Skip to main content
Amadora, Portugal. Foto: Raquel Rolnik

Amadora, Portugal.  (Foto: Raquel Rolnik)

Os problemas de moradia não são exclusivos de cidades do chamado Sul Global, como as latino-americanas, entre as quais as brasileiras, e as africanas. Barcelona, na Espanha, e Lisboa, em Portugal, vivem uma enorme crise de moradia, que teve início em 2008, com o estouro da bolha imobiliária, e se perpetua, assumindo novas configurações neste momento. Nesta análise, a urbanista Raquel Rolnik relata o surgimento de situações de extrema precariedade habitacional nessas duas cidades europeias, resultado da alta dos aluguéis, do aumento do fluxo de turistas e do surgimento de um forte setor corporativo de na área de locação de imóveis. No fundo desse debate está o processo de financeirização urbana, no qual a renda fundiária urbana é o seu maior ativo.

O artigo “Aluguéis caros e despejos: a nova crise habitacional em Lisboa e Barcelona” foi publicado originalmente no site da Raquel Rolnik (https://raquelrolnik.wordpress.com). A Rede INCT Observatório das Metrópoles divulga a análise com o propósito de subsidiar o debate e as reflexões sobre as transformações nas cidades contemporâneas sob o advendo do neoliberalismo.

Aluguéis caros e despejos: a nova crise habitacional em Lisboa e Barcelona

Por Raquel Rolnik

Os problemas de moradia não são exclusivos de cidades do chamado Sul Global, como as latino-americanas, entre as quais as brasileiras, e as africanas. Barcelona, na Espanha, e Lisboa, em Portugal, vivem uma enorme crise de moradia, que teve início em 2008, com o estouro da bolha imobiliária, e se perpetua, assumindo novas configurações neste momento.

Em 2008, quando a bolha estourou, pessoas que haviam comprado apartamentos produzidos em massa nas periferias das cidades, através de financiamentos subprime, com a crise econômica (que afetou especialmente a Espanha), não conseguiram mais pagar as prestações. O subprime é uma modalidade de financiamento que oferece inicialmente uma série de vantagens para atrair pessoas com pouca capacidade de crédito, mas que, ao longo do tempo, aumenta a pressão sobre o devedor, deixando-o vulnerável. Com isso, hipotecas foram executadas e casas foram entregues aos bancos credores, deixando as pessoas sem moradia. Agora, nesse segundo momento, além de as execuções hipotecárias continuarem, apesar de terem diminuído, a crise assume outra característica: a explosão dos preços dos aluguéis.

Em visita a estas duas cidades este mês, vi o surgimento de sindicatos e outras organizações de inquilinos para enfrentar este problema, e pude testemunhar situações de extrema precariedade habitacional, como é o caso de favelas que tive a oportunidade de conhecer na região metropolitana de Lisboa.

Essa alta dos aluguéis está relacionada a fenômenos interligados: o crescimento do fluxo de turistas e o surgimento de um forte setor corporativo de aluguéis. Por conta do aumento da tensão relacionada aoterrorismo em destinos turísticos europeus como Paris e Londres, associado à implementação de estratégias urbanísticas de atração de visitantes em Barcelona e Lisboa – como a proliferação de equipamentos culturais –, estas cidades passaram a ser cada vez mais procuradas para visitação. Este fenômeno provocou a conversão de parte de seu estoque habitacional – especialmente em bairros centrais – em locais de hospedagem, por meio de sites como o Airbnb, o que inflacionou o preço dos aluguéis para a população moradora, principalmente a de baixa renda.

Junto a isso, em 2013, a Comissão Europeia praticamente obrigou todos os países do bloco a flexibilizar ainda mais os aluguéis, permitindo o livre aumento de preços a cada ano, mesmo em casos de contratos em andamento, e facilitando os processos de despejo. A consequência foi o crescimento vertiginoso dos despejos, tanto em Barcelona, apesar das novas políticas que vem sendo implementadas pela prefeita Ada Colau, quanto em Lisboa. Para piorar, imóveis que estavam nas mãos dos bancos estão sendo comprados por grandes fundos de investimento – os mesmos, muitas vezes, que estiveram na origem da crise financeira – para serem destinados a locação, colaborando para o aumento dos preços.

Além disso, tanto o governo da Espanha como o de Portugal facilitaram a obtenção de visto para quem viesse de outros países para comprar imóveis acima de determinado valor, ou seja, pessoas com alta renda e capacidade financeira. A pressão desse processo sobre a população mais pobre e, particularmente, moradora de bairros centrais que tradicionalmente tinham característica popular, como Mouraria, em Lisboa, ou o Bairro Velho, em Barcelona, revela a agudização da crise da moradia nestas cidades.

