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Autogestão habitacional: entre a utopia e o mercado

By 29/10/2014janeiro 23rd, 2018Notícias, Teses e Dissertações
Conjunto Paulo Freire, em São PauloConjunto Paulo Freire, em São Paulo                   Crédito: Observatório das Metrópoles

Em que medida a política nacional de habitação formulada a partir de 2003 para a autogestão viabilizou a produção de habitação de interesse social? Esse é o ponto de partida da tese “Autogestão e Habitação: entre a utopia e o mercado”, de Regina Ferreira, mais um resultado do INCT Observatório das Metrópoles. O trabalho traz o mapa dos “empreendimentos” contratados por programas como Crédito Solidário e MCMV Entidades, identificando suas vinculações com movimentos de moradia e reforma urbana organizados nacionalmente.

A tese “Autogestão e Habitação: entre a utopia e o mercado”, de Regina Fátima Ferreira, foi defendida no primeiro semestre de 2014 no âmbito do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), sob a orientação do professor Orlando Alves dos Santos Júnior. Regina foi conselheira do Conselho das Cidades e militante do movimento de reforma urbana, dessa experiência –  e mais da sua participação na Rede Nacional INCT Observatório das Metrópoles no âmbito do GT Moradia, coordenado pelos professores Adauto Cardoso e Luciana Lago –, surgiu o interesse de investigar as experiências de habitação autogestionária no Brasil.

 

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A sua tese analisa a política nacional de habitação para autogestão formulada a partir de 2003 e, como desdobramento, a produção de habitação de interesse social realizada por cooperativas e associações comunitárias vinculadas aos movimentos de moradia e reforma urbana. E busca identificar que fatores facilitaram e quais bloquearam a implementação dos programas e discutir em que medida esta política responde à utopia de apropriação coletiva do espaço e realização do direito à cidade, conforme concebida na década de 1980 pelo movimento de reforma urbana.

Regina Ferreira explica que a metodologia utilizada envolveu revisão bibliográfica, entrevistas semi-abertas com lideranças nacionais dos movimentos sociais urbanos, levantamento de dados sobre os programas junto à Secretaria Nacional de Habitação, levantamento dos empreendimentos ligados aos movimentos nacionais urbanos, levantamento de dados junto à secretaria do Fórum Nacional de Reforma Urbana, levantamento das resoluções das Conferências e do Conselho das Cidades.

 

Movimentos sociais e a luta pela moradia: percurso histórico

A tese mostra que na década de 1980, os movimentos de moradia se articularam com outras organizações da sociedade (sindicatos, universidades, organizações não governamentais) ampliando a luta pela terra e pela moradia para a luta pelo direito à cidade, constituindo o movimento nacional de reforma urbana (MNRU), posteriormente denominado Fórum Nacional de Reforma Urbana, que se mantém desde então, organizado. Na plataforma da reforma urbana no Brasil destacam-se tanto as lutas pelo acesso universal aos serviços urbanos através de políticas urbanas redistributivas, quanto pela apropriação criativa do espaço urbano. “O caráter político emancipatório da rede de reforma urbana está expresso nas lutas dos movimentos sociais para a realização de processos autogestionários nas cidades e para a participação social nos processos de planejamento e gestão municipal, materializando o que David Harvey anunciaria como a utopia de espaço e de processo”, explica Regina e completa:

“A concepção do direito à cidade, conforme enunciada na década de 1960 por Lefèbvre (2008), envolvendo não só o direito ao trabalho, à instrução, à educação, à saúde, à habitação, aos lazeres, à vida, mas também o direito à criação, à atividade participante e à apropriação da cidade, influenciou a trajetória deste movimento, que se mantém atuante desde o processo de redemocratização e construção de uma nova Constituinte (1987). Durante este período, o movimento de reforma urbana logrou a conquista de marcos legais na direção do direito à cidade como a inclusão, em 2000, do direito à moradia como um direito social fundamental na Constituição Federal do Brasil e a aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001, referência para a regulação do uso do solo e a implementação de uma política fundiária urbana”.

