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As cidades estão tornando-se mais semelhantes em suas funções no que se refere à produção, consumo e identidade? Ou estão se divergindo cada vez mais? Nesta resenha do trabalho Markusen & Schrock, Érica Tavares Silva mostra que as cidades dos EUA competem umas com as outras visando gerar um quadro distintivo para sua inserção no mercado mundial. O texto oferece uma contribuição para se pensar os desafios comparativos sobre as mudanças urbanas nas metrópoles brasileiras.

 

Trajetórias das Metrópoles: divergências e convergências

Diante da maior integração de capital, trabalho, produtos, serviços e pessoas e da ação global das forças de mercado sobre o espaço urbano, coloca-se a discussão sobre o papel das cidades neste contexto e sua busca por distinção e especialização. As cidades estão tornando-se mais semelhantes em suas funções no que se refere à produção, consumo e identidade? Ou estão divergindo-se cada vez mais? Ou esses processos estão ocorrendo simultaneamente? A abordagem realizada por Markusen e Schrock analisa tendências convergentes e divergentes na hierarquia e especialização das áreas metropolitanas dos Estados Unidos através da composição e localização dos grupos ocupacionais, fazendo-nos refletir também sobre possíveis análises a respeito das diferenças entre as estruturas sócio-ocupacionais e produtivas nas metrópoles brasileiras.

 

Resenha

Por Érica Tavares da Silva

Professora do Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos

Pesquisadora do INCT Observatório das Metrópoles

Doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ com a Tese “Estrutura Urbana e Mobilidade Espacial nas Metrópoles”, premiada com menção honrosa pela CAPES na área de Planejamento Urbano e Regional/Demografia.

 

MARKUSEN, Ann & SCHROCK, Greg. “The Distinctive City: Divergent Patterns in Growth, Hierarchy and Specialization”. Urban Studies, Volume 43, No. 8, 2006, p. 1301-1323.

O texto de Markusen e Schrock sobre diferentes padrões de distinção e especialização das cidades discute a idéia do ressurgimento urbano, abordando teórica e empiricamente tendências contraditórias à homogeneização e distinção entre as cidades. Diante de uma maior integração do mercado mundial, as cidades competem umas com as outras como locais de produção e de consumo, visando empresas e famílias como tomadores de decisão locais semi-autônomos.

Essa competição apresenta-se na busca de uma distinção, que pode ser procurada na estrutura produtiva, no consumo e/ou na identidade urbana. A idéia subjacente a esta reflexão é a de que há uma luta entre as localidades e cidades para a formulação e apresentação de características “especiais”, que lhes forneça um quadro distintivo em relação a outras cidades, em termos de serviços, estrutura ocupacional, entre outros fatores.

Para os autores, tem ocorrido uma nova organização do território com a maior integração de capital, trabalho e mercadorias. Nesse contexto, as cidades no topo da hierarquia são mais capazes de expandir seu espaço de influência sobre áreas cada vez mais distantes; entretanto, ao longo das últimas décadas, os autores afirmam que as “pontas” dessas grandes cidades estão erodindo com novas dinâmicas de emprego crescendo mais rapidamente em cidades de segundo nível metropolitano nos Estados Unidos.

Uma reflexão sobre contigüidade e conectividade evidencia que os novos territórios organizados em rede dependem menos de uma proximidade espacial imediata, passando a importar mais as possibilidades de conexão com distintas espacialidades. Além disso, diferenças em nível micro-espacial também passam a ser mais interessantes do que as macro-diferenças. Isso fica evidente pela inquietante competição entre as cidades por empresas, trabalhadores e residentes, e na busca por mercados cada vez mais distantes.

Ao analisar a hierarquia urbana dos Estados Unidos e a especialização das cidades, os autores afirmam que se as cidades de tamanho semelhante apresentam grande heterogeneidade em sua estrutura ocupacional então o processo de especialização e distinção é reforçado, ou seja, uma maior diversificação entre cidades de porte semelhante indica o processo de distinção entre elas. Com os devidos apontamentos realizados sobre o tratamento dos dados referentes aos níveis de agregação das ocupações, os resultados aos quais Markusen e Schrock chegam mostram que as áreas metropolitanas maiores como Nova Iorque, Los Angeles e Chicago destacam-se em alguns grupos ocupacionais, tais como:

artes/entretenimento/esportes/meios de comunicação; área jurídica; serviços de proteção; negócios e finanças; serviços pessoais e sociais; serviços de escritório e administrativos. Já entre as cidades de segundo nível na hierarquia metropolitana destacam-se: profissionais da computação e matemática; arquitetos, engenheiros e biólogos; cientistas físicos e sociais. Para os autores, esse segundo grupo concentra o fenômeno da alta tecnologia e desenvolvimento de pesquisas, fornecendo evidências de que essas cidades estariam ganhando na competição tecnológica em relação às maiores cidades.