Para mais informações, acesse o blog da Raquel Rolnik.

“Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças”

Guerra dos Lugares – a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo Editorial), de Raquel Rolnik, é uma publicação política e analiticamente imprescindível. O livro descreve e resulta de uma trajetória particular, explicitando já de saída alguns de seus pontos de ancoragem – em especial a posição de observação privilegiada de sua autora como relatora especial da ONU para o direito à moradia adequada por seis anos, a partir de 2008.

Com Raquel Rolnik, o leitor pode percorrer países e cidades; pode se dar conta da dimensão mundial, da escala e do alcance dos processos urbanos que se desenham em favelas, nos contextos pós-desastres, no decorrer das remoções, nos lugares dos pobres das cidades do mundo, em especial do chamado Sul global. Os registros, relatos e fotografias que compuseram a tese de Livre Docência e o livro que dela se originou são testemunhos do que a autora observou e comentou em seus relatórios a partir de cenas e contextos urbanos de países de todos os continentes.

Ao mesmo tempo, o livro tece uma trama de elementos que permitem entrever uma sensibilidade de observação, por meio de descrições densas de situações que se encadeiam em uma interminável transição. Os processos descritos têm múltiplas faces: de um lado, a face urbana, de outro, a face da financeirização, que juntas se entrelaçam na dura transformação do solo em ativos negociáveis, na passagem que transforma terrenos e construções em dimensões crescentemente abstratas e monetarizadas, passíveis de serem desertificadas para enfim servirem perfeitamente e sem obstáculos aos propósitos da acumulação financeira.


Em um belo movimento narrativo que povoa situações, que permite entrever atores de carne e osso e, sobretudo, permite entrever quem foi removido, expulso, deslocado, Raquel Rolnik produz interpretações, mobiliza conceitos, se utiliza de imagens e pistas que possibilitam compreender as relações entre capital financeiro e terra urbana.

Mas em meio a cifras, análises de processos complexos e de intrincadas relações entre o solo e o capital, o texto também comove o leitor porque traduz e entremeia a escala das grandes dimensões mundializadas com a guerra dos lugares, ali onde acontece; ali onde os viventes são governados, onde a manutenção da vida se transforma em campo de disputa; onde sociabilidades, sensibilidades, identidades que se ancoravam nos espaços da cidade são anulados e removidos, são crescentemente transformados em ativos, em negócios, em finanças.

Esse é um dos grandes destaques do livro – perceber no relato de uma moradora de uma área sujeita a remoção no Rio de Janeiro, as artimanhas e movimentos de um processo internacional de financeirização, no registro de uma transformação ou de uma modulação do processo de acumulação do capital. Assim, também, sem negar os processos mundiais que fazem das cidades um lócus imprescindível para o capital financeiro, Raquel Ronik percebe e problematiza especificidades locais, nacionais e urbanas, mas, sobretudo, percebe e problematiza política e historicamente esses contextos em sua densidade local.

“Muralhas de dinheiro em busca de ajustes espaciais para aterrissar”, balés fantásticos e, de certo modo, macabros que acordam e mobilizam financeiramente moradias até então imóveis, inertes e sem liquidez, milhões de pessoas removidas por todas as grandes cidades do mundo, sintomas e sinais mapeados, lutas pela cidade, lutas que desenham campos de força, são alguns dos elementos que se entretecem ao longo do livro.

Nos seus capítulos finais, a cena brasileira se anuncia como que para atualizar e confirmar aquilo que se desenha no contexto global. Aqui também a racionalidade financeira, uma constelação de elementos novos que se combina com as linhas de força historicamente constituídas, ratifica o panorama já desenhado pelo desterro e pelos modos de governo de cidades, lugares, corpos e vidas.

Em seu diálogo com interlocutores como David Harvey, Raquel Rolnik destacou uma frase que parece ter sido certeira: “Muito bem, você já me mostrou onde e como estão ocorrendo processos de despossessão”, teria dito o autor em um encontro entre os dois. “Parabéns! Mas, do ponto de vista intelectual, o que interessa é saber ‘por quê?’”. Lendo a tese de Livre Docência e o livro que dele resultou, tive certeza de sua busca por requalificar e desdobrar essa pergunta e por indicar os caminhos, as pistas, os desafios e as possibilidades analíticas que apontam às respostas.