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ARQUITETURA & URBANIDADE

Arquitetos um dia pensaram que do lápis brotaria uma nova sociedade. Nos anos 1970 o sonho acabou. A descoberta do equívoco golpeou pesadamente a teoria da arquitetura. Passado o choque, há que recuperar o tempo perdido: a arquitetura não cria por si só uma nova sociedade, mas afeta nossos modos de convívio.  “Arquitetura & Urbanidade”, organizado pelo professor Frederico de Holanda (FAU/UnB), ganha agora 2ª edição e traz como tema as relações entre espaço e comportamento seja na região metropolitana de Brasília, nas pequenas cidades, bairros e residências unifamiliares.

Leia abaixo a Apresentação do livro, por Frederico de Holanda.

Leia a resenha do livro publicada no portal Vitruvius: http://vitruvius.es/revistas/read/resenhasonline/03.029/3188

Para mais informações, acesse http://fredericodeholanda.com.br/

APRESENTAÇÃO

Alguns estudos aqui apresentados são inéditos. Outros foram conhecidos na forma de comunicações a congressos, mas nem sempre publicados nos anais. Mesmo os publicados não eram acessíveis a públicos mais amplos. Demo-nos conta de rica matéria-prima para ir ao forno. Mais ainda: parecia haver uma forte idéia central a percorrer os textos, conferindo-lhes a unidade que se reflete no título da obra. Para esclarecer, façamos as observações preliminares.
Os textos têm por referência metodológica mais geral procedimentos originários de um projeto de pesquisa em desenvolvimento há quase duas décadas intitulado “Dimensões Morfológicas do Processo de Urbanização” – Dimpu. Dele têm participado professores e alunos (mestrado/graduação) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília. Tais procedimentos metodológicos foram extensamente discutidos noutras oportunidades. Neste livro usamos também procedimentos metodológicos mais específicos, da teoria da sintaxe espacial. Refiramo-nos a uns e outros

O espaço arquitetônico afeta-nos, independentemente da escala em que se apresente: edifício individual, bairro, cidade inteira, paisagem regional. Algumas afetações são simultaneamente mais evidentes e menos controversas. Não há muita discussão em torno de uma casa poder atingir-nos como mais quente/fresca, mais apertada/espaçosa, mais cara/barata de construir, que nos encanta por sua originalidade ou nos parece banal. Estas e outras maneiras da arquitetura atingir-nos podem ser chamadas aspectos de desempenho do espaço arquitetônico. Referem-se a como ele responde às nossas expectativas de conforto ambiental, funcionais, econômicas, estéticas etc. Surge o primeiro divisor de águas: não nos interessam intenções declaradas ou camufladas (o inferno tem muitas) que pressupostamente originaram um edifício. Importam-nos os resultados no espaço pronto, como nos afetam. Nesta obra o leitor conhecerá procedimentos analíticos para avaliar tais resultados em situações sociais e ante determinados valores.

Mas o foco da atenção não recairá sobre os aspectos comentados há pouco, embora possam ser abordados en passant de capítulo a capítulo. O aspecto dominante de nossas atenções pode ser caracterizado preliminarmente “como a configuração de edifícios e cidades afeta nossos modos de convívio social, nosso jeito de interagir com outras pessoas, a maior ou a menor facilidade que temos de nos reunirmos em determinados lugares ou as estratégias de vigilância e controle de uns sobre outros”. Percebemos entrar em campo controverso, embora os estudos deste livro sugiram que (sim!) a arquitetura nos afeta dessa maneira, contradiz olhares céticos pelos quais (absurdo!) nossos comportamentos com o próximo são indiferentes à configuração dos lugares utilizados. Entram então os procedimentos metodológicos caros à teoria da sintaxe espacial.

Vêm à mente as discutidas relações de “determinação” espaço x sociedade na arquitetura, na geografia ou noutras ciências sociais, que serão especificamente tratadas. O “espaço” será conceituado sistema de barreiras e permeabilidades que interfere em nossos movimentos sobre o chão. A “sociedade” será  sistema de encontros interpessoais. Importa quem se encontra com quem, para fazer o que, quando e onde. A relação espaço x sociedade será entre os dois sistemas, sem propormos que espaço e sociedade sejam exclusivamente isto. São isto e mais. Estamos propondo um tipo de leitura para cada coisa. A questão é: a leitura serve a quê? Lança luz sobre aspectos obscuros da realidade? Melhora nossa prática de projeto?

Retomando “determinação”, estudos demonstram que configurações espaciais e sistema de encontros apresentam significativa co-variação na história. Simplificando: cidades densas – medievais européias ou coloniais brasileiras – correspondem consistentemente a intenso uso de espaço público aberto. No segundo nível, de mais interesse, configurações físicas e encontros sociais relacionam-se também a igualdades/desigualdades sociais, i.é., a sistemas de poder; parecem-lhe intrínsecos. Sociedades mais desiguais associam-se a certos atributos espaciais e a sistemas de encontro, não a outros; e vice-versa. Ressimplificando: descontinuidades espaciais em sistemas de encontros mais formais e fora do espaço público vêm também junto a sociedades desiguais, como a feudal francesa dos castelos.

Dizer, todavia, da co-variação de instâncias não necessariamente implica dizer de sua mútua determinação. Causas externas podem provocar estados em um e em outro sistema. Se este o caso, sistemas de encontro e a arquitetura seriam variáveis dependentes da outra causa, e esta última a variável independente “causadora”. Poderia ser – na fórmula clássica do marxismo – luta de classes. Atentemos para esta possibilidade, sabendo que isto não diz tudo. Seria reduzir a arquitetura a epifenômeno, coisa que resulta de outra coisa, sem nada provocar. Nos sistemas de encontros sociais significaria negar à arquitetura capacidade de afetar-nos as vidas, como nos aspectos conforto ambiental, funcionalidade, economia, beleza.

