Skip to main content

Controle de Inundações nas Metrópoles

By 17/01/2013janeiro 23rd, 2018Entrevistas

Controle de Inundações nas Metrópoles: ausência de gestão integrada

A região da Baixada Fluminense no Rio de Janeiro foi atingida por fortes chuvas no começo de 2013, resultando em duas mortes e mais de 2,5 mil pessoas desabrigadas. O problema é antigo no Brasil. Segundo Paulo Carneiro (COPPE/UFRJ-PROURB), todo ano cidades das regiões Sul e Sudeste sofrem com as enchentes por causa da ocupação irregular do solo urbano e ausência de um planejamento integrado para os recursos hídricos. Em entrevista ao Observatório das Metrópoles, o pesquisador analisa a política de controle das inundações, comenta a barreira institucional para uma gestão integrada das águas e crítica o sistema de alerta brasileiro. “A cada tragédia que ocorre por conta das chuvas é como se fosse a primeira vez!”.

Na última década, o Brasil tem registrado muitas tragédias por conta das fortes chuvas. Casos como o de Santa Catarina em 2009 (com 130 mortes e 78 mil pessoas desabrigadas); Morro do Bumba em Niterói (RJ) em 2010 (168 mortes e cerca de 7.000 famílias desabrigadas); Região Serrana do Rio em 2011 (mais de 900 mortes e 345 desaparecidos) e Baixada Fluminense e região de Angra dos Reis (RJ) em 2010 (com 2 mortes e 2,5 pessoas desabrigadas).

Entre as causas dessas tragédias, pode-se citar o aumento da população vivendo em áreas urbanas; a falta de regulação do uso e ocupação do solo (pessoas vivendo em áreas de encostas ou as margens dos cursos d’água); sistemas de antigos drenagens; baixa capacidade técnica para a elaboração de projetos de controle de inundações e, sobretudo, a barreira política entre os entes federados (União, Estados e Municípios) para a consolidação de políticas regionais para a gestão dos recursos hídricos.

O INCT Observatório das Metrópoles tem acompanhado os casos de inundações/enchentes nas regiões metropolitanas brasileiras e mobilizado a sociedade civil a fim de exigir do poder público a execução de políticas de prevenção às enchentes, seja no aprimoramento dos sistemas de alertas; em melhorias da capacidade de escoamento das bacias pluviais; no controle de ocupação do uso do solo; nas medidas ambientais necessárias, entre outras. Para o instituto, o debate central no caso das chuvas é a consolidação de sistemas de planejamento integrado dos recursos hídricos, em escala regional para municípios no interior dos estados e, especialmente, para as áreas metropolitanas.

O tema do “planejamento integrado” é discutido nesta entrevista com o pesquisador Paulo Roberto Ferreira Carneiro, mestre em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), doutor em Planejamento e Gestão de Recursos Hídricos (COPPE/UFRJ) e bolsista e Pos DOC FAPERJ-CAPES no Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da UFRJ (PROURB). Desde 1994, Paulo é pesquisador do Laboratório de Hidrologia e Estudos do Meio Ambiente da COPPE/UFRJ, atuando como coordenador técnico e pesquisador em estudos, pesquisas e projetos na área de planejamento de recursos hídricos. Participou também do Projeto Iguaçu desde a sua fase inicial 1993-1994, com o objetivo de consolidar instrumentos de controle de inundações na Baixada Fluminense.

 

Entrevista: Paulo Roberto Ferreira Carneiro

– O Brasil tem sido marcado por tragédias nos períodos das chuvas, caso de Santa Catarina em 2009, Morro do Bumba Niterói em 2010, e a Região Serrana do Rio em 2011. Quais as principais causas dessas tragédias?

Paulo Carneiro: Temos que ter claro duas questões quando falamos em grandes eventos de chuvas, que tem a ver com ciclo hidrológico, isto é, com variações na intensidade de chuvas de um ano para outro.  Bem, quando lidamos com esses eventos no âmbito das cidades, pensando em seus efeitos e consequências, temos que pensar na forma como as cidades vêm sendo ocupadas ao longo da história e também o seu processo de ordenamento do uso do solo – que diz respeito à atuação pública. Essas grandes tragédias citadas foram eventos de grande magnitude. No caso da Região Serrana do Rio, por exemplo, o que se viu foi uma grande quantidade de chuva caindo por algumas horas ininterruptas em um ponto específico do território fluminense, mais especificamente em Nova Friburgo. Nesse caso, era difícil que não houvesse uma tragédia.

