fato, alguns pesquisadores têm destacado que a representação das favelas como locais violentos, territórios da ilegalidade e do crime, acaba muitas vezes por legitimar um tipo de política de segurança pública que tem por eixo a promoção de uma ‘guerra’ contra as favelas, em vez da repressão às quadrilhas de traficantes ali sediadas ou ao narcotráfico em seu conjunto”, explicam as organizadoras. Política que se caracteriza pelo uso da força desmedida – isto é, para além de sua atribuição institucional – nessas comunidades, com o sistemático desrespeito aos direitos civis da população residente, e às vezes no homicídio de bandidos e de jovens favelados, tidos como suspeitos de envolvimento no tráfico de drogas.

“Na maioria dos casos, estas práticas têm sido explicadas e justificadas pelas autoridades públicas como ‘excessos inevitáveis’ numa situação ‘de guerra’. Um dos artigos do livro, por exemplo, focaliza dois movimentos de moradores de favela contra a violência policial no Rio de Janeiro e analisa as diferentes estratégias usadas. Mostra como esses movimentos contribuem para ampliar o acesso e dar visibilidade aos favelados no espaço público e para legitimar suas formas e pautas de ação coletiva, principalmente, construindo alianças com outros segmentos da sociedade. Eles procuram se mostrar e ser aceitos na cidade como atores reconhecidos para falar da violência e reivindicar justiça.

Até mesmo as semelhanças e diferenças entre o que mostram os filmes que têm o Rio de Janeiro como cenário, sobretudo os estrangeiros, produzidos na esteira da política de Boa Vizinhança dos anos 1930/1940, com a cidade real, na época, são analisados em um dos artigos. “O Rio de Janeiro do cinema, na verdade, pouco dialogava com o Rio de Janeiro de fora das telas. No período que vai da década de 1920 até a Segunda Guerra Mundial, ocorre o que se pode chamar de gênese da invenção do Rio de Janeiro como destino turístico por excelência”, explica Maria Josefina. “A transmutação da cidade em cartão-postal, que o filme realiza, deve ser lida como exemplo e efeito de um campo de poder mais amplo. Não surpreende, assim, que a maior parte dessas narrativas venha a ser rejeitada pelos ‘nativos’, que não se reconhecem nelas”, completa Sandra.

No livro, alguns autores apontam ainda para a importância de se aprofundar a discussão sobre os significados da territorialidade na sociabilidade urbana carioca, especialmente sobre o sistema de classificação social dos moradores da cidade. “É preciso estar atento para o outro lado dessa simbologia, pois a mesma cidade que se afirma ter fronteiras e estar “partida ou cerzida” é também aquela que é vista como “maravilhosa”, onde os “diferentes” coexistem pacificamente. Dentro desta perspectiva que procura transpor as possíveis dicotomias, surgem reflexões instigantes sobre as novas demandas geradas pela esfera do consumo e que reúnem a indústria do lazer, do entretenimento, da moda, do sexo e das drogas.

Para as organizadoras, ao se avaliar a complexidade da vida no Rio de Janeiro, é preciso “relativizar a construção de imagens e representações sobre a relevância do espaço, do local de moradia como um dos suportes para a constituição da identidade de diferentes grupos sociais”. Em suma, tudo isso pode ser um “bom caso para se pensar”.

Fonte: Faperj
Escrito por Observatório