As conquistas legais, no entanto, não representaram uma mudança substancial na realidade urbana brasileira, notadamente marcada pela segregação socioespacial e pelas desigualdades intraurbanas, metropolitanas e regionais. É neste contexto que vão se inserir as lutas dos movimentos de moradia e reforma urbana tanto por políticas de habitação de interesse social voltadas para grupos autogestionários quanto pela radicalização da participação social nos processos de formulação e gestão das políticas urbanas, visando à construção de uma utopia de espaço e de processo.

“A atuação dos movimentos sociais urbanos para a garantia do acesso à moradia digna e a demanda por recursos, programas e ações que financiassem a produção autogestionária da habitação manteve os movimentos unificados desde o processo de redemocratização e foi fundamental para a retomada dos investimentos do Estado na política habitacional e na inclusão de associações e cooperativas como agentes proponentes e executores da política nacional de habitação”, argumenta a pesquisadora.

Segundo ela, a eleição de Lula para presidente em 2002 gerou uma grande expectativa quanto às possibilidades de se avançar na direção da implementação de processos autogestionários nas cidades. De fato, em 2003 teve início um processo de conferências públicas, nas três esferas de governo (municipal, estadual e federal) para a discussão das diferentes políticas. A 1ª Conferência das Cidades inaugurou a discussão participativa das políticas urbanas e resultou na criação do Conselho Nacional das Cidades, com representação dos diversos segmentos sociais que atuam na cidade.

Já a construção de uma política habitacional voltada à autogestão foi um processo lento, onde os movimentos sociais foram quebrando, pouco a pouco, as resistências tanto do poder legislativo, quanto do poder executivo, a partir da sua atuação nas esferas institucionalizadas (Conferências, Conselhos, audiências públicas), mas, sobretudo, a partir da atuação nas mobilizações nacionais (Caravanas pela Moradia, Jornadas de Lutas), pressionando para que a autogestão na produção de habitação de interesse social (HIS) viesse a se estabelecer definitivamente na agenda pública.

Em 2004, foi criado o Programa Crédito Solidário; em 2008, foi lançada a Ação de Produção Social da Moradia; e, em 2009, o Programa Minha Casa Minha Vida Entidades; este último, o principal programa hoje em funcionamento. Como resultado da implementação destes programas, é possível identificar, desde 2005, experiências de provisão habitacional lideradas por associações, cooperativas e grupos populares, em vários estados brasileiros.

 

Habitação autogestionária, direito à cidade e mercado

Regina Ferreira aponta que, embora a produção de habitação de interesse social realizada pelos movimentos urbanos tenha pouco impacto na quantidade de unidades de habitação de interesse social produzida quando comparado com a produção do mercado, a produção de HIS autogestionária estaria se constituindo em um processo de legitimação dos próprios movimentos junto à sua base na sua atuação em torno da política urbana, em geral, e da política de habitação, especificamente. “Há que considerar, ainda, que a inserção dos movimentos nos programas públicos habitacionais tenderia a deslocar o foco da atuação dos movimentos para a produção específica da moradia, diminuindo em parte sua autonomia com relação ao Estado”.

Como objetivos específicos do trabalho, pretendeu-se:

– Discutir a questão da habitação tanto como um problema social, tendo o Estado um papel central na formulação de uma política pública específica que dê conta do problema, quanto como um elemento em potencial de organização e inserção social;

– Resgatar a longa trajetória realizada pelos movimentos sociais urbanos, desde a década de 1980, para a construção da política nacional de habitação e a incorporação de grupos, associações e cooperativas como agentes promotores da política habitacional;

– Identificar a produção habitacional que vem sendo feita a partir dos programas federais criados desde 2004 para a autogestão e discutir os principais gargalos existentes hoje na implementação dos programas habitacionais voltados para a autogestão;

– Identificar as concepções de autogestão habitacional que os movimentos de moradia e reforma urbana no Brasil defendem, bem como suas percepções quanto ao que vem sendo posto em prática a partir dos programas existentes e a correspondência ou não com o ideário da autogestão.

 

No Capítulo 2 “Habitação como uma questão social”, por exemplo, a pesquisadora buscou identificar como a questão habitacional se constitui como um problema social, ou seja, não como um problema individual, mas de uma coletividade, o que tornou obrigatória a intervenção do Estado. “De fato, o problema habitacional inaugurou historicamente a intervenção do Estado nas cidades, papel antes praticamente restrito à iniciativa privada. A fragilidade ou a inexistência desta intervenção – de forma proposital (ou não) – resultou na ocupação humana de áreas impróprias ou distantes dos centros e de suas infraestruturas. Destacou-se que o problema da moradia envolve fundamentalmente o problema da terra. Sem terra em área urbanizada, com a adequada infraestrutura, dificilmente o Estado pode atender à demanda por moradia de interesse social”.