No entanto, esse grande evento natural é intensificado pela forma como as cidades, e aquele território foi ocupado. Isso ampliou o evento, desencadeou uma tragédia. Quer dizer, se na Região Serrana não existisse ocupação nenhuma de casas, teríamos sim o fenômeno de deslizamentos, mas não veríamos uma tragédia, e tampouco mortes de tantas pessoas.

A tragédia está associada à ocupação indevida do solo, de encostas. Nesses casos, muitas vezes, a própria geomoforlogia do terreno não permite uma ocupação – ainda mais de casas construídas de forma muito precária. É claro que no caso de Nova Friburgo tivemos casas bem construídas mais que também foram destruídas. Mas isso se deu por conta da magnitude do evento natural. O que podemos afirmar é que no caso dessas grandes tragédias o que vemos é um “mix” de grande quantidade de chuvas e ocupação irregular do solo.

Já o exemplo do Morro do Bumba é bem diferente da Região Serrana do Rio. No Bumba o que vimos foi uma ocupação em cima de um antigo lixão, ou seja, de um solo não compactado. E o poder público deu aval para que aquela ocupação fosse feita, como se fosse uma área segura. Portanto, aquele caso deveria ser julgado porque os responsáveis poderiam responder por crime, de irresponsabilidade mesmo em permitir que uma área imprópria fosse usada para fins de habitação.

– E no caso de eventos de menor magnitude? Muitas cidades brasileiras sofrem com inundações todos os anos, com famílias perdendo suas casas e prejuízos econômicos e sociais. Quais são as causas desse problema que perdura há tantos anos no país?

Paulo Carneiro na sede da COPPE/UFRJ

Paulo Carneiro: Nos Estudos de Hidrologia trabalhamos muito com a variável “tempo de recorrência” de uma chuva. O que seria isso? Existem medições de chuvas a partir das estações pluviométricas, embora no Brasil não tenhamos uma tradição muito longa nesses estudos, já que as séries são muitas vezes interrompidas. O próprio poder público faz uma gestão muito ineficiente da base de dados referente à gestão de eventos extremos. Isso é ainda muito precário no Brasil de maneira geral; alguns estados fazem mais, outros menos. Mas o quadro geral mostra que é muito precário a base de dados e o monitoramento das chuvas e vazões nos rios para permitir uma gestão mais técnica dos eventos extremos.

A partir dessas medições ao longo de décadas é possível fazer extrapolações estatísticas que oferecem um diagnóstico teórico sobre os eventos pluviométricos. Temos, por exemplo, um grande evento com probabilidade de ocorrer a cada 50 anos. Mas isso não significa dizer que a cada 50 anos ele vai realmente acontecer – a recorrência é uma probabilidade estatística. A partir desse quadro o planejamento da infraestrutura hídrica é feito, considerando, no caso do Rio de Janeiro, obras que são projetadas para eventos com recorrência de 25 anos; ou seja, as estruturas hidráulicas que são montadas são para suportar eventos com periodicidade de  25 anos de recorrência. Mas é claro que se tivermos um evento que extrapole essa recorrência ele vai causar um problema.

Isso seria uma relação de causa e efeito muito lógica. No entanto, o fato é que a realidade mostra algo que não está na engenharia do dia-a-dia. Porque quando se está baseado em um estudo de recorrência, o planejamento é feito pensando em uma chuva que irá cair em algum ponto daquela bacia hidrográfica. Parte da água precipitada penetra no solo. Quando este satura, a água  irá escoar superficialmente alcançando os canais de drenagem. À medida que os processos de urbanização se intensificam (o que acontece de maneira geral sem controle) as estruturas hidráulicas projetados para uma recorrência de 25 anos passam a não suportar chuvas de recorrência menor.

Por que isso acontece? Porque a absorção do solo mudou nesse período com o processo de urbanização que não foi controlado. Então o que ocorre com as cidades brasileiras é que os projetos de drenagem não são sustentáveis no tempo. Você investe em obras para um período de recorrência; mas essas estruturas se tornam rapidamente obsoletas.

– E isso sem falar nas ações do poder público que não são coordenadas?

