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O site do Observatório disponibiliza na íntegra o número 23 da revista Cadernos Metrópole,  cujo tema é “trabalho e moradia.” Os textos reunidos neste número abordam um dos fenômenos mais marcantes observados nos aglomerados urbanos e nas metrópoles contemporâneas que é o da mobilidade diária da população residente, provocada pela dissociação entre local de moradia e local de trabalho. Na maioria dos casos, as grandes proporções desses movimentos se originam em municípios com baixa capacidade interna de absorção de mão-de-obra ou com serviços educacionais que não atendem às necessidades da população. Tal fenômeno se deve, também, à concentração das oportunidades de trabalho e educacionais nos municípios de maior porte, em geral polos das aglomerações ou das áreas metropolitanas que exercem funções de centralidade em relação ao entorno e direcionam a sua dinâmica.
Tais movimentos, que ocorrem principalmente em função do trabalho e da busca pelas condições de educação, não são realizados apenas pelos segmentos populacionais de baixa renda, mas atingem vários setores da população ocupada. A maior concentração dos fluxos registra-se naqueles municípios que exercem a função de “dormitórios”, concentrando segmentos de baixa ou alta renda, onerando o sistema público de transporte e demandando serviços de vários tipos em razão dos deslocamentos.
Outras questões emergem quando se propõe o debate sobre a conexão/desconexão entre moradia e trabalho nas metrópoles contemporâneas. No caso das metrópoles brasileiras, imediatamente vêm à tona os problemas gerados – ao longo das últimas quatro décadas – pela formação e expansão de periferias pobres, pela distribuição inadequada de serviços públicos e bens de consumo coletivo, produzindo os processos conhecidos como segregação socioespacial. Esse modelo de estruturação metropolitana está, por sua vez, vinculado a formas de gestão do Estado que se articulam a interesses de alguns setores da economia e geram impactos no âmbito dos investimentos públicos e na dinâmica econômico-social urbana.
Diante desse quadro, cabe indagar em que medida essas tendências apontam para a consolidação de metrópoles segmentadas, com base na divisão entre municípios ricos e municípios pobres, com a distribuição desigual de oportunidades de trabalho, estudo e geração de renda, onde a desconexão trabalho-moradia se instala como modelo.
Os textos reunidos neste número dos Cadernos Metrópole debatem essas e outras importantes questões que compõem o quadro dos desafios que se apresentam aos estudiosos da questão urbana e aos formuladores de políticas públicas.
Partindo da hipótese de que os processos de segmentação territorial e segregação residencial em curso nas metrópoles brasileiras têm grande importância na compreensão dos mecanismos de reprodução das desigualdades sociais e da exclusão, Luiz César de Queiroz Ribeiro, Juciano Martins Rodrigues e Filipe Souza Corrêa discutem os possíveis efeitos da segregação residencial sobre as oportunidades geradas pelo mercado de trabalho, em 17 regiões metropolitanas, a partir da transformação estrutural à qual foram submetidos os espaços urbanizados nas últimas décadas. Com base em evidências empíricas, o texto procura demonstrar os efeitos da composição social dos bairros sobre as oportunidades de emprego dos adultos, apontando para a existência de maiores riscos e maior vulnerabilidade social nas áreas de concentração de pobreza. Os resultados encontrados contribuem para a discussão da segregação residencial como uma variável importante para a compreensão dos mecanismos que produzem e reproduzem a desigualdade em diferentes metrópoles no Brasil.
No trabalho de Rosa Moura, a desconexão moradia/trabalho também é observada a partir dos movimentos pendulares da população brasileira para trabalho e/ou estudo, com foco especial no caso do estado do Paraná. Para Moura, o perfil da população que se desloca retrata as relações espaciais entre o mercado de trabalho e a moradia na organização interna das metrópoles, evidenciando as diferenças quanto à acessibilidade às funções metropolitanas, expressão, por seu lado, das formas de segregação socioespacial. O trabalho assinala que esses movimentos têm se ampliado, considerando o número de pessoas envolvidas e as distâncias percorridas, o que demanda sua compreensão analítica e a formulação de políticas públicas compatíveis às dinâmicas territoriais urbanas. Conforme a autora, as consequências dessa desconexão afetam diferencialmente os segmentos da população, dificultando a acessibilidade dos pobres ao trabalho, à renda e aos bens de consumo coletivos, acirrando a desigualdade nos espaços urbanos/metropolitanos.