A metodologia utilizada pelos autores centra-se na distribuição das ocupações nas áreas metropolitanas. Esse enfoque sobre as ocupações também se deve ao fato de que a distribuição inter-urbana dos postos de trabalho é uma função não apenas de entidades patronais, mas decisões de localização das famílias e dos trabalhadores,  o que tem reflexo sobre as demais dimensões abordadas. A metodologia diferencia ocupações de base econômica – aquelas relacionadas a atividades, mercadorias e serviços que podem estender-se para fora da região – e ocupações em atividades de serviços locais, observando a assimetria das ocupações nestes dois níveis de agregação. A partir disso, os autores vão considerar que a estrutura de produção de uma cidade é mais “distinta” conforme a extensão com que a composição do emprego difere de uma cidade para outra. O caráter distintivo é uma medida relativa e não absoluta, na qual os autores analisam se esta especificidade é crescente ou decrescente ao longo do tempo.

Ao utilizar um índice chamado de coeficiente de localização  (COL) para a concentração ou distribuição das ocupações entre as áreas metropolitanas, o distintivo da base econômica das cidades aumentou entre 1980 e 2000. Áreas de alta tecnologia, ciência, profissões de engenharia, arquitetura, artes e comunicação social tornaram-se mais competitivas e especializadas em todas as áreas metropolitanas. E as profissões artesanais e de montagem, apesar das pesadas perdas em números absolutos de empregos, também tiveram sua distribuição mais alterada entre as cidades. Estas são fortes evidências favorecendo a hipótese do aumento da especialização.

Já aquelas ocupações em atividades de serviços locais tornaram-se mais similares na estrutura das cidades. São ocupações necessárias para satisfazer o consumo, a produção e a manutenção de empresas, famílias e trabalhadores. Em contraste com a tendência de crescente assimetria na base econômica, a maioria das profissões com baixas taxas de localização (aquelas não-básicas/residenciais) parecem ter se tornado ainda mais uniformemente distribuídas ao longo dos vinte anos de período de estudo. Assim, os padrões de consumo estão se tornando mais semelhantes em todas as áreas metropolitanas dos Estados Unidos. Isso é reforçado pela propagação da franquia de lojas de varejo e lojas fast food, a padronização dos cuidados de saúde, o estabelecimento da expansão comercial e shoppings em todas as faixas de cidades, que funcionam como uma homogeneização da estrutura urbana. Portanto, o setor de consumo constitui-se em uma força para diminuir o caráter distintivo entre as cidades.

Neste sentido, os autores chegam às tendências contraditórias que analisam. Com efeito, a diversificação, por um lado, e a padronização, por outro, produziriam forças contrárias que anulariam o processo de especialização das cidades. Entretanto, Markusen e Schrock ressaltam outra gama de fatores novos que também se colocam na concepção do urbano na contemporaneidade. Apesar de uma forte padronização do consumo, as famílias também apresentam grande distinção de gostos e preferências, há novos comportamentos e aspirações das mulheres no mercado de trabalho, os trabalhadores urbanos buscam espaços de trabalho com maiores interesses além de econômicos, distintos grupos demográficos, como jovens profissionais e idosos, também têm novas perspectivas em relação às cidades e aos serviços oferecidos. Há busca por melhores climas, amenidades, dinâmica cultural, entretenimento, serviços de saúde, etc. Esses fatores atuando conjuntamente estão constituindo novas diretrizes para promover a distinção entre as cidades.

Portanto, mesmo com a padronização de serviços e atividades locais, as cidades possuem diferentes combinações de atividade econômica e esta distinção está aumentando mais rapidamente nas ocupações da base econômica, onde a especialização do trabalho é aprofundada e não se limita apenas às maiores cidades.