Paulo Carneiro: Sim. Por exemplo, a Prefeitura de tal município resolve fazer uma ponte e a faz com o vão muito baixo; e o lixo não é recolhido de forma correta e acaba se acumulando naquele trecho do rio sob a ponte, resultando na inundação da área. Existe ainda o problema do assoreamento do rio, porque a bacia hidrográfica vem sendo desmatada. Ou uma construtora faz um duto de drenagem com uma seção inadequada. Enfim, há uma série de problemas interligados. O que ocorre na prática é que a manutenção de sistemas de drenagem para que as cidades não sofram periodicamente com inundações é falho. Quer dizer, esse sistema sempre terá uma ineficiência muito grande associada a ele, porque as ações não são integradas; porque os três níveis de poder público não se coadunam para fazer uma gestão mais completa do assunto. Não é possível pensar os recursos hídricos de maneira compartimentada; a água é um elemento de grande transversalidade na cidade.

– No caso do Rio de Janeiro, nas tragédias anteriores e agora nas enchentes em Xérem Duque de Caxias, vemos o poder público utilizando o discurso que vincula boa parte da tragédia à ocupação indevida do solo. No entanto, esse problema é decorrente da falta de regulação da ocupação do solo das bacias hidrográficas inseridas em solo urbano. Um problema antigo no país e de responsabilidade do poder público. O que tem faltado para resolver esse problema?

 

Paulo Carneiro: Primeiro, uma questão que está no centro do problema no Brasil se refere ao déficit habitacional. As populações não ocupam áreas de risco com uma opção consciente; essas áreas estão disponíveis porque estão fora do mercado. E o que se verifica é um agravamento do déficit habitacional nas últimas décadas até pela inexistência de programas que viessem suprir essa lacuna. No Governo Lula, após muito anos de ausência de políticas habitacionais, foi criado o programa Minha Casa, Minha Vida, mas ainda insuficiente frente os problemas acumulados. A questão da ocupação indevida do solo está relacionada a esse fator e precisa ser encarada com seriedade.

Outra questão é que a cada tragédia que ocorre no Brasil por conta das chuvas é como se fosse pela primeira vez. É como se a história desses desastres não deixasse um legado de aprendizado, de ações que foram implementadas e que pudéssemos falar: agora partimos daqui. No nosso país não existe de fato uma política de gestão de risco implantada. Essa colocação de sirenes na região Serrana do Rio de Janeiro após a tragédia, por exemplo, surgiu como uma resposta emergencial para um problema conhecido de longa data.

O que estou dizendo é que em todos os países onde existe a ocorrência de eventos naturais de grandes magnitudes os quais podem causar risco à vida das pessoas foram elaborados sistemas de alerta associados. Sistemas de prevenção/previsão, possibilitando algum nível de previsibilidade e de antecipação do problema; um esquema-ação para a retirada de pessoas a fim de evitar tragédias. No Brasil, porém, a Defesa Civil entra no final do processo, para retirar as pessoas de enchentes e de situações extremas. Ou seja, a Defesa Civil não atua antes porque não possui os instrumentos necessários. Isso mostra que o nosso país está engatinhando na resolução desses problemas; vemos a instalação de sirenes de alerta e de radares hidrológicos há pouco tempo, e esses instrumentos precisam ser melhor dimensionados para alcançar respostas efetivas sobre os eventos naturais. Fora que esses sistemas precisam estar conectados a outros órgãos de forma articulada para que essa resposta venha antes da tragédia; ou para que parte do dano possa ser evitado.

É curiosa essa constatação. Mas se você olhar a história do Rio de Janeiro, o estado tem casos muito antigos de deslizamentos de encostas, de casos envolvendo chuvas. No entanto, o poder público fluminense não construiu um legado de conhecimento sobre esse problema.

– No seu livro “Controle de Inundações em Bacias Hidrográficas Metropolitanas” você aponta a falta de uma gestão integrada dos recursos hídricos – essa tem sido uma das principais barreiras para a diminuição das inundações?