No âmbito desse debate, o artigo de Luciana Corrêa do Lago e Rosetta Mammarella busca traçar as grandes tendências na organização social do território metropolitano brasileiro, orientando-se por um conjunto de pressupostos e questões construídos ao longo da trajetória de quinze anos de pesquisa do Observatório das Metrópoles. Partindo do suposto de que o grau de diversidade ou homogeneidade social de um bairro exerce forte influência sobre as ações dos indivíduos ali residentes, examinam as alterações no padrão intrametropolitano de localização das classes sociais em quatro metrópoles brasileiras – São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre – com base nas categorias sócio-ocupacionais construídas a partir dos dados censitários de 1991 e 2000.
Focalizando mais especificamente a região metropolitana do Rio de Janeiro, o estudo de Érica Tavares da Silva investiga as tendências dos movimentos populacionais articulando-as às grandes transformações na organização social do território. A análise utiliza uma classificação tipológica da evolução socioespacial segundo a hierarquia ocupacional e investiga quais áreas da tipologia têm se caracterizado por maior imigração e sob quais modalidades de fluxos: núcleo-periferia; periferia-núcleo; periferia-periferia; intraestadual; interestadual. Os resultados apontam para diferenças na mobilidade espacial intrametropolitana conforme as modificações observadas nos tipos socioespaciais, ao longo do período estudado. Apontam, também, para a conexão entre segregação socioespacial e segmentação da mobilidade.
Restringindo o foco da análise para a zona oeste da metrópole do Rio de Janeiro, o texto de Cristina Lontra Nacif e Gisele Teixeira Antunes discute alguns aspectos da reconfiguração socioespacial daquela área da periferia, com destaque para Campo Grande, centro funcional de reconhecida importância regional. Partindo da constatação de que o bairro está sendo impactado por grandes obras de infraestrutura, além de vários lançamentos do mercado imobiliário e da implantação de novas indústrias, as autoras indagam se tais investimentos produzirão a reafirmação da centralidade de Campo Grande, realizando a expectativa de desenvolvimento socioeconômico na região. Mais do que isso, questionam a possibilidade de alteração ou de continuidade do clássico modelo centro-periferia de expansão metropolitana, a partir do caso analisado.
Em que pesem as diferenças e especificidades em termos de sua estruturação territorial, a região metropolitana de Brasília não foge ao modelo característico das demais metrópoles brasileiras, com padrões similares de segregação residencial, processos intensos de mobilidade pendular e políticas de gestão territorial incapazes de equacionar as demandas sociais crescentes, presentes na relação centro-periferia.
Os dois textos sobre Brasília, publicados neste número, possuem caráter complementar e analisam 1) a presença de fatores claramente antagônicos entre a moradia e o emprego, agravados pela concentração dos empregos públicos, da esfera federal, na área central do Distrito Federal (Beatriz Teixeira de Souza e Rômulo José da Costa Ribeiro). Essa área, tombada como patrimônio, não pode receber novas moradias, residindo muitos dos que ali trabalham em áreas periféricas do entorno, distantes dos empregos; 2) em que medida fatores como a influência da ação do Estado na alocação de postos de trabalho e moradia foram importantes para a conformação de um gradiente social de rendas descendentes do centro para a periferia, com elevados níveis de segregação residencial e segmentação territorial, conforme colocação de George Alex da Guia e Lucia Cony Faria Cidade.
Desses dois trabalhos, depreende-se a presença, no aglomerado metropolitano de Brasília, de um contínuo processo de periferização dos pobres em direção ao entorno e do fortalecimento da autossegregação de parte dos setores médios, intelectuais e dirigentes nas áreas centrais do Distrito Federal. Depreendem-se, também, o caráter excludente da política habitacional e o descompasso gerado pelo processo de dispersão urbana, com a geração de elevados custos sociais.
A análise das consequências de dois processos distintos de segregação na região metropolitana de Belo Horizonte, apresentada no texto de Luciana Teixeira de Andrade e Jupira Gomes de Mendonça, recoloca a questão de como a homogeneidade ou a heterogeneidade social produzem impactos nas oportunidades no mercado de trabalho ou apresentam estruturas de oportunidades diferenciadas.
Os contextos analisados são o eixo norte de Belo Horizonte, onde se localizaram, a partir dos anos 1970, os municípios “dormitório” pobres, com características de forte homogeneidade, e o eixo sul, onde se observou, a partir dos anos 1990, a autossegregação de grupos de alta renda, em condomínios residenciais fechados. Tal região atraiu, posteriormente, segmentos de baixa renda em busca de empregos pouco qualificados, constituindo-se em área marcada pela heterogeneidade social. Apesar de analisarem fenômeno presente na maioria das cidades brasileiras, as autoras apontam para especificidades atribuídas à história dessas áreas e concluem pelos efeitos positivos da maior mistura social sobre a estrutura de oportunidades e menor estigmatização dos residentes, ao contrário de áreas da periferia que se homogeneízam pela pobreza, criminalidade e violência.
