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Neste artigo, Magda Holan Yu Chang busca entender as forças históricas que estruturam a dinâmica do capitalismo mundial. Com esses fins, recorre-se a ideias como a “economia-mundo” de Braudel e Wallerstein, os “ciclos sistêmicos de acumulação” de Arrighi, e os “ajustes espaciais” de Harvey. De certo modo, todos esses pensadores fazem releituras dos universos marxista e smithiano, permitindo a identificação de instrumentos de análise do capitalismo mundial alternativos à teoria convencional.

O artigo “A Economia-Mundo Capitalista: Conceitos e Considerações Históricos-Espaciais”, de Magda Holan Yu Chang, é um dos destaques da edição nº 15 da Revista eletrônica e-metropolis – publicação trimestral que tem como objetivo principal suscitar o debate e incentivar a divulgação de trabalhos, ensaios, resenhas, resultados parciais de pesquisas e propostas teórico-metodológicas relacionados à dinâmica da vida urbana contemporânea e áreas afins.

A Revista e-metropolis é direcionada a alunos de pós-graduação de forma a priorizar trabalhos que garantam o caráter multidisciplinar e que proporcionem um meio democrático e ágil de acesso ao conhecimento, estimulando a discussão sobre os múltiplos aspectos na vida nas grandes cidades.

INTRODUÇÃO

Magda Holan Yu Chang

Não existem grandes divergências de que a gestação de uma nova ordem econômica mundial está em curso. A sustentação de uma surpreendente expansão econômica pela China nas últimas décadas já vinha evidenciando a emergência de uma nova potência econômica. A criação e popularização do acrônimo “BRICs” (Brasil, Rússia, Índia e China) no início deste século, destacando o rápido crescimento desses quatro países em desenvolvimento, veio a enfatizar essa ampliação do horizonte de novos centros de influência mundial. E, por fim, os despojos da maior crise econômico-financeira desde a Grande Depressão evidenciaram a perspectiva de uma lenta recuperação para a maior parte do mundo desenvolvido, com expectativas de anos de baixo crescimento. Ao que tudo indica, está ocorrendo o deslocamento do centro de dinamismo econômico mundial dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento, ou ao menos, uma significativa redistribuição de pesos.

Na realidade, no mundo inteiro, além das implicações concretas desses movimentos de reestruturação sistêmica expressos por dados estatísticos como os de atividade, comércio e finanças internacionais, também as bases ideológicas da orientação político-econômica dominante foram profundamente abaladas. Não faltou no passado críticos que apontaram as deficiências latentes do modelo de condução econômica neoliberal amplamente predominante na ordem mundial anterior. Essas falhas foram evidenciadas pelo bruto desenrolar da crise, que se alastrou pelo planeta graças à intricada rede mundial de interações entre países fomentada pelo processo de globalização, atingindo até mesmo nações que não estavam diretamente ligadas à crise em si.

Frente à importância desse processo de questionamento da ordem econômica capitalista e de ruptura de paradigmas, cumpre buscar entender as origens e forças históricas que estruturam a sua dinâmica e evolução cíclica. Tal avaliação é de fundamental relevância para realizar um juízo das possibilidades e implicações para a estratégia de desenvolvimento nacional, não só para o Brasil, mas para qualquer país que seja minimamente integrado à economia mundial.

Assim, o objetivo deste artigo é apresentar as principais ideias sobre o capitalismo como sistema mundial, revisando algumas das principais abordagens teóricas relevantes ao assunto e tendo em vista delinear algumas ferramentas de análise úteis à compreensão do seu funcionamento. Para isso, há que primeiramente se atentar a certos cuidados metodológicos visando a identificar e evitar anacronismos e ambiguidades, como o estudo diacrônico e contextualizado dos conceitos e ideias, a questão da definição da unidade de análise adequada à investigação científica, e outras considerações essenciais de ordem histórico-geográfica. Nesse sentido, as referências intelectuais consistem nos argumentos de Koselleck (2006) e Skinner (1969), que delineiam preocupações acerca do uso dos termos e conceitos necessários à construção de uma análise científica sobre sistemas com duração e espaço, sem desligá-los dos seus agentes e ambientes histórico-geográficos. Também são abordadas as visões pautadas no “ponto de vista da totalidade” e da “longa duração histórica” desenvolvidas por Braudel (1996) e Wallerstein (2000).

Tendo em vista tais cuidados, faz-se útil se aprofundar nas ideias de Braudel (1996) sobre o capitalismo e as economias-mundo, enfatizando sua definição do capitalismo como o “lugar” da alta acumulação do capital, para relacioná-las à estrutura conceitual da economia-mundo capitalista desenvolvida por Wallerstein (2000). Complementarmente, as contribuições de Arrighi (1990, 1996 e 2008) trazem uma síntese do funcionamento do capitalismo como sistema cíclico mundial de acumulação de capital que, juntamente com a teoria espacial do capitalismo de Harvey (2005), levantam destacadas conclusões de cunho geopolítico. Em suma, por meio da reunião e confronto das ideias desses diferentes pensadores, buscou-se realizar uma síntese instrumental das categorias por eles apresentadas para melhor apreender a estrutura e dinâmica do capitalismo mundial.

CONCEITOS, SISTEMAS SOCIAIS E SEUS CONTEXTOS

As palavras podem permanecer sempre as mesmas, mas os seus sentidos se alteram conforme o contexto, o agente, o lugar ou a época. Da mesma forma, os conceitos podem possuir diversas nuances e mudar de conteúdos – de tal sorte que sua compreensão e uso adequado requerem a apreensão dos ambientes histórico-sociais em que o conceito surgiu e evoluiu, por quem foi usado, e com quais finalidades. Ou seja, os conceitos unem experiências – passadas, presentes e possíveis –, revelando estruturas com referencial empírico e duração, que justificam assim a necessidade de se atentar à sua aplicação para compor a análise científica.