Paulo Carneiro: O controle de inundações e cotrole de cheias sempre teve uma visão técnica e restrita ao escoamento das águas. Olhava-se o canal e a ideia era projetar canais por onde a água pudesse escoar rapidamente, tirando esse volume de águas da planície em direção ao mar. No entanto, o processo de urbanização nunca foi pensado para integrar as várias ações. Um exemplo é na Baixada Fluminense, onde os rios foram retificados com a construção de diques para que se aumentasse o volume de águas das chuvas, eles não extravazassem e não ocupassem as águas marginais. Essa solução foi utilizada entre as décadas de 1930 e 1960. Porém a partir da década de 1970 com a intensificação do processo migratório para o Rio de Janeiro essas áreas foram perdendo a vocação agrícola e ganhando um status de área dormitório na qual as populações migrantes ficavam para trabalhar na cidade do Rio. A urbanização e o processo de impermeabilização do solo aumentaram a recorrência dos eventos naturais (das chuvas) e aquela estrutura montada não suportou mais.

Quando conto esse caso é para ilustrar que a questão da gestão do uso do solo e dos recursos hídricos, mais o controle de cheias, eram assuntos desconectados – tratados em separado pelo poder público. E não é que sejam hoje conectados; mas há pelo menos uma visão mais integrada no domínio técnico e no âmbito da academia, sendo apropriado lentamente pelo poder público. O que se sabe é que não é possível separar essas instâncias. O estado do Rio de Janeiro tentou avançar nessa questão quando o INEA, a partir da fusão da Serla, Fema e IFF, criou uma diretoria de “Gestão da Água e do Território”. Porém, ao avaliar a estrutura dessa diretoria e a sua forma de operação, vê-se que estamos muito longe ainda de uma gestão efetivamente integrada dos recursos hídricos envolvendo estado e municípios.

 

– Isso também tem a ver com a fragmentação institucional no Brasil?

Paulo Carneiro: Sim. O INEA no caso do Rio de Janeiro pode atuar de forma cooperativa/indutora para que o município vá incorporando políticas de controle do uso do solo e gestão dos recursos hídricos como pano de fundo. Mas isso tem limites, porque o órgão estadual não pode exigir que a política seja implementada nesse sentido, já que cada município tem a sua autonomia. Os Planos Diretores, por exemplo, de municípios que compartilham territórios comuns (caso da Baixada Fluminense), se você espacializar o zoneamento que esses Planos Diretores fazem do território, vai ver que a equação não fecha. E por que isso ocorre?

Porque não é possível fazer um plano de controle de inundações sem considerar obrigatoriamente a bacia hidrográfica (a gota de água que cai naquela serra vai atingir o rio principal em algum momento). A ação de um município pode causar inundação em outro município que está situado abaixo, na bacia. Ou seja, essas regiões com muitos municípios que compartilham bacias precisam ter uma gestão regional/metropolitana integrada para dar conta do problema.

– Quer dizer que o Brasil tem dois desafios grandes para enfrentar a questão do controle das inundações: o primeiro que diz respeito a uma visão setorialista da gestão do solo urbano e dos recursos hídricos; e segundo, essa barreira do federalismo que muitas vezes inviabiliza um diálogo e uma política integrada nas regiões?

Paulo Carneiro: São dois desafios grandes e eu sou muito cético com a possibilidade desse arranjo que o Brasil construiu na sua Constituição, do modo como tem sido feito. E não quero extrapolar para todas as áreas. Quero falar somente da área na qual atuo. Não é possível pensar as cidades litorâneas, por exemplo, que são as cidades que concentram o maior contingente populacional (a exceção de São Paulo que é um planalto) e compartilham um território regional comum, envolvendo bacias hidrográficas, de forma fragmentada. Essas cidades precisam de políticas regionais, tendo em alguns casos como viés comum a bacia hidrográfica; fora as políticas urbanas-municipais que também devem ser planejadas de modo integrado para todo o território.

Do modo como é hoje, essa equação nunca poderá dar um bom resultado; e não vejo como avançar nisso, já que no Brasil há várias questões políticas envolvidas nessas decisões. A Baixada Fluminense, por exemplo, tem gestões muito deficitárias e capacidade técnica ruim para pensar esse planejamento integrado. Ou seja, há uma barreira institucional e outra técnica. E é difícil avançar.

Entrevista realizada por Breno Preto/Comunicação Observatório das Metrópoles

 

Leia também:

O Arco Metropolitano e o Futuro da Baixada Fluminense, por Paulo Carneiro.

Última modificação em 17-01-2013 14:16:55