O Capítulo 3 “Movimentos sociais urbanos e a política nacional de habitação” busca reconhecer e resgatar a construção de dois significativos movimentos sociais no Brasil, o movimento de moradia e o movimento de reforma urbana, a partir justamente da carência histórica de moradia e de infraestrutura urbana para a população mais desprovida de condições materiais. Ao resgatar a origem destes movimentos, procurou-se identificar o papel estratégico que tiveram na construção da política nacional de habitação hoje em vigor e, particularmente, na política habitacional destinada à autogestão.

O Capítulo 4 “A produção autogestionária de habitação de interesse social” envolveu, primeiramente, o esforço de identificar o que vem sendo produzido no país, desde 2003, dentro do que vem sendo chamado de autogestão habitacional. Assim, mapeou-se os “empreendimentos” contratados pelos programas nacionais (Crédito Solidário, Ação de Apoio à Produção Social da Moradia e Programa Minha Casa Minha Vida Entidades), identificando-se sua vinculação com movimentos de moradia e reforma urbana organizados nacionalmente. Para este mapeamento, Regina Ferreira conta que foram realizadas duas visitas à Secretaria Nacional de Habitação, que gentilmente cedeu os dados sobre os empreendimentos contratados.

“Na direção de compreender o que é a autogestão no Brasil e as diversas concepções dos diferentes movimentos de moradia sobre o tema, realizei entrevistas com lideranças nacionais dos quatro movimentos organizados nacionalmente, envolvidos com os programas Crédito Solidário, Ação de Produção Social da Moradia e Minha Casa Minha Vida Entidades. Nestas entrevistas busquei identificar os objetivos pretendidos por cada movimento com a participação no programa, a metodologia utilizada por cada um para a constituição e seleção do grupo beneficiário, os processos de formação empreendidos; a existência ou não de um padrão de gestão da obra. Busquei também identificar os principais problemas que estas lideranças vêm identificando nos programas, qual a sua percepção dos resultados obtidos e, principalmente, sua avaliação sobre os mesmos, considerando o ideário que levou à reivindicação da autogestão na política habitacional pelos movimentos de moradia e reforma urbana”.

Regina afirma que o objetivo final do trabalho é poder resgatar parte da história recente sobre a política nacional de habitação de interesse social, vinculada a processos de autogestão nas cidades, bem como refletir sobre o rumo dos programas públicos de autogestão habitacional, conquistados pelos movimentos sociais urbanos.

“A ideologia da casa própria valorizou a concepção da casa como mercadoria: inserir-se num programa público de habitação é a possibilidade de fazer parte desta ideologia. Mas, além de constituir-se como uma mercadoria numa sociedade capitalista, a casa é um bem fundamental para a experiência de vida humana. O seu valor, pela sua natureza, é essencialmente um valor de uso ainda que tenha um valor de troca cuja centralidade na sociedade capitalista é inquestionável”, explica e completa:

“O acesso à moradia não garante, no entanto, necessariamente o acesso à cidade e a inclusão social. Não são poucos os exemplos de beneficiários de programas públicos de HIS que, em pouco tempo, passaram adiante sua propriedade, vindo a ocupar novamente áreas impróprias. Mudar esse quadro representa também mudar a realidade social dessas pessoas e as suas possibilidades de realização enquanto indivíduo, pertencente a uma coletividade”.

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RESUMO

FERREIRA, Regina F. C. F. Autogestão e Habitação: entre a utopia e o mercado. 2014. 219f. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

Para acesso à tese “Autogestão e Habitação: entre a utopia e o mercado”, acesse: http://objdig.ufrj.br/42/teses/818065.pdf

Para contato com a autora, segue o endereço: reginafatimaferreira@gmail.com

 

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O impasse da política urbana no Brasil | Ermínia Maricato

 

 

Publicado em Produção acadêmica | Última modificação em 29-10-2014 12:13:08