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O Brasil está diante de um novo contexto. Após a escolha do país para sediar a Copa do Mundo de 2014 verificou-se a consolidação do chamado modelo de “governança empreendedorista”, que gerou como desdobramento processos de violações de direitos legalmente constituídos. Em contrapartida, viu-se aparecer em todo país reações a este modelo de intervenção urbana. É o que mostra Valéria Pinheiro, em sua dissertação no âmbito do IPPUR/UFRJ: a partir da perspectiva de David Harvey que relaciona a ideia de utopia à possibilidade de contribuir para um projeto político emancipatório, e tomando como objeto a cidade de Fortaleza, a pesquisadora aponta o surgimento de novas articulações e movimentos sociais lutando em defesa do Direito à Cidade.

A dissertação “A luta coletiva pelo direito à cidade no contexto dos Megaeventos em Fortaleza-CE”, da pesquisadora Valéria Pinheiro, foi defendida no dia 26 de fevereiro de 2014 no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ). Sob a orientação do professor Orlando Alves dos Santos Júnior (Observatório das Metrópoles), o trabalho busca observar a ação dos movimentos (com o destaque dado ao chamado “movimento de reforma urbana” em Fortaleza) como geradores de uma nova sociabilidade, contribuindo para a transformação da sociedade, com vistas à satisfação das necessidades coletivas e realização das potencialidades humanas.

De acordo com Valéria Pinheiro, a investigação toma como centralidade a luta pelo “Direito à Cidade”, conceito ainda em vias de consolidação, mas que acumula um sentido histórico e atual bem afinado com os problemas urbanos. “O conceito remonta a Henri Lefevbre, que, em 1968, constrói uma ideia de utopia, a ser construída e conquistada pelas lutas populares, visando o direito coletivo de criação e plena fruição do espaço social”, explica a pesquisadora.

O trabalho define ainda o “movimento da reforma urbana” ou o “campo da reforma urbana” como objeto da investigação – sendo considerado como tal todo movimento social que enfrenta a contradição da dinâmica urbana da cidade, sendo componente ou não dos “fóruns de reforma urbana” nacional ou locais. E como recorte histórico a conjuntura de preparação da cidade para a Copa do Mundo de 2014. Tal foco escolhido leva o estudo a considerar o contexto notadamente a partir da chegada de Luís Inácio Lula da Silva à Presidência da República em 2003. Esta representou uma mudança nas políticas urbanas federais, no que diz respeito aos seus arranjos institucionais, à aprovação de novos marcos regulatórios e leis federais, ao lançamento de projetos de grande impacto e à destinação de vultosos investimentos para as cidades.

“Vale destacar dentre estes a criação do Conselho Nacional das Cidades (CONCIDADES), demanda histórica dos movimentos sociais urbanos. Estes, a partir de 2004 (especialmente os do campo do movimento de reforma urbana) investem bastante força e tempo na participação nos espaços institucionais surgidos (compondo o governo ou integrando os conselhos) e na gestão de empreendimentos habitacionais. Esta reorientação da atuação nacional deste campo dos movimentos urbanos tem rebatimentos locais, gerando processos sociais dinâmicos e complexos que guardam total relação com o que se pretende observar neste estudo”, afirma Pinheiro.

Segundo a pesquisadora, com o passar dos anos das gestões Lula e com a eleição da presidenta Dilma Rouseff, uma certa lógica governamental parece aprofundar-se caracterizada por uma “governança empreendedorista empresarial”. “Nesta direção, as políticas urbanas estariam sendo guiadas pelos interesses imobiliários e financeiros privados. Assim, suas ações estariam sendo preferencialmente direcionadas para o fomento do desenvolvimento econômico notadamente concentrador de renda, subordinando todas as políticas à lógica do mercado como bem apontou Ermínia Maricato e Raquel Rolnik”, esclarece Pinheiro.

Nas cidades-sede, porém, sob o argumento de modernizar suas infraestruturas e promovê-las mundialmente, tem-se presenciado processos de violações de direitos legalmente constituídos nacional e internacionalmente, assim como de desrespeito aos pactos firmados em espaços institucionais de discussão sobre a cidade. Tais informações podem ser constatadas em documentos de denúncias elaborados por entidades da sociedade civil, como é o caso do dossiê “Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil” e de recomendações feitas pela Relatoria Especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Direito à Moradia.

Valéria Pinheiro mostra que cientes das ameaças ao direito à cidade, viu-se aparecer em todo país reações a este modelo de intervenção urbana. Surgiram novas articulações e movimentos urbanos tradicionais incorporaram o tema dos megaeventos nas suas agendas. Tal conjuntura também passa a ser pauta na imprensa, nas discussões de categorias profissionais e em debates pela sociedade – cada qual com suas abordagens específicas.

“Diante de tudo isto, que formas e sentidos assumem as ações coletivas urbanas em Fortaleza neste cenário de cidade-sede da Copa 2014, em que o uso dos espaços e recursos públicos parece estar, mais do que nunca, mediado por embates de interesses privados e públicos, colocando em risco direitos consolidados e concepções de cidadania mais avançadas?”, questiona a pesquisadora e completa:

“Nessa perspectiva, esta dissertação tem como objetivo geral refletir sobre o perfil das ações coletivas na defesa do direito à cidade no contexto dos megaeventos, utilizando a cidade de Fortaleza, capital do estado do Ceará, como locus de observação, analisando quais formas de articulação estão se desenvolvendo, que movimentos estão participando desse processo, que interações estão ocorrendo entre o movimento social e o governo e quais são os impactos dessas ações sobre a realidade da população das comunidades”.

 

Fórum pelo Direito à Cidade

“O que já se pode afirmar é que o projeto Copa da Fifa sofreu uma grande derrota política. O que antes parecia ser consenso – discurso da coesão e legitimação da Copa como progresso – hoje mostra-se em toda sua complexidade de críticas taxativas e ressalvas. O impacto de centenas de milhares de brasileiros criticando a Copa do Mundo , no país do futebol, durante o seu evento teste (Copa das Confederações) é imensurável. Porém mesmo com a dificuldade de análise deste objeto tão recente se pode afirmar uma grande vitória – pelo menos subjetiva – dos coletivos que há anos passaram a denunciar os efeitos negativos do megaevento no Brasil. Isto tem uma reverberação clara no fortalecimento das bandeiras dos que lutam pelo Direito à Cidade, e pode mudar as condições de disputa política após a Copa 2014”, defende Pinheiro.

Numa reflexão final sobre qual o futuro e quais as perspectivas da defesa do direito à cidade em Fortaleza, a autora chama atenção para esta articulação que vem se consolidando nas plenárias ampliadas do Comitê Popular de Fortaleza, que tem contado com a presença de vários movimentos de resistência da cidade e uma série de outros sujeitos com suas pautas específicas que agregam uma diversidade interessantíssima. “Apesar do pouco tratamento dado pela literatura a essas formas de resistência, por serem muito contemporâneas, se aponta sim para a possibilidade de que no pós-Copa, se tenha um legado de movimentos sociais urbanos efetivamente articulados num Fórum pelo Direito à Cidade que assumam a construção e disputa por um projeto político corajoso, insurgente, e com capacidade de diálogo e participação central da população mais vulnerável da cidade”.