A proposta de uma análise antropológica que permita estabelecer a diferenciação entre áreas pobres na cidade de Salvador ressalta a importância das redes sociais na conformação de atores sociais coletivos e na emergência de novos tipos de atores políticos e comunitários. Conforme propõem os autores Maria Gabriela Hita e John E. Gledhill, uma análise etnográfica de como as pessoas vivem pode oferecer uma melhor compreensão das diferentes situações urbanas periféricas, bem como subsidiar a reformulação de políticas públicas voltadas a essas áreas.
Completando o debate do tema do dossiê e situando-se na linha de estudos denominada “heterogeneidade da pobreza urbana”, o trabalho de Izabella Maria Zanaga de Camargo Neves e José Marcos Pinto da Cunha discute um dos aspectos centrais de tal heterogeneidade que diz respeito às distintas formas de morar numa metrópole, a partir da ótica dos estudos demográficos. Partem do pressuposto de que a composição e produção do espaço urbano e toda sua heterogeneidade e desigualdade, em particular os assentamentos populares, são também, em parte, reflexo das características sociodemográficas da população residente.
O texto tem como objetivo analisar a relação entre as diferentes etapas do ciclo vital familiar/do curso de vida individual e a condição migratória com as alternativas existentes para obtenção da moradia em áreas metropolitanas, a partir de estudo realizado na Região Metropolitana de Campinas. Segundo afirmam os autores, não apenas o movimento migratório mas também o tempo de residência podem se traduzir em ativos para algumas famílias no sentido de melhorar suas condições habitacionais. O aprofundamento destas relações bem como a identificação dos mecanismos a partir dos quais as características demográficas atuam sobre a dinâmica habitacional são aspectos importantes para a compreensão dos processos de segregação socioespacial.
Complementarmente a esse debate, o texto de Celene Tonella considera o modelo de ocupação das periferias urbanas e metropolitanas como parte de uma dinâmica excludente e segregadora, que produz e reproduz as favelas e as chamadas “habitações subnormais”, abrigando aqueles que nem sequer tiveram acesso ao terreno periférico e/ou à casa própria. Essa dinâmica estabelece uma relação direta entre o local de moradia e o tipo de habitação com a forma de integração das pessoas no mercado de trabalho. A partir de um balanço da bibliografia recente sobre o tema, aponta algumas situações diferenciadas, porém recorrentes, em áreas metropolitanas. Seu artigo tem por objetivo revisitar a história de luta dos trabalhadores pobres por um lugar para morar na cidade de Curitiba, Paraná, marcada de modo crescente pelas ocupações irregulares de terrenos para moradia e por um número crescente de famílias residindo em áreas de risco social e ambiental.
Numa outra vertente do debate sobre as periferias pobres e a questão social metropolitana, o texto de Acácio Augusto analisa de forma contundente as consequências dos investimentos em políticas assistenciais que visam solucionar o chamado problema da “violência urbana”. Tais políticas indicam uma via da configuração das periferias das grandes cidades ou das chamadas cidades globais como “campos de concentração a céu aberto”. A partir da apresentação de um projeto de aplicação de medidas socioeducativas em meio aberto para os chamados adolescentes infratores, o autor analisa os impactos dessas medidas em áreas consideradas de risco e/ou habitadas por jovens classificados como em situação de vulnerabilidade social.
O conceito sociológico de gueto, colocado por Wacquant, é problematizado a partir da noção de campo de concentração a céu aberto proposta por Edson Passetti e da análise genealógica de Michel Foucault.
A contribuição final às análises apresentadas neste número é feita por Paulo Romano Reschilian, que discute o contexto socioespacial das metrópoles brasileiras como campo de análise, tendo em vista a criação de mecanismos de gestão e de instrumentos urbanísticos, na perspectiva do planejamento urbano contemporâneo. Aborda, para tanto, a dinâmica urbana e a espacialização da pobreza como indicativos de uma ordem territorial na qual a existência de assentamentos precários tem marcado o processo de construção social da paisagem urbana. Nas análises propostas, o autor remete à necessidade de identificar os elementos para a formulação de uma abordagem multidimensional que possibilite a apreensão dos aspectos componentes da urbanização desigual, bem como os limites à ação cidadã e à atuação do Estado.
A relevância das discussões trazidas pelos textos aqui reunidos, a riqueza dos dados e a relevância das questões apresentadas oferecerão ao leitor um amplo leque de possibilidades de reflexão e deverão inspirar novos estudos e pesquisas sobre os temas tratados em sua diversidade e grande complexidade.
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