Há muitas considerações sobre a análise do processo de distinção e especialização das cidades que devem ser ressaltadas: uma cidade altamente distinta não é necessariamente uma “boa” cidade, no sentido do crescimento, estabilidade, equidade e qualidade de vida. Tornar-se mais distinta pode ser uma estratégia de sobrevivência para contrabalançar perdas em funções competitivas, mas tornar-se menos distintiva também pode ser uma estratégia de crescimento para cidades muito especializadas. Tornar-se um destino favorito para aposentados, por exemplo, por ser mais ou menos residencial pode ser uma estratégia para crescimento e estabilidade de pequenas cidades; também é possível distinguir-se por meio de investimentos nas áreas das artes, amenidades, esporte e lazer. Existem, portanto, múltiplas funcionalidades que as cidades podem desenvolver para explorar o caráter distintivo.

Sendo assim, a relação entre o processo de especialização e a hipótese do ressurgimento urbano abrange uma pluralidade de aspectos. A tese dos autores é que a maioria das cidades enfrenta o desafio distintivo de um modo ou de outro, e que essa distinção é fundamental para o seu ressurgimento. As tendências da distinção de produção exploradas não têm relação direta com o crescimento do emprego metropolitano, aliás, esta não é uma boa medida para avaliar o ressurgimento urbano. A questão, para Markusen e Schrock, não é o crescimento, até porque algumas regiões já muito grandes não teriam nem mais espaço para tal; o foco da análise está no ressurgimento de um novo arranjo de estrutura produtiva e emprego no processo de diferenciação das cidades. Talvez o interessante seja questionar se as metrópoles que mais se distinguiram também ultrapassaram outras em crescimento. Nas áreas metropolitanas dos Estados Unidos, testes empíricos mostraram que não há uma relação entre taxa de crescimento do emprego global e competitividade com o caráter distintivo das cidades, nem há uma relação entre especialização inicial e mudanças no processo de distinção no período considerado. Outros fatores devem ser considerados, pois os resultados sobre diversificação, inovação e desenvolvimento urbano variam bastante.

A vulnerabilidade da cidade distinta é uma mudança secular ao longo do tempo em sua força única, que exige a reorientação de suas habilidades e capital físico. A análise dos autores é interpretativa, reconhecem que outros trabalhos teóricos e empíricos sobre o impacto do consumo e da identidade na dimensão urbana do processo distintivo e seu reflexo sobre os resultados do desenvolvimento econômico são necessários. A ausência de uma clara relação entre o caráter distintivo de produção e o crescimento global do emprego não é motivo para rejeitar o processo de distinção e especialização como uma dimensão do desafio de desenvolvimento a ser enfrentado pelas cidades. Nesta era de especialização exacerbada de tendências, as cidades estão bem orientadas a jogar com seus pontos fortes e desenvolver suas potencialidades. Uma sofisticada resposta a estas dinâmicas sugere uma abordagem em que as cidades sustentem um portfólio de extensão de atividades e indústrias que abranjam o desenvolvimento em conjunto.

Ao pensar na estrutura urbana brasileira, divisão de funcionalidades e composição ocupacional regional, muitos de nossos autores já refletiram sobre as contradições da formação da rede urbana, caracterizada como um sistema disperso de cidades, com pequeno número de grandes metrópoles, onde as maiores cidades de expressão nacional (São Paulo e Rio de Janeiro) não apresentam a mesma expressividade internacional. Diante dos aspectos multi-escalares e heterogêneos da rede urbana brasileira, a distinção e especialização das cidades podem ser pensadas não apenas a partir de uma escala preferencial de desenvolvimento, mas em uma articulação entre os níveis locais e regionais considerados na estrutura do sistema urbano nacional, inserido no contexto global.

Mesmo tendo ocorrido uma ampliação e diversificação da estrutura produtiva e ocupacional entre as cidades – que pode ser mais explorada a partir das reflexões aqui apresentadas, a fragilidade das relações de trabalho, a coexistência de processos “modernos” e “arcaicos”, a pobreza de uma grande massa de trabalhadores urbanos também são características da estrutura sócio-ocupacional de nossas cidades.

Além disso, é preciso expandir uma visão do desenvolvimento econômico para além da esfera produtiva. Com os enormes conflitos sociais que o Brasil enfrenta, deve-se balizar essa “guerra entre os locais” com a idéia de uma distinção que permita explorar a identidade e afinidade na comunidade urbana, afinal pouca preocupação há com a dinâmica civilizatória e coesão social nesse contexto urbano tão marcado por competitividade. Essa nova compreensão sobre o urbano – por parte não apenas de empresas e do setor público, mas também por parte dos trabalhadores e residentes do espaço urbano, com distintas aspirações e necessidades – deve ser considerada em nossas pesquisas, afinal, há diversas estratégias sociais, econômicas e políticas de apropriação do território urbano por parte de distintos atores.