É clara a dificuldade neste campo de pesquisa; não se deve camuflar. Pessoas utilizando edifícios e cidades não constituem uma situação laboratorial em que é fácil isolar variáveis para identificar a mútua interação. Em situações sociais reais são enormes a quantidade e a complexidade de variáveis, embora uma evidência crescente sugira papel não passivo da arquitetura para com nossos estilos de vida e maneiras de encontrar (ou não) pessoas. Há situações em que o “determinismo arquitetônico” é óbvio. Noutras, as relações são fortes, porém não definitivas, e existem as muito tênues. A estrada que liga a arquitetura aos sistemas de encontros interpessoais tem mão dupla; a arquitetura é concomitantemente variável dependente e independente. Cabe entender seu papel em casos específicos.
Estudos acumulados sobre relações espaço x sociedade esclarecem a determinação, revelam-na mais limitada e precisa do que suposto, sem exagerar, como Bruno Taut, ao acreditar que a arquitetura da casa é “criadora de novas regras sociais”, ou como Le Corbusier, ao sugerir que a arquitetura evitaria “a revolução”. A evidência empírica não avaliza tais relações de arquitetura com estruturação familiar ou de arquitetura com democracia/arbítrio. Felizmente hoje se sabe mais sobre como a arquitetura interfere no convívio interpessoal, na presença/ausência em locais públicos, como evita erros graves do século XX em projetos de conjuntos habitacionais para classes pobres, por exemplo, visando fortalecer laços comunitários, mas galgando resultados exatamente opostos.

Em busca do tema, a obra não tratará genericamente das relações espaço x sociedade. Cada estudo de caso – o edifício em particular, uma família de edifícios, o bairro, a cidade, um aglomerado de cidades – terá por referência, à sua maneira, a urbanidade, conceito que interessa a nossos fins, porque simultâneo a espaço físico e a comportamentos humanos. Propus que urbanidade fisicamente caracteriza: a) minimizar espaços abertos em prol de ocupados; b) menores unidades de espaço aberto (ruas, praças); c) maior número de portas abrindo para lugares públicos (jamais paredes cegas); d) minimizar espaços segregados, guetizados (becos sem saída, condomínios fechados) e efeitos panópticos pelos quais tudo se vê e vigia.

Comportamentalmente, do Aurélio tragamos que “urbanidade” é a qualidade do “cortês, do afável, relativo à negociação continuada entre interesses”. Urbe (cidade) associa “urbanidade” a contexto citadino, contudo é ampliável. No âmbito urbano a “negociação de interesses” reporta-se a classes sociais ou etnias e na escola é entre funcionários, professores e estudantes. Na casa é entre gêneros e gerações, moradores e visitantes, patrões e empregados (capítulos 6º e 7º). Vale para sociedades e instituições não hierarquizadas, não ritualizadas, caracterizadas pelo espontâneo e pela improvisação, o que não se atém ao preestabelecido, não é convencional. Estudos demonstram, nada disso é necessariamente “desordem”, sim um tipo de ordem associada a instituições e sociedades mais democráticas.

Desejando facilitar sua leitura, comento preliminarmente os capítulos do livro:

1) A Determinação Negativa do Movimento Moderno = Texto talvez mais abstrato da coletânea, discute o determinismo arquitetônico. Cirurgias urbanas da era moderna são pano de fundo.
2) Uma ponte para a urbanidade =  Descreve a metrópole descontínua (Brasília) e seus custos sociais. A 1.ª versão deste é sucessivamente atualizada, fruto de contínua pesquisa sobre a estrutura urbana do Distrito Federal. Inédito.
3) Passado, presente e futuro de uma avenida moderna: W-3, Brasília = A proposta preparada para o “Concurso público nacional de idéias e de estudos preliminares de arquitetura e urbanismo para revitalização das avenidas W-3 Sul e W-3 Norte, em Brasília, Distrito Federal” (2002), premiada com a 3.ª colocação. Estuda vitalidade e decadência da W-3, em Brasília. Na internet conteúdo parcialmente veiculado. Inédito no formato desta obra. (www.vitruvius.com.br/institucional/institucional.asp.)
4) Urbanidade: o resgate. Nova Iorque – Maranhão = A experiência do projeto (1966-7) da pequena cidade, revisitada pós-15 anos; transformações efetuadas pela população no nosso projeto constituem emocionante lição de urbanismo vernacular, que resgata valores de urbanidade parcialmente negados no projeto original. Inédito.
5) Permanência e inovação: SQN-109, Brasília = Discussão do projeto de uma super quadra do Plano Piloto (em implantação), a partir da visão crítica de quadras preexistentes.
6) Meu quarto, meu mundo: o espaço doméstico na alvorada do 3.º milênio = Origina-se numa comunicação para congresso fundamentada em dissertação de mestrado. Reflete sobre transformações no espaço doméstico e faz estudo de caso de residências habitadas por estudantes de arquitetura em Brasília. Inédito.
7) Casa-átrio: Um Exercício em Auto-Análise = Ensaio sobre minha residência (Sobradinho – DF); o trabalho compara a as casas recém-analisadas na literatura sobre espaço doméstico. Escrevi esta apresentação no nosso sítio praieiro no Trairi – CE, ao ecoar dos belos livros de Duda Mendonça – “Casos e Coisas” – e de Anthony Bourdain – “Cozinha Confidencial”. Relembram-me dizer coisas sérias com leveza e humor, sem a sisudez acadêmica.

Oxalá, esteja eu a caminho!

Frederico de Holanda
Casa da Gangorra, Canaan, Trairi-CE, maio/2002