Segundo Koselleck (2006),os conceitos podem fundamentar-se em fatores já existentes e/ou ser usados como indicadores de transformações em curso, por meio de processos de “ressignificação” dos termos e de criação de neologismos. Assim, os conceitos carregam uma temporalidade de conjunturas que é de grande valor à ciência investigativa, pois abre as possibilidades de revelar um ponto de vista polêmico orientado para o presente, assim como um componente de planejamento futuro, ao lado de determinados elementos de longa duração da constituição social originados no passado […]. Na multiplicidade cronológica do aspecto semântico reside, portanto, a força expressiva da história. (Koselleck, 2006, p. 101)

Alternativamente, Skinner (1969) também reconhece a riqueza denotativa dos conceitos e sublinha a relevância da compreensão dos ambientes e fatos que os envolvem. Porém, sua qualificação vai mais além ao criticaras abordagens pautadas em “conceitos fundamentais”, ideias cuja perenidade e universalidade a elas atribuídas trazem implícitas uma suposta independência dos seus contextos temporais, espaciais e sociais. Tal abrangência absoluta acaba gerando uma tendência a imputar intenções e significados inexistentes a autores e obras, que não os tiveram, nem poderiam ter tido, em seus ambientes de origem.

Muitas vezes, o resultado são narrações de pensamentos inexistentes, chamadas pelo autor de “mitologias” históricas. Para ele, a impossibilidade de se abordar fenômenos sem definir critérios conhecidos, sem contaminá-los com preconceitos e expectativas, ou sem identificar semelhanças com experiências anteriores vem a exacerbar o problema: “Nós precisamos classificar para entender, e só podemos classificar o desconhecido em termos do que é familiar.” (Skinner, 1969, p. 58).

Desse modo, Skinner (1969) aponta dois requisitos metodológicos mínimos: nenhum pensador pode ter dito ou querer ter dito algo que era impossível no seu tempo e lugar; e a pesquisa não pode ser reduzida a uma atividade padronizante, pois as generalizações perigam em não corresponderem adequadamente aos eventos individuais que pretendem representar:

qualquer discurso é inescapavelmente a expressão de uma intenção particular, em uma ocasião particular, direcionada à solução de um problema particular, e, portanto específico ao seu contexto […] não existem problemas perenes na filosofia. Existem apenas respostas individuais a questões individuais (SKINNER, 1969, p. 88)

Braudel (1996a), em contraste, desenvolve uma abordagem de certa forma oposta à de Skinner, pelo menos no que diz respeito às regularidades científicas. Apesar de também destacara importância de se situar as realidades humanas conforme seu espaço e duração, o autor dá um peso especial à identificação dos padrões recorrentes no tempo e espaço, dos ciclos que se repetem ao longo da História e das regularidades tendenciais que caracterizam os fenômenos.

Na realidade, todos esses autores reconhecem os equívocos e ambiguidades potenciais do uso inadequado dos conceitos e enfatizam a importância do estudo dos seus contextos de gestação e desenvolvimento.

Como Koselleck e Skinner, Braudel (1996a) também destaca a necessidade da análise do surgimento e da evolução histórica dos conceitos a serem aplicados na pesquisa científica: “as palavras-chave do vocabulário histórico só devem ser utilizadas depois de interrogadas… De onde vêm elas? Como chegaram até nós?” (BRAUDEL, 1996a, p. 201). Porém, ele também acredita que deve haver laços e continuidades entre passado longínquo e tempo presente, persuadido do valor explicativo do longo prazo e confiando no desenrolar cronológico da História, porque só esta poderia apresentar evidências que constituam: “Uma explicação – uma das mais convincentes – e uma verificação, na verdade a única situada fora das nossas deduções abstratas, das nossas lógicas a priori, fora até das armadilhas que o bom senso não para de montar para nós” (BRAUDEL, 1996a, p. 7).

É também nessa direção que Wallerstein (2000) defende a abordagem de “longo prazo”, apontando que a ciência social não deve perder contato com a perspectiva histórica, pois só esta permite apreender as estruturas sociais e suas mudanças. Em sua crítica aos modelos abstratos e quantitativos que visam a explicar o todo social sem abordá-lo historicamente, o autor mostra que suas falhas são facilmente evidenciadas pela realidade empírica da História. Indo mais além, o autor avalia que as partes de um todo não devem ser isoladas, devendo-se manter sempre o “ponto de vista da totalidade”, fundamento sobre o qual ele constrói todo um arcabouço teórico sobre as “totalidades históricas”, um modelo alternativo para a análise comparativa dos fenômenos sociais.

Portanto, esses autores nos ensinam que a prevenção de anacronismos na pesquisa científica requer alguns cuidados metodológicos essenciais. A compreensão mais completa dos termos e conceitos só é possível com informação externa a eles, pois seu significado e uso podem mudar conforme o espaço e o tempo. É necessário ultrapassar a análise do significado do que está escrito e buscar a intenção por trás: por que, quando, para quem e por quem foi escrito?

Ou seja, os termos e as ideias não devem perder contato com seus autores, contextos e públicos, nem com as questões que procuravam responder quando foram concebidas, reforçando-se assim a relevância do estudo da evolução das circunstâncias históricas dos conceitos.

Acesse o artigo completo “A Economia-Mundo Capitalista: Conceitos e Considerações Históricos-Espaciais” na edição nº 15 da Revista e-metropolis.